QUANDO OS ANJOS CAEM

“Por que os anjos caem? Estão abandonando o céu, estão abandonando o inferno, estão aprendendo a voar!”

O Jovem de cócoras sobre o banco do parque, na mesma posição que a estátua angelical ao lado, observa atentamente as crianças jogando bola no campo próximo e os transeuntes que passeiam pelo parque.

– Não devia estar aqui! – fala uma voz firme de um sujeito estranho que a pouco não estava ali, se equilibrando de cócoras sobre a cabeça da estátua angelical.

– Olá Zuzu! – retruca o jovem sem sair de sua posição.

O sujeito estranho, que agora já se encontrava sentado na grama aos pés da estátua continuou firme em sua repressão:

– Sabe o que acontece quando vocês teimam em vir aqui não sabe? É melhor você ir andando antes que...

– Quis ver a luz novamente, será que é pecado, a quanto tempo não ouço sorrisos e sinto a paz que sinto aqui... nesse momento. Lá só há tristeza e lamentos. Por que Zulefrax, por que isso?

A pergunta fica sem resposta, os dois ficam em silêncio durante um tempo. Um dos garotos chuta a bola para fora do campo, ela rola e para aos pés do banco, o jovem permanece de cócoras na mesma posição, enquanto os garotos olham para os dois, Zulefrax se levanta pega a bola e chuta de volta para os garotos, que retornam ao jogo, e retoma a conversa:

– Ah! Achaiad, você é muito jovem, não estava pronto para ficar junto aos humanos. A culpa é minha. Eu devia ter tomado mais cuidado com você, justo você forjado da inocência e da ternura. Os homens são capazes de impregnar e destruir qualquer um com seus sentimentos mundanos.

Por um instante um silêncio se abate sobre os dois, e só se ouve o barulho das crianças e dos transeuntes, um forte vento chega ao parque e nuvens começam a encobrir o céu, sufocando o belo dia.

– Será que é justo Zuzu, ser punido por amar? Será que é pecado ficar com alguém que se ama, não lutamos por isso, não é isto que nós devemos cultivar.

– Amar não é pecada meu amigo, mas descer aos infernos e de lá tirar uma alma condenada é gravíssimo vai contra a ordem. Ainda podemos salva-lo diga onde está a alma da garota, talvez consigamos abrandar sua pena, por favor Achaiad, faremos isto juntos, estarei com você.

Um novo silêncio se abate, as nuvens libertam a luz para que possa tocar novamente o solo, e o forte vento se converte em uma leve brisa. Zulefrax se encontra agora sentado ao lado de Achaiad que permanece na mesma posição sem ao menos desviar seus olhos dos garotos, e mantendo-se assim responde esboçando um leve sorriso:

– Sabe muito bem que não lhe ouviriam meu velho mentor, eles não te levam a sério, não nos levam a sério...

– Não diga uma coisa dessas!

– Nem se eu quisesse poderia devolve-la, ela faz parte de mim agora, fundi nossas essências, e estaremos juntos por toda a eternidade agora, você falhou.

Zulefrax já não estava mais ao lado de Achaiad, estava atrás do banco sentado no chão de cabeça baixa, não respondeu à provocação de seu ex-pupilo. Diante do silêncio, Achaiad pode sentir a tristeza de seu interlocutor, e foi mais fundo em sua percepção chegando a perceber sua real missão:

– Você não veio para me convencer não é Zu?

– Não. E você não veio aqui só para apreciar a paisagem não é? – retruca o anjo se levantando, num misto de hesitação e agonia, se não fosse um anjo poderia até chorar.

– Lá é tão triste e angustiante, é a danação eterna, quero paz.

Neste momento uma forte tempestade desaba do céu, o vento sopra forte, e a bela paisagem ensolarada se converte num instante em um escuro dia de chuva. Todos correm para se proteger deixando o parque sem uma viva alma. Ensopado, Zulefrax contorna o banco e para diante de seu interlocutor, desembainha sua espada crepitando em chamas que ignoram as pesadas águas que caem sobre ela. Ambos estão frente a frente e pela primeira vez Achaiad movimenta-se olhando nos olhos de seu ex-mentor, que transmitiam uma forte hesitação e um desejo de chorar:

– Parece que não fui só eu quem sucumbiu aos sentimentos mundanos Zu. – as palavras ditas por Achaiad sumiam numa voz tremula, que anunciavam o choro, e ele continua, firmando a voz – Os humanos são tão afortunados, “será que existe vida após a morte?” eles sempre se perguntam, e não se decepcionam quando nos...melhor... quando lhes vêem chegando para conduzi-los. E agora eu lhe pergunto meu velho, existe?

Zulefrax segura firme o punho de sua espada e se vira com um golpe certeiro arrancando a cabeça do jovem Achaiad. Enquanto o corpo decapitado se consome em chamas, o anjo responde à pergunta, com a voz quase sumindo:

– Para nós não meu garoto, só para os homens.

A espada é logo embainhada enquanto a forte tempestade se converte em nada mais do que uma garoa. Zulefrax encara a estatua que parece olhar fixamente para ele, e como num desabafo, solta uma única palavra, num tom extremamente agressivo:

–Satisfeitos!?

Enquanto o corpo decapitado perece em chamas, o anjo se põe a caminhar, em direção ao campo outrora ocupado pelos garotos, o céu não verte mais nenhuma gota d’água, e prepara-se para abrir novamente, Zulefrax não se contém e se põe a assoviar uma velha canção entoada em honra aos anjos que morrem em batalha, uma última homenagem ao jovem Achaiad.

Getúlio Costa
Enviado por Getúlio Costa em 31/07/2010
Reeditado em 27/08/2012
Código do texto: T2410482
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