O Violino
Sabe-se que há muito, muito tempo viveu na França um músico, que longe de ser famoso e aclamado desesperou-se ao ver o seu sonho se despedaçando, escapando de suas mãos como se fosse areia.
Acreditando ser a sua falta de talento, o homem pesquisou, estudou, mas nada adiantou. As pessoas não gostavam da sua musica. Ela era vazia e totalmente sem sentido. Literalmente perturbadora.
Resolveu então, o homem, fazer um pacto com o diabo. Ele se prostrou em uma encruzilhada a meia-noite e o invocou.
- vem ó diabo, filho de deus, agora renegado, chifrudo, rabudo, vem com o fogo e o enxofre, vem com tua pele vermelha e teu bafo de dragão, vem porque eu te chamo e contigo quero ter. Vem nesta encruzilhada com teus pés de bode. Vem! – O homem andava de costas enquanto recitava a oração macabra.
Apareceu então na sua frente uma figura engraçada, a quem não se poderia chamar nem de louco quanto mais de diabo. O pobre coitado parecia mais um mendigo que há muito fugiu de um manicômio, agora com suas vestes circenses rasgadas e sujas, com pés descalços e um olhar injetado perdido no horizonte, ele se aproximava do musico na encruzilhada.
- Foste tu que me chamastes até aqui? – perguntou a figura estranha se aproximando de lado, como se seu corpo estivesse torto. – Foste tu que me tentou com a promessa uma saborosa.
- Sim. – respondeu o músico. – Fui eu mesmo quem te chamou diabo.
- O que é isso? – disse o homenzinho miúdo com roupas velhas e olhos perdidos, se contorcendo ainda mais em sua estranha posição. – Pra que tanta formalidade. Aqui, hoje, eu sou apenas seu amigo. Diz-me qual é o teu pedido.
- Eu sou músico, mas ninguém gosta da minha música. Sou simpático e bem afeiçoado, conheço todas as técnicas musicais, mas ainda assim ninguém consegue me ouvir. O que eu quero é ter toda a França aos meus pés, deleitando-se com a minha música em orgasmos de prazer.
- Então músico, essa é tua vontade. E o que eu ganharei com isso? – disse o homem se aproximando mais ainda, foi então que o músico notou que as suas pegadas eram marcadas a fogo no chão de terra batida, deixando para traz pequenos pedaços e vidro e areia e o cheiro que exalava do homem corcunda e contorcido era o puro enxofre.
- Diz-me o que preciso fazer para ter o que eu quero. – pediu o músico.
- ora! Mas com quem achas que estás a falar, músico? – perguntou o diabo com um ar de ultraje encarando o homem com seus olhos injetados e vermelhos como sangue. – é claro que não precisas fazer nada, pois eu farei por ti. Mas o que eu quero para fazer o trabalho é algo que tu sequer percebe que existe e não fará a menor falta.
- O que? – quis saber o músico.
- A tua alma. – disse o homenzinho rindo como uma criança, tremendo todo o corpo de tanta excitação.
- A minha alma? – titubeou o musico, se perguntando se o que pedira valia mesmo o preço que o diabo lhe fazia.
- O que? Achas que é fácil fazer todo um país rastejar aos teus pés? Eu sou o diabo, mas não faço milagres. Tudo custa muito caro hoje me dia, então nada mais justo, eu também cobrar caro.
- Então está feito. Que seja toda a França. – disse o músico convencido estendendo sua mão direita ao diabo.
- Feito. Tua alma pela adoração e delírio de muitas outras almas. – disse o diabo apertando a mão do músico e virando-se de costas em seguida. Quando voltou-se para frente tinha em suas mãos um violino vermelho como a cor de seus olhos. – darei a ti o que falta em tua música. Sentido, profundidade e força para alcançar as almas e evocar do fundo da consciência o mais cruel e insano delírio e adoração.
O músico pegou, então o violino e quando olhou para frente, o homenzinho se afastava devagar e com passos arrastados.
- Como é teu nome, diabo?
- Meu nome é Amigo. Você só precisa se lembrar disso. Eu sou seu amigo. – O músico abaixou os olhos mais uma vez para o violino e quando tornou a olhar para frente o diabo já desaparecera, tão rápido quanto aparecera.
A partir do dia seguinte a música do homem que recebera o violino jamais fora a mesma. Até ele mesmo caía em êxtase ao se ou vir tocar.
Quando ele fazia vibrar as cordas daquele violino não havia uma pessoa que conseguisse ficar de pé. Logo elas entravam em um transe absurdo, tiravam suas roupas e faziam sexo com as pessoas mais próximas sem se importar com quem fosse. Elas urravam e tinham orgasmos apenas com o som produzido pelo violino.
O músico ficou satisfeito com o efeito da sua música nas pessoas e sua fama se espalhou. Diziam por aí que ele era um anjo e que sua música era voz de Deus, falando através de seu violino. Todos queriam ouvi-lo tocar. Todos queriam sentir a felicidade extasiante que somente a sua música era capaz de provocar.
Foi então planejado um grande concerto em Paris, para que todos os parisienses pudessem assistir. Ele já era famoso por toda a França, mas jamais tocara para os parisienses, nem para o rei e sua família. Este seria seu grande dia.
O dia do conserto chegara e ele seria acompanhado por uma orquestra gigantesca. Quando começou a tocar todos ficaram assustados. Jamais ouviram música como aquela. Seriam aquelas notas naturais criadas por Deus para que os homens conhecessem? Aquele homem com o violino vermelho não podia ser humano. Apenas um anjo na terra seria capaz de tamanha grandiosidade.
O prazer e a alegria explodiram nas pessoas como vulcões poderosos e arrasadores fazendo-as perecer nas chamas da luxúria e do prazer. As pessoas se esqueciam de quem eram e se entregavam ao êxtase, à sodomia mais absurda em plena luz do dia, em público, na rua, com pais, filhos, animais e estranhos. Buscando o prazer nas mais diversas formas, através de mutilações, voyeurismo, incesto, zoofilia, sadomasoquismo e o que mais lhe passassem pelas cabeças.
Aquele foi o dia em que o músico, antes renegado, via seu desejo se concretizando. Faltava apenas Paris para que toda a França estivesse aos seus pés.
O vento parecia colaborar para que o som de seu violino viajasse para o mais longe possível, misteriosamente o som trafegou pelos ares até cobrir literalmente toda a França. E este foi o dia em que todos os franceses foram acometidos pela loucura. Uma loucura sem gênero e grau, apenas uma força incontrolável e incompreensível. Toda a França mergulhou na escuridão do desejo de um homem, e quando alvoreceu a vergonha estava plantada no rosto de cada cidadão.
Foi um dia que todos decidiram esquecer, pois se lembrar de tamanho absurdo era simplesmente vergonhoso demais.
Por fim, quando a ultima nota fora produzida pelo violino vermelho, uma rizada medonha e mais envolvente do que a própria música se ouviu. Os cidadãos jaziam ao chão. Uma multidão de corpos nus amontoados, dando e recebendo prazer.
- Eu voltei músico. – disse uma voz conhecida sem que se conseguisse distinguir a sua origem. – Eu vim buscar o que me pertence.
- Amigo! – disse o músico. – Não pode esperar só mais um pouco, alguns anos quem sabe?
- NÃO! – a voz soou feroz e animalesca, titubeando pelas nuvens como um trovão. – O tempo acabou, o seu desejo foi realizado, mas como eu realmente gostei de ti, o teu sangue permanecerá na terra e este instrumento fará com que a sua música seja tocada outra vez em outro tempo, para outras pessoas.
- Então que assim seja meu amigo. Contigo estarei para sempre, para ver mais uma vez a insanidade nos olhos de quem ouvir a minha música.
Uma sombra muito escura cobriu os céus de Paris, mas alguns dizem que foi em toda a França. O homem sentiu o toque de seu amigo em sua pele. A morte o acompanhava. Ela era linda, uma donzela de magnífica beleza, mas com um golpe frio e cruel. O seu beijo foi a ultima coisa que o músico sentiu, antes de perceber que estava morto e que ardia em alguma chama no inferno.