O funeral de Catarina

O entardecer chegara mais escuro, e as folhagens mortas sobre o chao das calcadas anunciavam um crepusculo. Maio definitivamente mostrava sua presenca.

Sobre a minguada luz, Catarina caminhava dentro de suas interminaveis visitas ao cemiterio. A reflexao,as esculturas e a beleza sombria sempre a seduzira. Era como uma alma um tanto saudosita, mas ainda assim nao vencida pelo sofrimento.

As ideias de Catarina eram mais profundas, e mesmo jovem nao se adequera as motivacoes da maioria. Sentia-se aprisionada em sua busca solitaria, onde apenas a dor e o sentimento de opressao a dominavam.

E o cemiterio era o unico lugar que mantinha uma forma austera, antiga, que remetia tempos outrora e uma esperanca de estar unida aqueles que um dia partiram.

Olhara, refletira e finalmente percebera que a vida nao era cruel ao retirar as pessoas queridas. A terra gera, a terra tira e encontrando um tumulo de marmore branco deitara em cima.

Sentiu-se uma morta, e os ventos gelidos do mes de maio sopravam gelidos, configurando-se com um sol fraco.

Catarina fechou os olhos e sentiu um transe, uma satisfacao, um sentimento de plenitude. Ah como morta viva nao sentiria a raiva, o amor ou o odio,longe do hedonismo mundano.

Era como sentir nada, mas a memoria,o passado e o presente decadente gerassem uma semi dualidade. Estava na companhia de outros,podia sentir isso e deitar sobre a tumba nao geraria uma reflexao mais profunda, apenas naquele momento, na companhia de alguem conseguia zerar seu pensamento.

A unica forma de se manter viva eram atraves das batidas de seu coracao e do sopro.

Mas de repente sentiu um aperto, uma agonia e sussurrara um queixume. A presenca viera, uma resposta ao chamado e ao focar o marmore branco pudera ver o rosto de um homem. A noite caia, mas a porta do cemiterio ainda continuava aberta.

Ali existia vida, a cidade eh que estava morta, obscura, envelhecida.

Refletia agora de pe sobre a vastidao do lugar e a heranca de tempos melhores, que nem o tempo ou a miseria humana conseguira destruir. E dentro do sentimento de clandestinidade ou de escandalo caminhava...

Encontrara uma cripta grande em estilo neo gotico.As folhagens caiam sobre a cripta e um verde musgo impregnara a obra tumular. Percebera que o caminho direcionava a uma encruzillhada, andara mais um pouco e parara.

Fixara o olhar na cripta e ao mexer na porta de ferro conseguira abrir. Nao era uma violacao, mas uma visita. A penumbra fora amenisada por algummas velas e pode ver os nomes nas lapides, bem como a data do nascimento e da morte, dentro de alguns simbolos religiosos, obras de arte, saudade e memoria impregnada.

Ficara mais um tempo dentro da cripta ate ouvir um grito e um estalo. Nao pudera distinguir de onde, mas um grito de sufoco, de dor, ao longe.Saira do local e encontrara algumas flores que possivelmente haviam caido de alguma arvore.Recolhera-as do chao e entrara novamente na cripta. Depositara uma a uma em cada lapide com devocao e respeito.

Saiu do local sentindo que sua visita terminara, ja que anoitecera e apos um passeio de paz retornaria ao inferno da rotina.

Caminhando solitariamente avistara uma luz ao longe, nao conhecia bem aquele cemiterio, mas avancando pode perceber que se tratava de uma capela funeraria e um funeral acontecia naquela noite.

Curiosa avancou e mais adentro percebeu o tumulto de pessoas sentadas, chorando ou conversando.

A presenca de Catarina, toda de preto e maquilagens pesadas chamou um tanto a atencao das pessoas, porem ela avancou. Uma pessoa estava sendo velada. No salao um enorme caixao de madeira negra coberto por um mortalha roxa e dos dois lados duas velas pilares ardiam, cobertas com simbolos de alguma crenca ortodoxa.

Aproximou-se do defunto e sobre a mortalha fixara seus olhos em sua feicao. A morte era palida, branca, gelida, sem vibracao. O luto era a memoria, as reminiscencias, a historia. O luto poderia ser simbolizado

pela separacao e afeicao, junto com sentimentos ambiguos, um verdadeiro acerto de contas pos-existencia.

Fitou mais um pouco o corpo do falecido. Nao poderia mexer ou sequer tocar, apenas observar. Por mais um tempo voltou a fitar o rosto do homem morto e pode fixar bem seu rosto em sua mente.Era um senhor, cabelos brancos e nao parecia ter morrido por alguma doenca degenerativa ou acidental.

Supos que seria finda uma existencia feliz.

Discretamente saira e dentro de suas inumeras visitas ao cemiterio, aquela tivera sensacoes e visoes abstratas que em sua mente poderia significar muito.

Voltando para sua rotina pos-se ao trabalho e como costureira de roupas para a cultura obscura tinha algum trabalho pela frente, embora a cada dia diminuisse o numero de adeptos. Tempos dificeis.

Com o tempo passara a sentir e ver a presenca do senhor de cabelos brancos. O rosto palido gelido daquele senhor ficara gravado em sua memoria como uma forma.Nao acompanhara o, mas tinha visoes da marcha funebre e do sepultamento. Com o tempo nao consegui mais manter a atencao no trabalho e em nada que nao se referisse a morte do senhor de cabelos brancos.

Um tormento, uma angustia, um desespero. Tinha vontade de voltar ao local e depositar flores sobre a sepultura, mas algo a impedia de avancar, um medo,misturado a misterio. Alem de nao saber nada sobre aquele senhor, como o numero da sepultura e o local exato.

Tentou novamente focar sua mente em sua rotina, mas as impedicoes no foco mental a faziam parar de avancar e a presenca de alguem, de alguma coisa fora do natural e entao o sentimento de medo.

Com o tempo sentia e tinha a visao de jarros com flores, odores de parafina e de uma chuva que representava o tempo nublado.O limite de sua dor fora quando plasmara a imagem de uma coroa funebre em seus olhos com flores laranjas envolta em uma faixa negra.

Estava ficando louca-pensou-mas as imagens e sensacoes eram reais, nitidas como um quadro. Intenso, figurativo e real os sentimentos e visoes eram cada vez mais fortes como a presenca.

O inverno chegara com sua umidade e tristeza e seu corpo comecara a desfalecer.Dentro de um periodo de tempo abandonara o trabalho e comecara a definhar. Nao saia de seu quarto, e sua unica companhia era a do senhor de cabelos brancos. O luto , o medo e o enigma.

Mas estava encurralada em seu desespero, presa em uma situacao que se mostrava real atraves de sua degeneracao fisica e emocional,porem de logica ou causa aparente.

Durante o inverno de junho eh que seu desespero atingira o climax total de terror insuportavel e alem do emagrecimento brusco comecara a sentir tremores, calafrios alem de uma fraqueza que impossibilitava de andar.

Fora ao medico, e nada, uns calmantes foram receitados. Com o emagrecimento repentino Catarina nao saia mais da cama, e sentia-se morrendo aos poucos.

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A procura da amiga

Em seu desespero mais profundo esgotaram-se os recursos e todos os meios eram inuteis. Previa a morte proxima e como ultimo impulso deteve-se a uma ideia, a de procurar uma amiga.

Entre lagrimas e desabafo contara o ocorrido. Sua saude estava enfraquecida, seus ossos doiam e sentia dentro de si mesma a agonia, angustia de nao estar preparada.

Tiveram um plano. Como nao sabiam o numero da sepultura colocariam uma flor em todos os tumulos do cemiterio, um a um. E assim caminharam sobre um frio de 10 graus em uma manha garoenta de Sao Paulo.

Entretanto vazio,nada, resultado algum. As visoes continuavam, o emagrecimento a definhava, sentimentos de medo misturados aos

rituais do luto e o funeral. Olhara para a caixa de remedios e pensou em se matar.

Deste dia em diante seu tormento nao teve mais fim e prestes a um colapso mental nao saia mais do quarto. Nao podia fechar os olhos porque via o rosto do senhor de cabelos brancos. Nao comia, nao bebia, estava catatonica, fascinada, presa entre os dois lados.

Como uma moribunda em um ciclo final de lua minguante sua amiga a procurava e vendo o estado de catarina que tivera uma ultima ideia.

A de chamar uma curandeira do interior que era famosa por suas curas, prodigios e efeitos. Era a ultima esperanca.

Ela trouxe a curandeira.Esta entrou com o rosto carregado pelos anos de sofrimento e os olhos atentos como de quem enxerga alem. Acendera algumas velas, se concentrou e como uma medica medieval passou a examinar Catarina.Algumas ervas foram colocadas na porta direita da cama.

Em sussurros Catarina contara a historia e curandeira pos-se a revelar o que via:

-Naquela noite minha querida um homem faleceu, mas ele cobra a sua

presenca, pois aos pes dele foi deixado uma marca sua, uma foto, que foi trabalhada anteriormente e depois colocada aos pes do defunto. Eu vejo um homem... aquele que voce namorou lembra? Ele jurou que se voce nao fosse dele jamais seria de outro homem e que pagaria com a vida se preciso.

Os olhos de Catarina se esbugalharam de forma desfigurante, porem se fechasse os olhos veria o homem de cabelos brancos e se fechasse lembraria do ex namorado. Estava bloqueada, nao conseguia mais respirar, atonita. A curandeira prosseguiu:

-Nao ha nada que eu possa fazer por voce, pois ele sacramentou o feitico com hostia e vinho consagradas. Voce foi enterrada viva.

Pela segunda vez um estalo vindo do teto fora ouvido no quarto e desta vez mais um grito.

No meio de brumas e nevoas pudera ver a presenca do velho de cabelos brancos cada vez mais fortes sob uma luz tenue que se aproximava.

Estava chegando, chegando e chegando...

Na virada daquela madrugada Catarina nao respondera mais, e dentro

de um colapso generalizado tomabara dura sobre o chao.

Estava morta.

Fim

Joaquim Dark

Joaquim Dark
Enviado por Joaquim Dark em 09/12/2010
Código do texto: T2661688
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