MORDIDO EM VENEZA (Parte VI)
(Continuação de Mordido em Veneza - Parte V)
Minutos depois um vampiro bem vestido postou-se em frente à cela e falou o que estava escrito num pergaminho que segurava:
- “Mensagem a Ank Draculea. Eu, rei da Valáquia e dos Vampiros, Ivan Draculea; adio o dia da execução do vampiro-novo, George Seymour, e do aprisionamento do príncipe e herdeiro da Coroa, Ank Draculea; para o dia 01º de novembro de 1755. Devido às circunstâncias administrativas do Castelo de São Jorge. ‘Imago animi vultus’”.
Estaticamente, o vampiro nos deixa só.
- Nossa, que surpresa “agradável”! – ironiza Ank.
- Por que será que adiaram?
- Talvez o governo português tenha descoberto que haverá duas execuções aqui. Ou melhor, uma execução e um “enterro” com cadáver vivo... Mas, nada que algumas libras façam para ajudar os portugueses esquecerem...
Pelo menos tínhamos mais um dia de vida. Quer dizer, eu tinha mais um...
O resto do dia passou bastante devagar... Ank e eu conversávamos sobre curiosidades e particularidades de nossas vidas.
A noite chegou e um vampiro veio com trazendo duas garrafas de vinho do Porto e dois cálices.
- Cortesia de Aset Ka. – disse o vampiro sarcasticamente.
- Aset Ka? – perguntei a Ank quando o vampiro tinha ido embora.
- É o nome oficial do Asetianismo...
Ank tirou a rolha da garrafa, cheirou o conteúdo, colocou um pouco na boca, degustou e cuspiu.
- Pode beber, não está envenenada. – disse ele enchendo seu cálice.
- Pensei que não podíamos morrer...
- E não podemos, mas conhecemos fórmulas químicas que podem causar sérios danos a um vampiro. – respondeu Ank tomando seu vinho.
Era madrugada quando secamos as duas garrafas. Obviamente, não estávamos bêbados. Mas, Ank resolveu ir dormir... Eu quis ficar acordado, aproveitando meus últimos momentos de vida.
Ank deitou-se no chão duro e imundo. Eu continuei sentado, olhando para lugar nenhum.
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Acordei com os vários badalares de sinos das igrejas de Lisboa. Olhei em volta. Talvez fossem seis horas, sete...
Olhei para Ank. Ele estava sentado olhando para mim.
- Não aguentou ficar acordado, cordeirinho?
- Não percebi que tinha dormido...
- Bem, sei que você é puritano, mas feliz Dia de Todos os Santos.
Olhei Ank apontar para cima, demonstrando que eu escutasse os sinos dobrarem.
- Você sabe que horas são?
- Bem, talvez oito, nove... É a segunda vez que os sinos estão badalando, então significa o fim das missas e início das passeatas pelas ruas de Lisboa para homenagearem os santos...
Um vampiro alto veio pisando fortemente pelo corredor e parou à frente.
- As suas execuções serão realizadas hoje, às 09h30min. Desejam seus últimos pedidos?
Ank levanta a mão.
O vampiro olha inquisitorialmente a ele.
- Gostaria que seu filho viesse dar uma chupada em mim. – falou Ank apontando para suas calças.
O vampiro ficou exasperado, mas nada disse. Olhou para mim.
- Desejo que o Asetianismo e você vão ao Inferno. – falei.
Ank dá uma gargalhada e o vampiro sai batendo ainda mais forte no chão.
- Gostei George, gostei. “... vão ao Inferno”!
Pela primeira vez em tempos consegui sorrir.
- Mas, bem que eu gostaria que ele enviasse o filho dele... – completou Ank sonhador.
Como Ank previu, eram exatamente 09h00min horas.
Meu coração palpitava cada vez mais. Ank parecia bastante tranquilo. Repudiei-o por isso.
Às 09h20min apareceram dois vampiros.
- Venham. – disse um com a voz grave.
Ank se levantou e olhou para mim.
- Força, força! – sussurrou ele.
Fizemos o mesmo caminho quando chegamos. Andamos pelo corredor escuro, subimos uma escada em caracol e nos deparamos com o pátio central do castelo.
No meu do pátio tinha um vampiro de máscara chinesa segurando uma longa espada, e um caixão ornamentado com outro vampiro ao lado segurando uma espécie de cálice de prata.
- Organizados. – criticou Ank.
Os dois sacerdotes do Asetianismo estavam presentes com ar de triunfo.
Ank não olhou para eles, mas para outro vampiro.
- Ah, Dalmo Goldman... Meu irmão o enviou para não ver meu sofrimento ao ser enterrado? Que compaixão a dele. – disse Ank furioso.
Aproximamos dos carrascos. Outro vampiro aproximou-se com um pergaminho em mãos e começou a falar com a voz retumbante:
- “Estamos aqui hoje, no dia 01º de novembro de 1755, na capital do Reino de Portugal, Lisboa; para executar as devidas punições cabíveis aos acusados: Príncipe Ank Draculea e George Seymour. Julgados na Romênia, no principado da Valáquia pela Ordem do Dragão e pela própria Vossa Majestade, Rei Ivan Draculea. Os acusados serão punidos conforme a lei vampírica. Vida longa ao Rei Ivan Draculea e que a justiça seja pregada pela Ordem do Dragão”.
Ank bateu palmas e fingiu secar uma lágrima.
O vampiro que leu a mensagem, furioso, disse:
- Primeiro o vampiro-novo!
Dois vampiros se aproximaram pelas minhas costas e me amarram as mãos, me guiaram até o meu carrasco e me puseram ao seu lado.
O carrasco era um vampiro imponente. Bradava a espada como se fosse seu braço.
- 09h26min! – gritou o vampiro que lera a mensagem.
O silêncio no pátio foi total. Menos nas ruas, onde se podiam escutar as pessoas rindo, gritando, cantando, orando e festejando o feriado religioso. Soltaram até fogos de artifício.
Olhei para Ank. Ele olhava para mim profundamente.
- 09h29min! Prepare-se carrasco!
O carrasco pôs a lâmina em meu pescoço. O fio da lâmina estava frio e cortante.
Acho que eu estava tão nervoso que senti meu corpo estremecer. A intensidade foi aumentando.
O carrasco olhava curioso para o chão; ele também tremia. Os outros vampiros murmuravam e, até o vampiro que estava à frente da execução ficou nervoso.
- 09h30min! Faça-se justiça! – gritou o vampiro.
O carrasco afastou a espada de meu pescoço e quando ele iria dar o golpe de misericórdia; um solavanco muito forte me fez cair ao chão.
Olhei para os lados e vi que os demais vampiros estavam ao chão, também. Assustados, olhavam para os lados. Olhei para as árvores, e elas tremiam. Muitos galhos caiam ao chão. Um estrondo alto soou pelo castelo; uma parte da muralha ruíra.
Era um terremoto. Um forte terremoto.
Ank estava se levantando e, com perícia, tomou a espada da mão do carrasco e libertou-me das correntes. Puxou-me pelo braço e saímos correndo pelo pátio.
- Pegue-os! – gritou um vampiro.
Corríamos a uma velocidade impressionante. Paramos no local onde a muralha ruíra. Ank gritou em meu ouvido, acima do barulho nas ruas:
- Pule!
Pulamos juntos e saímos rolando pela colina. Paramos caídos numa rua de pedra. Corremos novamente.
A terra ainda tremia, muitas construções ruíam aos nossos olhos, pessoas gritavam, choravam. Muitas estavam mortas nas ruas, soterradas, ensanguentadas, outras gritavam por Deus.
- Por aqui! – gritara Ank, puxando-me pelo braço.
Uma alta igreja começara a cair. Ank me puxou para uma viela, para protegermos dos escombros.
O tremor parecia que nunca iria acabar. Corríamos, mas parecia que estávamos correndo num navio em meio a uma tempestade no meio do oceano.
Corríamos bastante. Desviamos de pessoas correndo, de escombros, de um cavalo desgovernado.
Até que tudo parou.
Muitas pessoas pararam de correr. Muitas crianças sujas de poeira gritavam pelo nome da mãe. Alguns prédios estavam em chamas.
- Por aqui. – disse Ank olhando para todos os cantos.
- Para onde vamos?
- Temos que ir para o porto... Mas, não sei onde estamos. Muita coisa foi destruída, é impossível de saber.
Acompanhei o olhar de Ank. Um homem barbudo vinha em nossa direção gritando.
- O mar secou! O mar secou! É o Fim dos Tempos!
Fiquei olhando para o homem que subia a viela em que acabamos de entrar.
Ank me puxou e entramos numa rua à tangente.
Avistamos o rio Tejo. E o que sobrara do porto.
- Oh, não! Olha aquilo! Merda! – gritou Ank apontando para frente.
Olhei para o que ele apontava. Percebi que estava desejando ter morrido com a cabeça decepada a enfrentar o que viria a seguir.
Uma dantesca onda de 30 metros vinha engolindo Lisboa.
Uma multidão de gente subia as ruas, entravam em prédios já em escombros.
Não consegui falar nada.
- Aqui! Venha! Vamos! – gritou Ank.
Corremos por uma rua. Vimos um edifício do governo português de sete andares.
- Pule! – disse Ank.
Ele pulou como se estivesse amarrado a cordas. Fincou suas mãos nos sulcos da parede e começou a escalar sem dificuldade.
Segui-o. Comecei a escalar as paredes. Os gritos não paravam de reverberar pela cidade.
A onda, finalmente, quebrou sua crista e veio com velocidade destruindo o resto que o terremoto deixou em pé.
Chegamos ao telhado do edifício.
- O que está acontecendo? – perguntei passando a mão pelos cabelos.
- A verdadeira justiça! – filosofou Ank – Deus não iria deixar você morrer injustamente.
Olhei para trás e vi o Castelo de São Jorge, boa parte destruído. De onde estávamos, dava para ver o incêndio alastrando-se pela cidade, as águas tomando ruas, prédios caindo, pessoas gritando... Era uma destruição que nunca vi na minha vida!
As águas bateram com força no prédio. O sentimos tremer, mas resistiu. Alguns minutos depois, o silêncio reinou sobre a cidade morta.
Algumas pessoas gritavam ou lamentavam.
Vi um padre andar pelas águas. Muitos corpos boiavam nas águas, agora, escuras.
- Precisamos sair daqui. – disse Ank.
- Como?
- Ali! – respondeu Ank, apontando para várias naus que zarpavam ou estavam no meio do rio Tejo.
- Como chegaremos lá?
- Desse jeito! – disse Ank ao mesmo tempo em que pulava no telhado de uma construção à frente.
- Vamos! – gritou ele do outro lado.
Não precisei de impulso. Com um simples movimento de perna, pousei no telhado suavemente.
- Faremos isso até chegarmos ao porto. – disse Ank olhando para frente.
Assenti com a cabeça. Ank não me esperou, seguiu pulando os telhados.
Muitas vezes, nos distanciamos da rota, pois muitos prédios tinham ruídos. Outras vezes, tivemos que descer e caminhar.
Mas, meia hora depois, chegamos ao porto.
Uma multidão bradava, chorava, gritava, batia e implorava para entrarem no porto. Uma guarda estava parada à entrada impedindo a passagem.
- São ordens do primeiro-ministro Marquês de Pombal! – gritou um soldado.
A revolta e indignação se assomaram pela multidão.
- Foda-se Pombal! – gritou uma mulher.
- Vamos invadir! – bradou um homem.
Um urro de guerra soou pela multidão. Os soldados não puderam impedir a massa fugaz. A multidão entrou à força no porto. Muitos soldados foram pisoteados.
Eu e Ank, aproveitamos, e saímos derrubando muitas pessoas com a nossa força descomunal.
Chegamos ao píer e vi algo horrível. Vários corpos de homens, mulheres e crianças jaziam desformes nas águas turvas do Tejo. Era um cemitério aquático. Olhei para o lado e vi muitas pessoas tentarem subir num navio pela rampa, cordas ou até escalando o casco. Outras saqueavam mercadorias e caixotes do porto. Mas, muitos marujos atiravam nas pessoas com suas enormes baionetas ou decepavam os membros que tentavam subir ao navio.
- O que fare...
Não terminei a pergunta que ia fazer a Ank. Este já pulava para um navio que zarpava do porto.
Não tive escolha, o segui. Pulei como um felino e pousei na proa da nau.
Um marujo nos viu na proa e gritou:
- Intrusos! Intrusos!
Então, veio correndo em nossa direção cinco homens bradando suas espadas.
Ank não estava para conversas ou com um bom humor. Derrubou o primeiro com um soco que afundou a caixa craniana; derrubou o segundo com um golpe no pescoço que quebrou na hora; os outros três recuaram.
- Queremos somente sair daqui. – disse Ank.
- Quem você pensa que é para invadir nosso navio? – perguntou um deles.
- Sou príncipe da Valáquia e este é um Lord inglês. Pagaremos a vocês vinte mil libras assim que chegarmos ao local onde estão indo, se nos deixarem ir com vocês.
Alguns marujos que se juntaram ao grupo arregalaram os olhos.
- Vinte mil libras?
- Sim.
- Prove que vocês são nobres!
Ank estende seu branco dedo anular com o anel de ouro da Ordem do Dragão. Não entendo nada que eles diziam, percebi que eles queriam uma comprovante de minha nobreza; mostrei meu pingente com o brasão de minha família.
Muitos confirmam com a cabeça.
- Queremos o dinheiro agora!
- Só quando chegar ao local! – bradou Ank.
Percebi que eles falavam da moeda de minha terra: a libra. Estavam negociando, então disse:
- Daremos mais cinco mil libras se nos colocarem num aposento aconchegante com banheira e cama.
Muitos olharam para mim com ar de desconfiança ou de desentendimento.
Mas, Ank traduziu para o português o que eu disse.
Muitos suspiraram de desejo.
Muitos sorriram em concordância, mostrando seus dentes podres e amarelos.
- Queremos um banho quente e bom quarto. – disse Ank.
- Agora mesmo senhor! – disse um marujo saindo em busca de água quente.
O grupo dispersou-se.
- Você tem algum dinheiro? – perguntei a Ank.
- Não. Eles nem vão perceber quando já estivermos em terra-firme.
- Para onde esta nau vai?
- Não sei. Só quero sair dessa desgraça.
Olhei para o mesmo local em que Ank olhava.
Vi a outrora bela Lisboa agora em chamas, totalmente destruída e invadida pelas águas.
Desviei meu olhar para água e vi muitos corpos batendo no casco do navio como tocos de madeira inanimados.
Ank olhava para Lisboa. Não vi nenhum ressentimento em seu aspecto, mas um ar de alívio.
Parei um jovem garoto marujo.
- Onde esta embarcação está indo?
Ank traduziu para o garoto.
- À América, à colônia de Portugal: “Terra Brasilis”. Rio de Janeiro. – respondeu o jovem.
- Está indo à América. – traduziu Ank para mim.
- Como? Mas, ele disse “Terra...?”
- “Terra Brasilis”. – respondeu Ank – Estamos indo ao Brasil! Rio de Janeiro!
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(Continua em Mordido em Veneza - Parte VII)