O amuleto

Alastair tinha um belo e grande castelo no topo da montanha. Agora, não tinha mais e até onde todos sabiam, o próprio Alastair devia estar em algum lugar entre os destroços de sua negra morada, tão arruinado quanto todo o resto dos seus bens.

Movida por um sentimento que poderia ser tanto esperança quanto autodestruição, Angelique revirava as cinzas, mal se importando com as brasas que chamuscavam suas finas mãos, com a fumaça que fazia seu nariz e sua garganta se irritarem ao ponto de ela achar que o dono do castelo realmente devia ter muito mais para queimar além de alguns roupões de seda e vidros de perfume. Mas, olhando ao seu redor ela não conseguia identificar nada, tudo parecia fazer parte da mesma coisa, da mesma ruína: paredes empretecidas tombadas de encontro às paredes pretas da montanha, escombros fumarentos e cinzentos desfazendo-se sob seus pés, como a matéria decomposta do caminho pelo qual ela subiu, e o cheiro de queimado, coisas queimadas e uma fogueira feita com madeira e carne humana.

Angelique estremecia toda vez que pensava na fogueira que os homens de preto haviam feito, mais cedo, enquanto o sol estava no meio do céu. E com a luz do crepúsculo dando lugar à crescente obscuridade noturna, ela tinha receio de como e qual seria a vingança daqueles que haviam escapado ao horrível massacre.

Embora ela mesma houvesse se safado das chamas, não havia nada que a faria desejar ficar mais do que o necessário nessa terra hostil. Só até encontrar o amuleto que Alastair sempre usava. E não havia dúvida de que uma coisa como aquela pudesse sobreviver a um pouco de ódio incandescente.

Ela suspirou, afastando-se de um monte indefinível que devia ter sido uma cama, mas que agora era só uma coisa grande preta e esfarelante, pedaços dela presos ao vestido de Angelique, como marcas de mãos fantasma saídas das profundezas, de um mundo em constante incineração, com muito a ser queimado.

Um vento gelado soprou do leste, tocando a fumaça direto no rosto de Angelique. Ela tossiu, dando as costas para ele, indo em direção a outro monte de coisas queimadas. Aquele era o lado que dava para a vila, a porção de casinhas de teto sujo se espalhando além da floresta. Aquela era a parte mais perigosa do que havia sobrado do castelo, já que o incêndio havia feito com que tudo se inclinasse para o abismo, quase como se fosse certo que os restos mergulhariam na fenda sombria e desconhecida abaixo da montanha, tornado-se uma lenda.

Ela estava divagando demais, perdendo a concentração e estava ficando cansada de fuçar. Ela podia acabar passando a noite ali e isso não parecia bom. Não que estivesse com medo de que o espírito de Alastair aparecesse para assustá-la ou tentar persuadi-la a pular para a morte e segui-lo até o reino dos mortos... ela tinha certeza de que isso era improvável e impossível, porque Alastair havia dito que quando morresse ele iria dormir para sempre e sonhar como nunca havia sonhado antes. E ela tinha certeza de que onde quer que ele esteja, nunca mais sairá de lá, esse tipo de morte sendo decisiva para o tipo de vampiro que ele foi.

Não era doloroso pensar que ele estava morto, que podia estar remexendo suas cinzas nesse momento. Alastair sempre lhe pareceu estar além de qualquer coisa, da vida e da morte, tão inumano e insondável que era como se ao ser destruído ele houvesse passado para um plano superior...

Angelique se sacudiu mentalmente. Preste atenção, enquanto o céu escurece e as sombras crescem sobre a superfície da terra, mais aumenta o perigo.

Não era possível. Estava começando a achar que não conseguiria achar o que procurava. Ela havia sido tola em acreditar que pudesse ser capaz de salvar algo de bom dele.

Parecia que suas mãos afundavam em pura confusão, quando estavam sob o entulho, como se elas puxassem membros carbonizados em vez de madeira queimada, carne ressecada em vez de couro endurecido. Não queria admitir, mas estava sentindo medo de que pudesse encontrar o amuleto e, junto com ele, os restos mortais... não, isso seria improvável. Só haveria cinzas.

Angelique sentiu um arrepio. O vento, novamente. Frio e trazendo de longe um cheiro estranho, como o de carne mal-passada.

Ela voltou a sua tarefa mais concentrada do que antes, havia muita pressa agora. E se não achasse nada, desistiria e iria embora. Para onde, era um problema a ser resolvido depois.

A arcada do que deve ter sido o quarto de Alastair, caíra pela metade, o resto ficando precariamente preso ao que sobrou da parede. Rachaduras se definiam distintamente na superfície do mármore. Era como se o castelo tivesse sido atingido por um raio e se tornado isso que agora se destacava na face da montanha. Angelique passou rapidamente sob o meio arco, atenta a qualquer ruído suspeito.

Que bagunça! Estava tão destruído quanto o resto do castelo, talvez mais. Nenhum vestígio do que fora antes, nem algo para dar uma ideia a Angelique do lugar onde ele dormia, ou estudava, ou da janela pela qual voava para a noite.

Ela continuou sua busca, mesmo sentindo que não encontraria nada. Até que tropeçou e caiu sobre um alçapão. Só foi perceber do que se tratava quando ouviu o som de madeira oca. Madeira inchada e terrivelmente queimada, mas era uma porta, com uma argola de metal, ainda quente, em sua superfície.

Angelique se ajoelhou e puxou com força a argola. Se a madeira não estava tão queimada, quase ao nível de se tornar carvão, ela não teria conseguido mover a porta um centímetro que fosse, mesmo assim, foi uma ação que exigiu toda a sua força e determinação.

A madeira caiu de lado, presa por dobradiças pretas, revelando um buraco retangular no chão, escuridão e frio emanando do interior dele.

Ela estava perto, podia sentir. Uma reviravolta e tanto na sua jornada e talvez ela obtivesse sucesso. Talvez. Mas não podia deixar de ficar esperançosa. Em sua mente, lembrava-se de Alastair, com o vistoso cabelo louro-claro, dançando na clareira, sob a luz lunar, o brilho do cordão de metal despontando um pouco ao redor de seu pescoço muito branco. E os dentes de vampiro surgindo entre os lábios enquanto ele sorria, tão vivo. Tão predatório.

Angelique se debruçou na beirada do buraco, a câmara onde Alastair devia repousar todos os dias. Será que o fogo o havia alcançado? Ou será que havia chance de ele estar vivo, lá embaixo?

Vivo e terrivelmente ferido.

Angelique colocou a cabeça o mais baixo que pode além da borda, tentando divisar sombras de sombras e ver onde estava o chão naquela cova. Para sua surpresa, encontrou os restos de uma escada, muito próxima de seu rosto. Queimada, queimada. Ela sentiu um nó em seu coração.

Contrariando todos os ensinamentos que os homens de preto vinham disseminando pela região, ela simplesmente desceu para o interior do esconderijo de um vampiro, tomando cuidado para não tropeçar com a pressa que fazia seus pés quererem correr.

O ar sob a superfície estava mais limpo e livre de fumaça, mas o cheiro de queimado persistia. Pouca coisa devia ter sofrido com o fogo ali embaixo. Era uma câmara fria, escura, escavada na pedra da montanha.

Ele deve ter escavado com as próprias mãos, ela pensou. Sentindo um orgulho estranho. Era comum os vampiros fazerem isso, cavar eles próprios o seu esconderijo sob a terra.

Ela sentiu não ter trazido um lampião, uma fonte de luz que fosse, tinha medo de pisar num buraco e cair... eternamente, desaparecer dentro do coração da montanha.

Como uma sonâmbula, ela caminhava com os braços estendidos e as mão tateando o vazio a sua frente.

Que lugar grande. Onde estavam as paredes? Ou aquilo seria um túnel? E se ela se perdesse?

Se ela se perdesse, ela deitaria no chão e dormiria ali mesmo, sabendo que o lugar onde Alastair havia dormido o seu último sono devia ser suficientemente seguro para ela, pelo menos por uma noite.

Suas mãos finalmente depararam-se com alguma coisa. Alguma coisa sólida e lisa. Metal. Ela percorreu os dedos por ele, tentando adivinhar o que era.

Parecia uma porta. Ela andou e descobriu que era sólido demais para ser uma porta. Só por que estava em pé não queria dizer que era uma porta. Devia ser...

Um esquife! É um esquife de metal!

Ela deu um grito na escuridão e começou a procurar desesperadamente por alguma coisa que a ajudasse a abri-lo. Uma saliência, um puxador, uma ranhura que fosse, mas não havia nada. O caixão devia ser aberto por dentro. Claro, para o caso de algum humano encontrá-lo e tentar arrancar de dentro dele o seu segredo.

E Angelique não conseguiria o que ninguém no mundo seria capaz de fazer nesse momento. Não havia mais nada que pudesse ser feito. Ela chegou até ali conservando um fio de esperança e agora ele foi completamente desfeito. Desintegrado. Partido.

Parecia injusto que ainda estivesse viva e tentando manter-se viva. A luta parecia difícil demais. Difícil demais por estar tão sozinha. Não havia ninguém que pudesse ouvi-la se lamentar e mostrar-lhe o quão boba era por estar perdendo tempo com lamúrias inúteis, enquanto o que queria estava a um passo de distância...

Ideia. Louca ideia. Terrivelmente louca ideia e talvez acabasse matando-a, mas não lhe custaria nada tentar.

Angelique engatinhou até a parede e achou nela uma saliência afiada o bastante para cortar sua carne e friccionou a palma da mão sobre ela até sentir a pedra perfurar, a pele arder, queimar, e o sangue começar a empapar seus dedos. Ela encostou e esperou, ciente de que se Alastair estivesse vivo, se ele conservasse um pingo de vitalidade, ele iria sair sozinho do ataúde atrás daquilo que provocava o seu impulso mais básico.

Angelique só podia esperar que ele ainda possuísse um mínimo de razão para que não acabasse com ela. Que ele ainda se lembrasse de quem ela era.

Ela esperou, não enxergando nada além de escuridão. Seus ouvidos mais atentos do que nunca, a mão vertendo sangue a seu lado.

Um distinto arranhar ganhou vida.

Era um som arrepiante. Unhas atacando o metal. E ela de repente se sentiu incerta, confusa, a ideia de despertar um vampiro faminto usando seu próprio sangue parecendo ter sido a pior decisão que já tomou em toda a sua vida.

Ela invocou a lembrança de Alastair na clareira. Seu riso cristalino. Suas feições suaves. Seu olhar algo benéfico.

Os dentes pontiagudos que rasgavam carne em busca de sangue.

Mas ele se lembrará de mim!

O olfato que o fazia achar qualquer resquício de sangue, na floresta, de qualquer animal ferido.

Eu não sou alimento para ele!

Ele é apenas um vampiro.

E ele estava abrindo a porta de sua derradeira e absoluta morada.

Angelique prendeu a respiração. Um cheiro horrível de carne assada penetrou em suas narinas e ela virou o rosto, espremendo-se contra a parede de pedra.

Ela ouviu o som de metal rangendo e outro som que lembrava as pisadas de um cavalo em solo macio. Um som pesado, lento, que acertava em cheio o seu coração.

Um suspiro rouco ecoou na cripta, partindo-se rapidamente.

Terrivelmente ferido. Mas vivo.

Angelique não se mexeu enquanto a coisa se aproximava. Correr seria pior. O cheiro de carne assada piorava a medida que Alastair caminhava trôpego em sua direção. Ela não conseguia vê-lo, mas o silêncio e o som que denotava os movimentos dele lhe contavam que levaria muito tempo até que ele pudesse se lembrar de quem ela era. Ou de quem ela havia sido. De certa forma, ela já havia deixado de existir para o mundo lá em cima. E não havia nada que ela pudesse fazer para mudar isso.

Alastair não era um morto-vivo, não era um ser rastejante, mas seu corpo alquebrado rastejou até a fonte cheia de sangue a sua frente, inconscientemente. Angelique o sentiu pegar em sua mão, sua pele como uma crosta áspera, seu dedos como garras.

E ele deu a primeira mordida, seus dentes rasgando a mão de Angelique, fazendo com que ela gritasse, mais de horror do que dor, embora a dor fosse algo terrível e se pronunciasse através de cada pedacinho flagelado por aqueles dentes afiados.

Alastair, o doente e ensandecido Alastair abraçou sua presa com braços calcinados e violentos, prendendo-a com sua força sobre-humana e sorvendo seu sangue delicioso e restaurador, a sede dominando cada fibra de seu corpo monstruoso.

E quanto ao amuleto, a jóia dourada, suja de carvão feito de carne e cabelo e roupas destruídas do vampiro, essa balançava contra seu peito oco, como um chocalho para os mortos penitentes, tocando sua fúnebre e perpétua melodia.

Andhromeda
Enviado por Andhromeda em 07/08/2010
Reeditado em 18/06/2011
Código do texto: T2424054
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