A MANSÃO ROSA
UM CONTO DE DIEGGO ENRIQUE
A fraca luz do moribundo entardecer de julho despeja seus últimos raios de vida sobre a multiforme vegetação que compõe o Vale das Sombras. As flores, apesar de poucas, nunca murcham, nesse lugar encantado, um verdadeiro jardim de frescor e delícias — uma réplica edênica, perdido e encravado em qualquer lugar, nos confins do ocidente. Estamos em pleno ano de 1827.
Um tranqüilo riacho, porém caudaloso, contorna toda a base de uma altiva colina de rochas azuladas. A poucos metros da margem leste ergue-se uma suntuosa construção do início do século XVIII. Os musgos já cobrem boa parte das paredes dos aposentos da ala norte.
A mansão é de um pálido rosa-salmão, contrastando com o vigor do verde circundante. A ampla sala de estar, no andar térreo, abre-se a uma pequena varanda de grades negras e enferrujadas dando-se a ilusória impressão de projetar-se rio adentro.
Um agradável aroma de toda sorte de iguarias adocicadas percorre a ampla sala de jantar e adjacências da pitoresca habitação: pudins, bolos e manjares dos mais variados formatos e sabores, frutas exóticas recém-colhidas e flores silvestres da colina, trazidas em delicados ramalhetes durante as primeiras horas da manhã, ainda com as reluzentes gotículas do fresco orvalho da madrugada.
Estendida sobre um luxuoso sofá de estampa verde esmeralda está Lucinéia — uma criatura de aspecto angelical ocultada em um corpo de mulher. Sua alva pele contrasta com a luz avermelhada do entardecer, que ao entrar por uma minúscula brecha, por entre as cortinas lhe confere uma aparência única. Os cabelos castanhos, quase dourados, estão presos juntos à nuca por um delicado arranjo de flores-do-campo, que lhe empresta luz e simplicidade angelical ao corpo bem talhado, oculto sobre um roupão semi-transparente de seda azul-celeste. Uma lareira jaz apagada próxima à escada de corrimão de ébano, que dá acesso aos aposentados do andar superior.
Os seios delicados, porém audaciosos de seu poder de sedução, apresentam-se alvos, firmes como duas taças transbordantes do néctar das mais tenras e perfumadas flores de montanha. As rígidas extremidades qual dois botões de rosas no centro das aréolas, parecem querer jorrar leite para fora do corpo ardendo em chamas. Um beija-flor de cores cintilantes volteia em tomo de um lírio na varanda. Tudo nesta habitação é um mar de delícias inexprimíveis.
Lucinéia, como acontece todas as noites, já por muitos e muitos anos, mais uma vez aguarda a chegada de seu convidado especial. Entre um suspiro e outro, imagina ardentes beijos molhados a percorrerem-lhe todo o corpo, enquanto sôfregas mãos desgrenham seus longos cabelos castanho-claros.
Entregar-se-ia completamente ao prazer do seu adorado homem. Nesta noite, seria como se em todo o Universo existissem apenas os dois e mais nada além do amor que os sustentava a cada amanhecer. E como eram lindas as manhãs nesse paraíso de inocência perdida!
Por um breve instante, Lucinéia contempla sua face no espelho posicionado em frente ao luxuoso sofá. Nele vê o reflexo de uma bela mulher, e disso tem plena consciência. Apesar de já ter adentrado na casa dos trinta anos, sua pele ainda permanece fresca com a de uma adolescente nos dias de maior esplendor. Os anos não conseguiram vencer o viço daquele corpo de beleza etérea. Sente um leve langor a invadir-lhe por completo, e cai sonolenta no sofá.
Uma brilhante lua cheia em sagitário principia a despontar no horizonte. Em um abrir e fechar de olhos, as águas do riacho circundante convertem-se em um magnífico mar de prata. Frondosos ciprestes balançam ao sabor da brisa. Existe uma magia inexplicável neste luar. Talvez fosse um luar idêntico ao que velou a primeira noite de amor de Adão e Eva, no Jardim do Edén onde foi acesa a primeira chama da paixão entre um homem e uma mulher.
Subitamente, o grande relógio da sala principiou as badaladas das vinte horas. Lucinéia levantou-se de sobressalto, ainda bastante sonolenta. Deveria arrumar-se, se é que conseguiria ficar ainda mais linda. Subiu as escadas com impaciência. Despiu-se demoradamente sentindo o leve roçar da roupa a sair-lhe do corpo.
Após banhar-se em uma banheira repleta de pétalas de rosas brancas, escolheu um vestido azul-turquesa que lhe caiu com uma luva, delineando cada centímetro daquele corpo que queimava de desejo ao menor toque.
Os cabelos agora, caiam soltos, lisos, suavemente perfumados sobre as costas alvas e desnudas. Sobre as pálpebras dos grandes olhos escuros, aplicou uma sombra da mesma cor do vestido. Um batom claro dava o acabamento final àquela mulher de soberba aparência.
Olhou-se demoradamente no espelho. Hesitou por um instante em colocar algum perfume ou não. Mas acabou decidindo por não usar nenhum perfume. Usaria sua própria essência de mulher. A única dentre todas as fragrâncias.
De repente, todo o Vale das Sombras cobriu-se de negras e pesadas nuvens. Um vento começou a soprar. Cortinas vermelhas de seda balançam contra as vidraças que refletem os clarões dos relâmpagos de uma torrencial chuva de inverno que cai nas proximidades do horizonte. Dentro de alguns instantes, choveria também sobre a morada de Lucinéia. Era como se as mágoas e as desilusões de toda uma vida pudessem ser lavadas nas águas turbulentas de um temporal.
E como havia sofrido Lucinéia. Como a vida lhe reservara os piores frutos. Mas sempre soube destilar mel das amarguras e converter as piores situações em bênçãos.
Os ventos uivantes que justigavam a velha mansão eram as vozes das saudades do passado misturadas às lagrimas da chuva que caiam copiosamente do firmamento. Por um instante, o clarão mágico de um relâmpago azulou-lhe toda a silhueta. Lucinéia estendeu o gracioso braço para fora da janela, e pode sentir todos os mistérios daquela chuva abundante e fria.
Por um breve instante pareceu ouvir uma voz chamar-lhe pelo nome naquela escuridão úmida. Não, não poderia ser. Pois quem se atreveria a sair em meio àquela tempestade? Interrogou a si própria convicta. Entretanto, aquela voz insistente a gritar todas as sílabas do seu nome ganhava cada vez mais força: Lu-ci-néia! Lu-ci-néia! Lu-ci-néia!
Era uma voz carregada de sentimentos, de saudades aprisionadas de toda uma vida. Desde que Francisco partira para a guerra há muitos anos atrás, todas as noites Lucinéia cumpria aquele mesmo ritual de arrumar-se toda, e esperar pela volta do amado na janela da sacada. Uma breve carta, há alguns anos atrás, havia lhe informado da morte trágica do seu homem, de como ele havia morrido heroicamente à frente da batalha. Mas, Lucinéia preferiu refugiar-se no devaneio da fuga a aceitar tal notícia. Somente as estrelas, especialmente as de brilho mais longínquo, que de tão distante talvez nem existissem mais, ao presidirem aquelas noites frias, podiam contemplar tanta dor e solidão.
Não, não possuía mais duvidas, existia de fato uma voz a chamar-lhe na escuridão. De súbito, o vulto de um homem alto montado em um corcel negro, iluminado pelo clarão prateado de um relâmpago, apareceu a poucos metros dos portões enferrujados da mansão. A tempestade diminuiu por um instante.
Lucinéia ficou como que paralisada por alguns instantes. Não podia acreditar naquilo que os seus olhos viam. Finalmente, o homem da sua vida estava de volta. Estava magro, abatido, um tanto envelhecido mas era o seu grande amor que a vida lhe havia roubado e que agora estava sendo devolvido. Por um momento, imaginou ter asas e pular dali mesmo da sacada, mas correu. Correu como um animal aprisionado que voltou a sentir o gosto da liberdade readquirida.
Francisco enlaçou-a em seus braços, e beijou-lhe os lábios com a ternura de um anjo imaculado. Palavras humanas não poderiam descrever a singeleza daquela cena. Enquanto a chuva caia como que abençoando aquele reencontro que já estava escrito nas estrelas.
Não suportando tanta emoção, ambos caíram de joelhos, e assim ficaram por longo período abraçados, colocados um ao peito do outro, sentindo o bater descompassado dos corações ardendo na chama da paixão. Não havia palavras. Havia apenas a face de um sobre a do outro, como se ambos constituíssem uma só fisionomia. A alegria daquele instante era algo para muito além de um fugaz instante de felicidade.
Francisco aninhou-a em seu peito, enquanto uma de suas mãos percorria os cabelos longos e molhados de Lucinéia, que estremecia a cada toque do homem de sua vida, neste momento que parecia ser o último instante de sua existência. Sim, ela poderia morrer ali mesmo, naquele momento de êxtase transcendental que resumia o melhor de todos os seus dias. Se fosse possível pesar em uma balança, todo sofrimento anterior não seria nada se comparado a tantas emoções vivenciadas naquela única noite de tempestade.
Logo depois, Francisco tomou Lucinéia em seus braços e juntos adentram às escadarias da velha mansão. Quantas noites, Lucinéia, revirando-se em sua cama, não havia sonhado com esse momento de plenitude íntima com o amado de sua vida. O desejo de estar um com outro nem que fosse pela última vez, era tudo o que mais queriam.
A tempestade cessou de repente. Uma forte brisa afastou de vez todas aquelas pesadas nuvens que até então cobriam o Vale das Sombras. A brilhante lua cheia em Sagitário ressurge no firmamento em todo o seu esplendor. Distantes raios prateados ainda incidem diretamente sobre os alvos lençóis da ampla e aconchegante cama de Lucinéia. Dois corpos amam-se na penumbra mágica daquele luar. Sapos, rãs e uma miríade de outras vozes, dentre aves noturnas e insetos, fazem fundo musical àquela cena única.
A fraca luz da alvorada surpreendeu os amantes adormecidos, extasiados de amor. Havia um perfume inexplicável pairando sobre a penumbra quente daquele quarto, outrora tão frio, mas que agora renascia sob as chamas ardentes da paixão.
Força alguma, em toda a extensão do Universo pode com a magia que une e sela para sempre dois corações. A própria morte vê-se obrigada a expulsar das abissais profundezas de suas entranhas o amor que um dia aprisionou, deixando a amarga dor da saudade no coração do amante cuja vida foi poupada e que passou a perambular sem sentido pelas errantes veredas do destino. Mas o próprio destino tem dia e hora marcada para aportar em algum lugar.
Os enferrujados portões da velha mansão do Vale das Sombras nunca mais serão abertos. Ali, naquele lugar mágico, esquecido pelo tempo, a felicidade estará aprisionada pra sempre junto às chamas do inexplicável e eterno amor de Lucinéia e Francisco.
A estátua imponente de um belíssimo corcel negro vigia a entrada desse santuário de paz eterna, enquanto um casal de pombinhos brancos brincam e trocam carícias sobre o dorso reluzente da majestosa obra de arte: artefato engenhoso das mãos do Grande e Infinito Criador do Amor.
Dieggo Enrique