O abismo

Andrew e eu tiramos o resto da noite para conversar. Subimos no telhado do edifício mais alto. Um com centenas de andares, quase todos ocupados por escritórios e uns poucos vazios e nos sentamos na marquise. A lua estava cheia, parecia enorme, anormal e encantada, uma visão para encher nossos olhos vampíricos, que a tudo devoravam.

- Espero que você não esteja zangado – iniciou Andrew. Como uma era venenosa, ele tinha o dom de se pronunciar em agudas picadas na carne do meu coração. – Ou, pelo menos, que não esteja muito zangado...

Andrew e eu éramos diferentes. Andrew era um demônio vagabundo e eu ainda conservava um reduto de sensibilidade na alma, o que me permitia pensar com carinho a respeito das vicissitudes que dividiam mortais e imortais. Essa noite, nós conversaríamos e tornaríamos mais largo o abismo que separava as nossas almas.

- Caro Will, não fique triste por causa daquele garoto. Ele era apenas um humano e um dia acabaria morrendo. E você sabe disso tão bem quanto eu. Poderia ser em qualquer dia e a qualquer hora. Qualquer tipo de morte, você sabe. Ainda mais, levando-se em consideração o estado no qual ele vivia. Era deplorável, não era?

Encarei Andrew intensamente. Senti-me compelido a jogá-lo lá embaixo. Simplesmente, empurrá-lo. Mesmo que seria algo inútil. Em todos os sentidos. Seria como espantar um pássaro da janela aberta. Ele não morreria e voltaria logo depois.

- Sim, Andrew. Deplorável. Devo ficar agradecido por você tê-lo libertado daquela vida ordinária?

Ele sorriu.

- Isso mesmo. Eu o libertei. Matei-o e o libertei.

De repente, ele estava gargalhando ao meu lado. Divertindo-se com uma piada interior.

- Ah, Will, você parece ser a consciência de todos nós! – disse ele, enxugando as lágrimas de sangue que escapuliram de seus olhos frios. – Tão bonzinho. Tão humano, você parece ainda ter uma alma destinada aos Céus de Deus Todo-Poderoso.

- Não se trata de ter ou não uma alma – rosnei, invocando toda a minha paciência para não acabar fazendo uma grande besteira. – Trata-se de ver além daquilo que os nossos olhos veem.

Andrew balançou a cabeça com desdém.

- Você não vê além das aparências, Will. Nenhum de nós vê. Porque nós, simplesmente, vemos a verdade. Nós enxergamos o âmago das coisas, nós vemos o câncer comendo a carne e o craque agindo no cérebro de quem o consome. O que você vê é apenas o que o seu coraçãozinho gostaria de ver. Mas, Will, lembre-se, não existe coração com olhos.

- Eu o odeio, Andrew. Eu o odeio pelo simples prazer de odiar alguém e de poder dizer isso.

Não era verdade. Muitos vampiros vivem dizendo isso uns aos outros. Dizem que se odeiam, dizem que se matariam se tivessem tempo sobrando; ameaçam-se, mútua e levianamente, como os filhotes de uma mesma ninhada. No entanto, era verdade que, para mim, sempre foi muito satisfatório expressar algum tipo de aversão pelos meus iguais.

- Ódio sem fundamento, não é ódio – observou ele -, você sabe disso também. Se você não odeia alguém do fundo do seu ser, não tem graça dizer que odeia. Você tem que agarrar o indivíduo, olhar no fundo dos olhos dele e dizer que o odeia, que o odeia tanto que ele não viverá o bastante para ver a lua nascer na noite seguinte.

O que foi que eu disse? Sangue e ódio fazem parte da vida de todo vampiro que se preze.

- Você o odiava, Andrew? Odiava o garoto? Odiava tanto que o matou?

Ele refletiu. Seu perfil tornou-se inexpressivo e imóvel, como se o seu rosto fosse de mármore. Ele parecia estar procurando por algo perdido no tempo, no seu passado, remexendo suas velhas recordações. Não havia como ter certeza. Era apenas o que eu intuía. Porque, almas condenadas que somos, sempre buscamos no passado uma causa para os nossos vícios e para o nosso pesar.

- Will, por que você não pode simplesmente aceitar que eu estava com sede do sangue do garoto, hein?

Aquilo era desculpa para tudo. Para tudo mesmo. E, por incrível que pareça, ela resolvia grande parte dos nossos conflitos, pessoais e sociais, e quem era eu para duvidar da força da sede, se sob o poder dela, já fui capaz de fazer coisas terríveis, das quais me arrependi amargamente depois?

- Mas, você não estava tão sedento assim, estava? – perguntei. Eu não podia ignorar o fato de que a minha frequente simpatia por certos tipos decadentes de humanos causava grande irritação entre os meus semelhantes.

- O que você quer que eu diga, Will? Que sim? Que não? Não faz diferença. Como eu disse, ele ia morrer, eu só adiantei um pouquinho as coisas. Não se martirize por ele. Você não seria capaz de me impedir. Nem mesmo se quisesse.

Talvez fosse verdade. Não que o garoto não valesse a pena. Mas, o que eu faria depois? Eu iria criá-lo? Não, nem pensar. Apesar de me considerar parcialmente benevolente, não sou hipócrita o bastante para dizer que muito me agradaria ser responsável por uma criatura recém-nascida para a esfera funesta e intricada que circunda tudo quanto é vivo e cheio de sangue. Eu seria um desastre como pai e educador. Ainda mais de um filho acostumado a roubar e matar. Seria irônico demais.

- Vejo que você já está me perdoando – comentou Andrew, sorrindo cinicamente. Era quase como se ele pudesse ler a minha alma e prever os meus pensamentos. No entanto, ele não sabia que eu era tão capaz de perdoar quanto de odiar.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 16/09/2010
Código do texto: T2501018
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