MORDIDO EM VENEZA (Parte I)

NOTA DO AUTOR:

• Os nomes de meus personagens são fictícios, contudo os sobrenomes pertencem à famílias que realmente existiram;

• Minha estória teve base em estudos do Asetianismo ou Aset Ka, que é uma seita religiosa ocultista egípcia, ligada às práticas vampíricas baseadas na Bíblia Asetiana;

• Algumas falas de meus personagens foram mantidas como a lingua natal do país em que a trama se desenvolve, para dar mais verossimilhança à estória. Por isso, a tradução está entre parênteses;

• Minhas pesquisas foram feitas nos seguintes sites:

www.wikipedia.org/Aset_Ka;

www.asetka.org/index.shtml;

www.googleearth.com;

www.gothznewz.com.br

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Veneza - 1755

Meu nome é George Henry Seymour, Lord de Kent. Tenho, atualmente, dezenove anos. Depois de relutar muito, resolvi escrever a curta história de minha vida nestas amareladas folhas, pois algo horrendo aconteceu comigo. Ou melhor, com a minha alma; minha vida.

Começarei agora. Você pode parar de ler neste instante, pois não irá acreditar em mim. Mas, se começar a ler, acredite mim; pois até agora eu não acredito que isso aconteceu comigo. Tudo não é o que parece ser...

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Voltarei a julho de 1753, Londres. A Corte do Rei George I liberou minha família para que meu pai Sir William Seymour, duque de Kent, fosse cuidar de uma revolta em suas terras. Minha mãe, duquesa Elizabeth Seymour, sempre relutante em suas decisões, não aceitava a ida de nossa família para um pequeno campo de guerra no ducado de Kent desguarnecida. Ela recorreu ao rei para que enviasse junto à comitiva de minha família alguns guardas e cavaleiros para auxiliar na proteção, principalmente a dela.

Chegamos em Kent no outro dia pela manhã. Nossa comitiva chamou a atenção dos camponeses revoltos que trabalhavam para meu pai. Eles não acreditavam que a própria Guarda Real veio a Kent para ajudar a um escroto e carrasco duque que só pensava na ascensão política e social. Sim, eu sei. Não deveria falar de meu pai dessa forma, mas ele sempre foi rígido com todo mundo.

Os rebeldes não gostaram do apoio real ao meu pai. Mas, eles também tinham ajuda: outros camponeses com famílias enormes guarnecidas de foices, facas, espadas, facões, tochas, e outros artifícios campesinos. Meu pai não quis acordo; ordenou aos soldados que atacassem e suprimissem a rebelião, pois estavam "afligindo a paz do reino".

O massacre foi injusto. Obviamente, a Guarda venceu e controlou a rebelião. Os revoltosos que sobreviveram foram presos e levados a Londres para julgamento. Mas, meu pai não saiu totalmente vitorioso: fora ferido gravemente por uma facada no tórax. Ele ficou sete dias de cama. Médicos de outros condados e até da corte foram a Kent para tentarem vetar a vontade de Deus. Eu não estava em casa quando faleceu. Tinha ido dar uma volta no bosque particular da família Seymour, como se soubesse que o anjo da morte iria chegar naquele mesmo dia.

Seu funeral fora digno de pompa. O Rei George I mandou que ele fosse sepultado na Abadia de Westminster.

Meu irmão mais velho, Lord Phillip Henry Seymour, assumiu o posto de meu pai na corte e no ducado. Minha pobre mãe pediu clemência à corte para que a liberasse para morar em Kent, pois não iria aguentar viver na corte, pois lembraria sempre de seu marido morto.

Seu pedido foi atendido, pois eram uns xelins a mais para o cofre real. Ela morreu um ano após a morte de meu pai. Tinha contraído pneumonia. Não aceitou médicos em nossa casa, somente padres, pois era "a vontade de Deus".

Fiquei bastante ressentido com a morte de minha mãe. Por isso, enviei uma carta a meu tio que mora em Veneza para que me aceitasse em seu palácio para esquecer os terríveis acontecimentos que vivi.

Ele respondeu alegremente que seu sobrinho iria ser bem recebido no palácio mais elegante de toda Veneza e que, talvez, poderia arriscar algum casamento para mim. Não me demorei em Londres. Meu irmão, sem delongas, despediu-se de mim com um breve "fique por lá". Bem, nunca fomos amistosos um com o outro. Fui a Veneza na mesma noite.

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A viagem foi um pouco longa e desconfortável. O mar estava bravio e a morte de um marinheiro por escorbuto aumentou a tensão da viagem. Fizemos uma parada em Portugal, depois passamos pelo Estreito de Gibraltar e pela Península Ibérica. Avistamos as ilhas Sardenha e Sicília. Não sabia que a Europa era tão bela. A duração foi de três dias.

Cheguei pela manhã. Confesso que fiquei extasiado ao ver o porto de Veneza, estava lotado de pessoas e de navios de vários países. Podiam-se ouvir os gritos dos marinheiros e estivadores ao longe; sentir os cheiros de especiarias do Oriente, perfumes da França; apreciar os tecidos do Marrocos e o gosto do chá de minha terra natal.

Desci da nau e caminhei pelo pátio sujo do porto. Mas, a variedade de idiomas que outros nobres falavam enquanto eu andava, mostrava que a refinada e elegante Veneza sabia ser uma excelente anfitriã. Um jovem carregador de quatorze anos ajudou-me com minhas malas.

- Aonde posso pegar uma embarcação? - perguntei ao garoto.

Olhou-me com ar de dúvida.

- Mi scusi signore, non capisco la loro lingua. (Desculpe-me, senhor, eu não entendo a sua língua). - respondeu-me.

Também não o entendi. Peguei a carta do meu tio e tentei falar-lhe em italiano:

- Palazzo Ca' Rezzonico. Canal Grande.

O garoto riu do meu sotaque e da minha péssima dicção.

- Sì, ora capisco. Hai bisogno di affittare una gondola. Venga con me. (Sim, agora eu entendo. Precisa alugar uma gôndola. Venha comigo).

Ele puxou-me pelo braço. Seguimos até uma área de desembarque do porto. Havia várias gôndolas. Apontou para uma gôndola de cor vermelha.

- Questo gondola appartiene a mio padre. Essa vi porterà al Palazzo Ca' Rezzonico. (Esta gôndola pertence ao meu pai. Ele irá levá-lo ao Palazzo Ca 'Rezzonico).

Entendi apenas a última palavra.

- Sim, sim. "Palazzo".

O garoto ri e grita para o pai.

- Padre, prendere questo uomo a Palazzo Ca' Rezzonico! Lui è inglese, non capisce niente. (Pai, leve este homem ao Palazzo Ca 'Rezzonico! Ele é inglês, não entende nada).

O homem esboça um sorriso e fala fazendo gestos:

- Signore vieni, vieni. Imbarcati in gondola più accogliente di tutta Italia! (Senhor, venha, venha. Embarque na gôndola mais acolhedora de toda a Itália!).

O garoto põe meus pertences na gôndola. Dou-lhe algumas moedas de câmbio. O jovem olha extasiado para a quantia e agradece-me alegremente.

- Grazie, grazie! Dio vi benedica! (Obrigado, obrigado! Deus te abençoe!).

E saiu correndo pelo longo pátio do porto. O homem gordo da gôndola ajudou-me a embarcar. Apresentou-se como Agostino Bellini. Era um homem simpático, falava muito e ainda cantou para mim durante o trajeto. O sol estava a pino, mas a temperatura era agradável. Passei a maior parte do roteiro olhando a cor verde-esmeralda da água do canal em que navegamos. Outras gôndolas passavam ao nosso lado, mostrando as lindas mulheres italianas. Podia-se ouvir os sinos dobrarem nas igrejas. Veneza é uma obra-prima divina no meio da Itália.

Em certo ponto, Agostino conduziu a gôndola à esquerda e falou em voz alta:

- Benvenuti sul Canal Grande! (Bem-vindo ao Canal Grande!)

O Grande Canal era magnífico! Ao longo do seu trajeto, enormes construções foram erguidas. Olhava em volta deliciando-me com a paisagem. Ao invés de ruas e carruagens, havia água e gôndolas. Era uma paisagem perfeita.

Não me dei conta quando a gôndola parou em frente ao palácio de meu tio. Uma construção de dois andares com quatorze janelas e a ornamentação era de mármore branco.

Agostino já colocava as minhas malas próximo à porta de entrada. Quando cheguei ao patamar de entrada, meu tio aparece. Vestido pomposamente, fala alegre:

- Nipote! Mio caro nipote! Andiamo a! (Sobrinho! Meu sobrinho querido! Entre!).

Ele insistiu a pagar Agostino. Este se despediu de mim. Um criado apareceu à porta e levou meus pertence para dentro do palácio.

Meu tio me abraçou fortemente e conduziu-me ao salão de visitas. Os cômodos do palácio eram bastante espaçosos e mobiliados ricamente. Entramos de supetão no salão e duas mulheres estavam sentadas num largo sofá.

- Maria, questo è il mio nipote Giorgio. (Maria, este é o meu sobrinho George). - apresentou-me.

A mulher mais velha aproximou-se e estendeu a mão para que eu beijasse.

-Il piacere, signor Seymour. Benvenuti nella mia casa. (Prazer, senhor Seymour. Bem-vindo à minha casa). - disse a mulher.

- Esta é a minha esposa, Maria Della Torre-Rezzonico. - disse-me meu tio.

A outra mulher apresentou-se por si mesma.

- Io sono Augusta Della Torre-Rezzonico, sua cugina. (Sou Augusta, Della Torre Rezzonico, sua prima).

Beijei-lhe a mão e olhei para seus olhos verdes. Ela era belíssima.

- Esta é a sua prima Augusta. - disse meu tio.

Encantei-me de imediato com a beleza de minha prima. E a mulher do meu tio percebendo que eu olhava indecentemente para jovem, conduziu-a a outro cômodo com uma frase gélida em inglês.

- Espero que aprecie Veneza, signor Seymour.

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Meu tio conversou a maior parte do dia comigo. Perguntou sobre meu irmão, a Inglaterra, o rei George I, de Kent, do funeral de meus pais e se eu tinha alguma pretendente.

Respondi-lhe amigavelmente. Bebericamos algumas bebidas da Itália, apresentou-me sua coleção de arte, o resto dos cômodos do palácio menos o da minha prima.

Guiou-me a meu novo quarto. Era maior do que eu tinha na corte inglesa. Tinha bastante candelabros, tinha uma enorme cama, sofás de espaldar alto, uma escrivaninha e uma enorme janela que mostrava o belíssimo Grande Canal.

- Aproveite. - disse meu tio fechando a porta.

Iria tomar banho para jantar. Os empregados já tinham arrumado minhas vestimentas no largo guarda-roupa. Escolhi a minha melhor roupa. Amarrei minha longa madeixa numa fita de seda de cor preta. Desci as escadas e fui conduzido por um pajem até o salão de jantar. Meu tio tinha um belo gosto pelas artes. Muitos quadros espalhavam-se pelas paredes do cômodo, espelhos davam ideia de ser um ambiente ainda maior. Enquanto a longa mesa estava farta de refeições requintadas.

Meu tio estava à cabeceira da mesa e pediu que me sentasse. Fiquei olhando os talheres de prata lustrosos. Escutei a porta abrindo-se e as duas mulheres entraram elegantemente. Maria sentou-se na outra ponta da mesa e Augusta de frente para mim.

Senti meus pulmões falharam, mas policiei-me para que fosse discreto nos olhares.

Começamos a comer.

Tio John quebrou o silêncio entre nós, pois estava ficando desrespeitoso.

- George, qual máscara irá usar? - perguntou ele.

Augusta olhou para mim. Percebi seu olhar.

- Eh... Bem... Máscara? Por quê? - gaguejei.

Meu tio deu uma gargalhada, sua esposa bufou e Augusta apenas sorriu. Um belo sorriso.

- Meu caro sobrinho, por que Veneza é tão famosa? Por causa do carnevale! Carnaval! A festa pagã que a igreja também participa. Todos de nossa casa irão participar, portanto você também. Amanhã, você irá comprar uma bela máscara e Augusta irá ajudá-lo a escolher. - disse apontando para mim.

A senhora Maria tossiu em forma de protesto, mas meu tio não deu ouvidos.

- Talvez seja melhor eu ficar. Não quero atrapalhar sua família, tio John. Não me interesso por festas. Fui criado na Corte Inglesa, que é festiva, mas nunca gostei de ser mais um nos salões. - respondi francamente.

Meu tio limpou seus grossos lábios com um guardanapo de algodão branco e falou:

- George, você está na República de Veneza. A Inglaterra com seu dinamismo puritano o afetou. Por isso, quando eu tinha sua idade, deixei a Inglaterra e minha família para trás e resolvi vir para cá. E dei-me muito bem. Casei com Maria que pertence a uma das famílias mais ricas e influentes de Veneza. Meu jovem, você sofreu muito com a morte de seu pai e minha irmã. Então, você está com a oportunidade de esquecer tudo isso e tentar aproveitar a sua vida. Amanhã, mandarei uma gôndola vim buscá-los para comprarem a máscara.

Levantou-se e tocou em meu ombro. Entendi que era para acompanhá-lo.

Fomos à sua câmara privada. Como de costume, muitas obras de arte. Ele pegou duas taças de cristal e uma garrafa de brandy.

- Para a nossa diversão. - disse ele.

Conversávamos quando uma leve batida nos interrompeu. Augusta abre a porta e fica no centro do cômodo.

- Mi dispiace interrompere la conversazione. Ma, vorrei augurare loro una buona notte. (Desculpe-me interromper a conversa. Mas, desejo-lhes boa noite). - falou ela olhando para o chão.

Olhei para meu tio.

- Ela pede desculpas pela interrupção e deseja-lhe uma boa-noite. - traduziu.

Não sei de onde veio, mas senti vontade de ir até ela. E fui. Beijei-lhe a mão.

- Buona notte, mia cara. (Boa noite, querida). - sussurrei-lhe.

Ela sorri e fala:

- Obrigada e até amanhã.

Vira-se rapidamente e sai do cômodo. Olho para meu tio e pergunto:

- Por que não a ensinou falar em inglês?

Ele sorri.

- Ela sabe falar inglês, francês e espanhol. Ela insiste em falar italiano na sua frente por causa de minha esposa que é muito nacionalista e não entende quase nada de inglês. Mas, acho eu, que ela também quer supervisionar as conversas de “mio angelo”.

Continuamos a beber e conversar até tarde da noite. As velas estavam quase no fim e meu tio, finalmente, entregou-se ao sono. Fechei a porta devagar e subi as escadas em direção ao meu quarto. Queria estar acordado cedo pela manhã para ver minha bela prima.

Despi-me rapidamente e deitei-me na enorme cama. Não pensei em nada. Queria apenas sonhar com Augusta.

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Pela manhã, serviram meu café da manhã na cama. Alimentei-me rapidamente. Tomei um banho quente rápido e vesti roupas limpas. Estava pronto. Desci as escadas, cumprimentei os empregados e esperei a minha madona. Minutos de espera valeram a pena quando a vi descendo os degraus delicadamente. Usava um belo vestido de cor amarela. Estava bela. Mas, meus preceitos desapareceram quando senhora Maria apareceu atrás dela. Iria conosco.

Cumprimentei as duas num italiano ridículo. Maria não respondeu, mas Augusta sorriu. Era o que eu precisava ver.

Subimos na gôndola, e fomos guiados pelo Grande Canal. Elas abriram suas sombrinhas, para se protegerem do sol, e abanavam-se com seus leques nipônicos. Eu sentei-me de frente para ela. Sua face rosada exalava um belo perfume francês. Seu decote, bem, era magnífico. Com um leve movimento, ela apontou para as construções e disse-me:

- Sul Canal Grande, sono state costruite residenze delle famiglie più ricche di Venezia. (No Grande Canal, foram construídas residências das famílias mais ricas de Veneza).

Olhei para lado e deslumbrei-me com as construções, com arte requintada. Olhei para ela novamente.

- O que significa? - perguntei envergonhado.

Sua mãe abana mais rapidamente seu leque em forma de aborrecimento. Augusta sorri.

- O Grande Canal é o endereço mais nobre de Veneza, aqui se encontra as residências das famílias mais importantes e ricas de Veneza. - explicou-me.

Assenti com a cabeça.

Muitas pessoas em outras gôndolas cumprimentavam as duas mulheres. E elas respondiam graciosamente.

- Seu pai me falou que sua família é muito prestigiada aqui em Veneza. - instiguei a conversa.

- Oh, sim. Minha família, Della Torre-Rezzonico, é descendente de uma família lombarda. Somos especialistas no comércio com o Oriente. Papai, segundo ele, veio da Inglaterra para "aventurar-se" pela Europa. Conheceu minha mãe numa "mascherata” e a pediu em casamento. Meu avô não era a favor. - ela riu - Mas, ele nunca deixou de ajudá-los. Um dia ele parabenizou meu por "ter feito uma menina muito bonita". Ele faleceu há poucos anos. Bem, resumidamente, esta é a história de minha família. - disse ela sem querer prolongar-se.

Ficamos em silêncio. Mas, ela resolveu dizer algo a mais.

- Eu fiquei triste em saber que sua mãe, duquesa Elizabeth, tenha morrido de pneumonia. Nunca cheguei a conhecer seus pais. Papai dizia que, bem, o seu pai não era um homem "educado", era um desperdício a duquesa ter casado com ele.

Sorri com a colocação dela. A gôndola balança muito em certos trajetos, mas não chegava a atrapalhar nossa conversa.

- Meu pai sempre viveu na Corte. Sua mãe, lady Carrey, sempre ensinou bons modos a papai e a seu irmão que faleceu num naufrágio. Então, ele se tornou uma pessoa amargurada, dura. No dia de sua morte, minha mãe disse que ele pediu perdão às pessoas que estavam no seu leito de morte. Ele perguntou por mim, mas não estava presente. Arrependo-me até hoje. - disse tristemente.

Inesperadamente, Augusta pegou na minha mão em forma de confortar meu pesar. A senhora Maria olhou furiosamente para Augusta. Bateu com o leque na mão da filha. Olhei para Maria e depois para Augusta.

- Está tudo bem. - disse afastando minha mão.

Finalmente a gôndola chegou ao local que iríamos comprar a máscara. Insisti para pagar a viagem, mas Maria foi mais rápida e seca.

- Onde estamos? - perguntei

- Piazza San Polo. (Praça San Polo).

Olhei em volta. Muitas pessoas entravam e saiam das lojas. Alguns pombos davam rasantes em nossas cabeças.

Entramos na loja bem iluminada. Tinha uma placa com letras douradas que dizia "Prodotti Federico". Um homem por volta dos cinquenta anos veio nos receber.

- Buon giorno! Signora Rezzonico, è un immenso piacere averti nel mio negozio umile. (Bom dia! Senhora Rezzonico, é um imenso prazer ter você em minha humilde loja).

Com movimentos graciosos, Maria falou-lhe:

- Il mio piacere signor Federico. Vorremmo scegliere una bella maschera per questa coppia. (O prazer é meu senhor Federico. Viemos escolher uma bela máscara para este rapaz). - disse ela indicando-me.

O homem de longo bigode veio até mim e começou falar. Não entendia nada. Maria falou ao homem, de forma irônica, que eu não era italiano.

O homem deu um longo sorriso. O impasse estava feito. Mas, Augusta, como um anjo, propôs ser minha tradutora; com desaprovação da mãe.

- Che maschera vuoi? Ne ho uno che è venuto dalla Cina, una meraviglia! Ha alcune rubino placcato oro incrostato. Mi piacerebbe vedere? (Que máscara você quer? Eu tenho uma que veio da China, uma maravilha! Tem alguns rubis incrustados em placa de ouro. Gostaria de ver?). - perguntou o comerciante.

Olhei para a Augusta.

- Ele está perguntando se você gostaria de ver uma máscara banhada a ouro e incrustada de rubis que veio da China. - ela traduziu rapidamente.

Assenti. O homem fez uma mesura e foi aos fundos da loja. Demorou alguns segundos, e trazia nas mãos uma bela caixa de madeira lustrosa. Aproximamo-nos dele. Ele a abriu e mostrou o tesouro de Pandora.

A bela máscara refletia a luz que vinha de fora. Os rubis rodeavam o espaço destinado aos olhos. Maravilhei-me com o pequenino tesouro. O homem sorria orgulhoso.

- Quanto custa? - perguntei olhando para Augusta.

- Cosa? - perguntou ela sem tirar os olhos da máscara.

Ele disse o preço do luxo. Senhora Maria suspirou, Augusta não demonstrou surpresa e eu, novamente, fiquei sem entender.

Senhora Maria puxou a filha para a porta de entrada e disse rispidamente:

- E 'assurdo! Quella maschera vale una piccola fortuna! Non voglio comprare. Segnala l'inglese che è meglio scegliere un altro. (É um absurdo! Essa máscara é uma pequena fortuna! Eu não vou comprar. Diga ao inglês que é melhor escolher outra).

Augusta olha para a mãe e, pela primeira vez, a vi falar contra sua mãe.

- Mamma! Guardalo. Gli piaceva la maschera. Papà ha detto che potrebbe acquistare che assumerebbe i costi. Porntanto, lui obbedì. (Mamãe! Olhe para ele. Ele gostou da máscara. Papai disse que ele poderia comprar que assumiria os custos. Porntanto obedeça-o).

Augusta virou-se e veio em direção nossa direção. O comerciante percebendo que o clima estava tenso entre as duas mulheres, ele falou:

- Bene, se si desidera acquistare una tonalità più economico, portare uno. Mi sono ricordato che la signora Bartonni voleva arrivare questa maschera. (Bem, se você quiser comprar uma máscara mais barata, pegarei uma. Lembrei-me que a sra. Bartonni queria essa máscara).

A senhora Maria olhou para o comerciante e perguntou espantada:

- Signora Bartonni?

O comerciante confirmou.

- Iiremos acquistarla immediatamente. (Iremos comprá-la imediatamente). - disse ela.

A jogada do comerciante deu certo. O comerciante apertou a minha mão parabenizando-me pela compra. Augusta estava sorrindo o tempo todo, pois estava achando graça das minhas feições de dúvida.

- O que está havendo? O que sua mãe disse? - perguntei a Augusta.

- Depois lhe conto. - replicou ela.

Senhora Maria assinava uma representação bancária em nome de seu marido para que o comerciante fosse cobrar o valor no outro dia.

- Agradeça à senhora Bartonni por sua compra. - confessou-me Augusta.

- Bartonni? Por quê? - perguntei intrigado.

- Minha mãe e ela tem uma pequena rixa familiar. Como Romeu e Julieta.

Assenti rindo.

Pegamos outra gôndola. Íamos ao destino da senhora Maria.

- Piazza San Marco. - disse Maria.

A gôndola balançou um pouco e navegou vagarosamente, pois os canais adjacentes ao Grande Canal estavam liberando passagem a outras gôndolas.

- Boa escolha. - disse Augusta.

- Oh, sim. Agradecerei a tio George. - disse eu segurando a caixa lustrosa embrulhada - Onde estamos indo?

- À Praça São Marcos. Minha mãe sempre vai à Basílica quando sai de casa. - respondeu Augusta.

- E o carnaval? Aonde será realizada? - perguntei.

- Na mesma praça.

Assenti.

- Você trouxe roupa o suficiente?

- Sim. Por quê?

- O carnaval dura dez dias e, segundos as regras, as pessoas precisam ir com roupas diferentes a cada dia de festa.

Preoculpei-me.

- Acho que não tenho roupa o suficiente para o evento.

- Não se preocupe, pedirei para que Giovanni compre duas fantasias para você.

- Giovanni?

Augusta ri.

- O jovem rapaz que levou suas malas para seu quarto.

- Ah, lembrei.

Do lugar em que estávamos para a Praça São Marcos tinha uma considerável distância. Por isso, resolvi conversar ainda mais com minha prima, mesmo com o olhar reprovador de sua mãe.

Descobri que ela escrevia poesias, lia romances franceses, tocava piano e cravo, gostava de cantar.

- Só participo dessas festas por causa da tradição de minha família. Ah, ia esquecendo. Meu pai, todos os anos, organiza uma festa, Danza delle Maschere. "Baile das Máscaras" é uma festa conhecida em toda Veneza. Até as autoridades aparecem para beberem e comerem algumas especiarias. Então, com certeza, ele irá convidá-lo. A festa acontece depois do carnal. É nesse período que minha mãe fica mais nervosa.

Olhei para a mãe, estava séria.

Passamos o resto do trajeto em silêncio. O sol forte fazia o lugar igualar-se a pinturas. Como Veneza é bela.

A gôndola atracou no San Marco Capanile. Descemos e andamos pela bela praça arborizada. A entrada adjacente da Basílica de São Marcos é de uma beleza dantesca. Acompanhamos senhora Maria até o confessionário.

- Vamos dar uma volta. - falou Augusta levantando-se do banco.

Atravessamos a nave principal da igreja. E fomos parar na Piazza San Marco. Estava sendo ornamentada para o carnaval. Nobres e burgueses andavam pela extensa praça, pombos aos montes pontilhavam de cinza a praça. Crianças corriam espantando os pombos que voavam cortando o céu azul de Veneza.

- É muito bonita. - completei.

- Sim, é.

- Sua mãe irá chatear-se.

- Não se preocupe, ela demorará.

Ela estendeu seu braço, para que eu a segurasse. Demos uma caminhada pela praça, ela explicava a importância dela. Estava feliz, queria cortejá-la, mas um homem galante aproximou-se de nós.

- Il mio amato. Che ci fai qui? (Minha amada. O que você está fazendo aqui?).

Augusta faz uma rápida mesura.

- Ciao, Ferdinando. Sto mostrando la bellezza di Venezia a mia cugina. Mia madre è nel confessionale. E tu? Preparazione per il carnevale? (Olá, Fernando. Mostrando a beleza de Veneza ao meu primo. Minha mãe está no confessionário. E você? Preparando-se para o carnaval?). - respondeu ela.

O homem tinha certa intimidade com Augusta. Ele não olhava para mim, mas eu o encarava.

Augusta vira-se para mim e fala:

- George, este é o meu noivo, Ferdinando Cacciolle.

Não acreditei. Ela já tinha um pretendente. Caro leitor, ficou evidente que meu coração mortal batia por ela, mas agora para quem iria bater?

Apertei a mão do homem. Ele me correspondeu com desprezo.

Augusta conversa um pouco mais com ele e despede-se, alegando que a sua mãe os esperava.

Voltamos para os bancos. Maria apareceu minutos depois. Fomos para casa. Elas conversaram sobre o encontro, mas eu não prestava atenção. Decepcionei-me. Agora eu sabia o quanto amar é doloroso.

- Está tudo bem George? - perguntou Augusta.

- Sim, sim. - respondi sem olhar.

- Está calado e parece... triste.

- Não, só estou cansado.

Chegamos à casa de meu tio, e subi para meu quarto. Não quis jantar. Fiquei sentado próximo à janela olhando Veneza escurecer. A tristeza vem à noite, mas a felicidade vem pelo amanhecer.

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Talvez a leitura esteja sendo tediosa, mas é preciso que seja. Queria eu que minha vida tivesse passado lentamente. Mas, a mudança veio no outro dia. Arrependo-me de ter ido ao carnaval.

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No outro dia, acordei tarde. Era o primeiro dia de carnaval, portanto, fui acordado com o barulho das conversas das costureiras que foram à casa de tio John mostrar alguns desenhos de vestidos suntuosos para o carnaval.

Desci e fui à cozinha, pois sabia que não era mais uma hora adequada de comer na mesa. As empregadas me serviram um belo desjejum. Saciei-me. Fui aos outros cômodos em busca de meu tio, mas não o encontrei. Giovanni estava descendo as escadas com uma bandeja com copos de cristais.

- Giovanni, hai visto mio zio? (Giovanni, você viu meu tio?). - perguntei.

Giovanni olhou para mim surpreso. Eu havia praticado algumas frases essenciais em italiano durante a viagem, mas não quer dizer que sei falar e entender o italiano.

- Molto bene, signor Seymour. Suo zio era la casa del suo amico, il signor Baptiste. (Muito bem, senhor Seymour. Seu tio foi à casa de seu amigo, o senhor Batista). - respondeu ele.

Agradeci.

Eu conseguia ouvir a voz e as risadas de Augusta. Fiquei aborrecido, pois ela já tinha um pretendente. Ainda mais um idiota pomposo! Eu a queria, mas não podia tê-la. Entrei no salão de música para tentar não pensar nela. O salão era uma cópia, segundo meu tio, do salão de dança do Palácio de Versailles; com o seus espelhos, candelabros, lustres e janelas suntuosos. Sentei-me e começei a tocar o piano. Meus dedos hábeis começaram a tocar "Tempestade" de John Weldon. A música ressoava por todo o salão.

Enquanto eu apreciava a música de olhos fechados, Augusta entrou no recinto sorrateiramente e ficou olhando para mim em silêncio. Quando dei os últimos acordes, abri os olhos e a vi. Fiquei envergonhado. Ela batia palmas e sorria.

- Você é um pianista excepcional. - disse-me ela.

- Obrigado.

Ela sentou-se ao meu lado e começou a tocar um solo que ela mesma compôs. Ao terminar sua performance, quem bateu palmas foi eu. Ela agradeceu de forma circense. Estávamos tão próximos, meu braço roçava levemente no dela. Podia sentir seu perfume. Eu estava excitado. Aproximei meus lábios de seu ouvido.

- Não sabia que eu tinha uma bela prima. – confessei com a voz rouca de desejo.

Ela sorriu.

- Não sabia que eu tinha um primo galante. – retrucou ela.

Ri.

Ficamos daquela forma durante alguns minutos.

- George, preciso falar algo para você. – disse ela olhando para seus dedos.

- Sim, diga.

Ela olhou para mim fixamente e disse:

- Sei o que você pensa de mim. Sei que você gosta de mim. Mas, não posso corresponder a isso. Sou noiva agora.

Levantei-me e fui à janela. Olhei para o Grande Canal. Minha vida estava começando a mudar.

- Você sente a mesma coisa que sinto por você? – perguntei.

Ela virou o rosto com vergonha. Não precisa responder.

- Por quê? – perguntei.

- Não era para eu ter deixado isso ir muito longe. – disse ela.

- Foi sua mãe, não? Sei que foi ela. – completei exasperado.

Ela relanceou seus olhos lacrimantes para mim.

- Não, não. Fora eu quem quis. Fora eu quem escolheu. – ela disse com a voz embargada.

Olhei diretamente para ela. Estava furioso.

- Desculpe-me por tê-la importunado durante esses dias senhorita Augusta. Sou um péssimo cavalheiro. Passar bem.

Saí rapidamente do salão.

- Maldita! Maldita! – pensei.

Subi ao meu quarto. Tranquei a porta. Fui ao pequeno criado-mudo e enchi uma taça de brandy que meu tio tinha me dado. Iria embriagar-me. O amor dói.

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Ficou perceptível, leitor, que fiquei embriagado antes do tempo. Ingeri todo o conteúdo da garrafa. Estava cochilando quando ouvi umas batidas na porta.

- Signore George?

A voz vinha abafada detrás da grossa porta.

Levantei-me rapidamente e abri a porta bruscamente. A empregada assustou-se.

- Signore John ha mandato a dire che si sta aspettando di andare alla festa. (Senhor John mandou-me dizer que o está esperando para ir à festa).

Fechei a porta sem dizer nada. Estava me esquecendo dessa maldita festa. Abri meu baú e vi a minha fantasia que Augusta comprara. Joguei-a para fora do baú. Iria com a mesma roupa. Coloquei uma casaca vermelha e pus minha ornamentada máscara.

Desci as escadas. Eles já estavam dentro da gôndola.

- George. Vamos, vamos. Estamos atrasados. – disse meu tio.

Olhei para Augusta que, como seu próprio nome significa, estava divina. Usava um vestido de cor clara e em seu belo rosto estava uma máscara de pérolas que cobria somente os olhos. Ela não olhava para mim. Mas, com certeza, ela percebeu que eu não estava usando a fantasia que ela tinha escolhido para mim.

- Andiamo. La festa è iniziata. (Vamos. A festa começou). – disse meu tio ao gondoleiro.

Fomos calados todo o trajeto; menos o meu tio. Não olhei nenhum instante para Augusta. Sentia-me traído.

- Che cosa è successo cara mia? È triste. (O que houve minha querida? Está triste). – perguntou meu tio a Augusta.

Ela sorriu para o pai e disse:

- Va tutto bene. Non si preoccupi. Sarò felice quando si arriva a Piazza San Marco. (Está tudo bem. Não se preocupe com isso. Estarei mais feliz quando chegarmos à Praça São Marcos). – respondeu ela.

Podia-se escutar o som da festa à distância. Várias gôndolas estavam atracadas, outras iam em direção do zunido.

Descemos da gôndola. Meu tio puxou-me para seu lado e disse:

- Tome garoto. Este dinheiro é para você gastar com o que quiser. Vá se divertir. Não me acompanhe, pois só vou ficar numa roda de conversas com homens velhos. Você é jovem, vá arranjar um belo par de pernas. – disse-me ele, dando-me um pequeno saco de couro lotado de moedas.

Quis recusar, mas ele insistiu. Virou-se e já foi falando com um homem que estava fantasiado com uma roupa grotesca. Olhei para o lado e vi Augusta de braços dados com seu noivo, e senhora Maria os acompanhado. Bufei e saí daquele local. Fui ao centro da festa. A Praça de São Marcos estava muito diferente. Várias tochas iluminavam a longa praça. Pessoas fantasiadas andavam juntas, outras separadas. Ouvia-se o riso de mulheres, ouvia-se o flerte dos homens; ouvia-se o demônio falar na mente de cada pessoa.

Segundo as tradições, a festa só podia começar quando uma imagem fosse queimada numa grande fogueira. Eu havia perdido tal espetáculo, mas usufrui do banquete. As pessoas só podiam participar da festa se estivessem mascaradas. Era o único dia que os pobres misturavam-se com os ricos.

Resolvi gastar um pouco as moedas que meu tio me dera.

Bebi, flertei e comi um pouco. O resultado não foi positivo para mim. Senti náuseas e tonturas. Fui para o local mais afastado da multidão. Senti meu estômago regurgitar tudo o que consumi durante o dia. Vomitei bastante. Estava suando para piorar o meu visual grotesco.

Explosões coloridas manchavam o céu noturno de Veneza. As pessoas aplaudiam e davam gritos de prazer ao verem os fogos de artifício. Eu, indo de contramão, sentia dores agudas em meus olhos com a claridade dos fogos. Esbarrei em algumas pessoas. Queria sair daquele campo de batalha iluminado. Entrei numa ruela escura. A placa dizia “Calle de la Rizza”. O nome não importa, só queria ficar só. Tropecei num casal que estavam transando. Fui ao final da ruela que era interrompida pela Calle Larga San Marco, outra área tomada pela água. Meu estômago revirava-se e a dor intensificava-se. Apoiei meu corpo na parede e vomitei novamente. Meu vômito misturava-se com a água turva. O barulho das explosões dos fogos de artifício era alto até ali.

Enquanto meu estômago parou de regurgitar, escutei uma voz aveludada atrás de mim.

Aborreci-me de imediato. Respondi-lhe sem olhar.

- Vá embora! Será que vocês não respeitam nem uma pessoa doente? Vá embora! Não quero ajuda!

Escutei uma leve risada.

- Ah, um britânico em terras venezianas. O que o trouxe até aqui, jovem rapaz? – perguntou ele.

Ele tocou meu ombro. Fiquei furioso, virei-me rapidamente com o punho em riste.

- Já mandei você ir...

Interrompi-me. Fiquei absorto. Não conseguia falar. Olhei para aquela criatura e encantei-me. Ele não usava máscara. Apesar da escuridão, eu podia ver sua pálida face. Era algo infinitamente bonito de se ver. Queria bater-lhe, mas algo me impedia.

- O que foi? Assustado?

Meu suor escorria pelo meu rosto mais intensamente.

- Por favor, quero ficar só. – disse-lhe calmamente.

Ele sorriu. Os seus dentes cor-de-marfim reluzia naquela escuridão. Ele me assustava. Resolvi sair dali. Tentei passar, mas seus movimentos rápidos e precisos seguraram meus dois braços. Minha máscara caiu ao chão. Com força ele imprensou-me contra a parede de tijolos vermelhos.

Ele aproximou seu rosto do meu. Não nego que ele era bonito. Seus olhos cinzentos pareciam a lua no inverno. Seu nariz aquilino, seus lábios apetitosos, seus cabelos escuros longos e seu queixo esculpido davam ideia da beleza daquele demônio. Chamo-o de demônio porque, leitor, eu fiquei excitado por ele. Eu via o desejo no olhar dele, mas não era o desejo que conhecemos; era o desejo macabro da morte.

- Não sou o tipo de homem que você pensa. – disse-lhe.

Ele riu pendendo a cabeça para trás.

- Você acha que eu sou um humano como você que deseja desposar cada vagina que vê debaixo do vestido?

Aquilo me irritou. Tentei desvencilhar-me, mas a força dele era incrivelmente maior do que a minha.

- Não tente mudar o seu destino. – falou-me próximo ao meu ouvido.

Tentei gritar por ajuda, mas a sua mão forte cobriu a minha boca rapidamente.

- Coopere comigo e eu lhe prometo que o seu final será sem dor.

Fiquei assustado. Ele iria me matar. Mas, o que fiz contra ele?

Ele inspirava o meu cheiro. Parecia que isso o excitava.

- Você tem um cheiro singular.

Ele lambeu meu pescoço. Estremeci. Senti um dor forte em meu pescoço. Ele estava me mordendo! Senti um fluido quente e rubro escorrer pelo meu pescoço, era meu próprio sangue.

Sua forte mão abafava meus gritos de dor. Lágrimas escorriam pelo meu rosto suado. Ele estava bebendo meu sangue! Minhas náuseas aumentaram de intensidade. Senti que ia desmaiar.

Escutei um barulho vindo da ruela. Alguns jovens amigos estavam quase desnudos para transar com algumas prostitutas. Uma destas viu-me sendo atacado. Com um grito agudo, ela assustou o demônio. Ele olhou onde estavam o grupo e, fantasmagoricamente, deu um salto gigantesco. Ele estava no telhado de uma casa, olhou com fúria para baixo e desapareceu no infinito escuro de Veneza.

Desabei ao chão próximo a minha máscara. O sangue que escorria pelo ferimento, marcava os últimos minutos de vida que me restavam. Escutei várias pisadas fortes vindas à minha direção. Não conseguia ver nada. Escuridão. Desmaiei.

|||||||

Acordei no outro dia à tarde. Meu tio tinha cancelado a sua festa particular. Muitas pessoas estavam ao meu redor na cama. Vozes murmuravam:

- Por que um assaltante quis mordê-lo?

- É um absurdo! O jovem rapaz, segundo seu tio, estava adorando Veneza.

- Veneza não é como antes.

Minha cabeça latejava de dor. Abri os olhos e o silêncio reinou em meu quarto. Passei a mão no meu pescoço, estava enfaixado. Meu tio se aproximou.

- George, meu caro rapaz. Está se sentindo melhor? – perguntou ele.

- Acho que sim.

Ele olhou para o grupo atrás dele, um homem de ar sério confirmou com um gesto.

- Bem, George. O ataque que você sofreu espalhou-se por toda a Veneza como uma praga. O próprio Doge veio aqui lhe visitar; ele mandou a guarda fica de prontidão. Saiu até no jornal, George. Você ficou famoso George, mas de um modo que ninguém gostaria.

Fiquei o olhando absorto com tudo que ele me dizia.

- Agora, George, preciso fazer algumas perguntas. Fui indicado pelo signore Jean Francesco, chefe da guarda do Doge.

Olhei para o homem que meu tio indicou com a mão.

- Você conhecia o homem que... que fez isso com você? – perguntou meu tio.

Balancei a cabeça negando.

- Ele é veneziano? Você já o viu antes?

Neguei novamente.

- Você... você pode nos relatar o que aconteceu com você ontem à noite?

Confirmei.

Foi muito difícil, leitor, relembrar de um fato que minha mente insistia em apagar de minha memória.

Quando comecei a contar, o grupo se aproximou. Contei com os mínimos detalhes. A indignação e revolta estamparam nos rostos de cada um.

- Como ele escapou?

Não podia dizer a verdade. Eles iriam pensar que eu tinha perdido a sanidade. Não acreditariam que ele deu um salto e fugiu pelo telhado de uma casa próxima.

- Não me lembro. Acho que ele pulou na água.

- O que ele queria? Queria seu dinheiro? – perguntou signore Jean.

Eu não podia mentir agora. Voltei com a bolsa de couro ainda com as moedas.

- Não. Ele queria beber o meu... sangue.

Os suspiros de medo pairaram pela sala.

- Ele era um demônio! – continuei – Ele tinha uma força descomunal, uma beleza estática. Ele era Lúcifer disfarçado de humano.

Piorei a situação. Muitas pessoas fizeram o sinal da cruz. E eu fiquei com náuseas novamente. Não tive outra escolha: vomitei. As pessoas se afastaram retirando seus lenços de seda e pondo nos lábios. Meu tio pediu que se retirassem. Desabei na cama. Estava tonto. E as imagens do ataque foi meu sonho. Desmaiei novamente.

||||||||

Acordei horas mais tarde. Já era noite, um suntuoso jantar tinha sido posto numa pequena mesa perto da minha cama. Comi pouca coisa, mas bebi quase toda a garrafa de brandy.

Fiquei parado em frente ao grande espelho de meu quarto. Passei a mão na atadura em meu pescoço, resolvi tirá-la. Com movimentos lentos retirei a atadura com cuidado. Vi minha ferida escarlate. A carne de meu pescoço estava necrosada. As marcas dos dentes ficariam ali para sempre, para que eu lembre a existência do demônio. Um pouco de sangue escorria pelo meu pescoço; limpei-o com um pano úmido. Fui interrompido com a entrada de meu tio juntamente com outro homem.

- Ah, você está em pé. – falou meu tio. – Este é o médico particular do Doge. Ele veio lhe examinar.

O homem estendeu a mão em cumprimento, retribui. O médico assustou-se com o meu toque.

- Ele está com febre alta. – disse o homem ao meu tio.

Meu tio rapidamente me pôs na cama.

- Traga-me unguentos, toalhas úmidas, água quente e uma bacia. Temos que fazer uma sangria.

Sim, leitor, já não me bastava o demônio ter-me sugado o sangue, e agora outro também o quer. O procedimento durou um terço de hora. Eu estava exausto. Meu tio negou-se a ir à festa de carnaval e outros bailes, mesmo com a minha insistência para que fosse. Ele também vetou a saída de Augusta e de sua esposa. Obviamente, Maria odiou tal veto.

Essa febre durou três dias, e só vinha importunar-me à noite. No quarto dia, eu parecia melhor. Já me levantava sem dores, meu pescoço estava quase cicatrizado e as náuseas desapareceram. Desci para tomar meu desjejum. Todos os empregados estavam na sala de jantar. Meu tio, sua esposa e Augusta vestiam-se elegantemente.

- Bom dia! Meu querido sobrinho! Está com a aparência muito melhor! Vamos! Sente-se! – disse meu tio alegremente.

Sentei-me ao lado de meu tio, e uma tropa de empregados me serviu. Augusta estava sentada do outro lado mesa junta com a mãe. Nenhuma das duas olhava para mim. Olhei para meu tio.

- Tio George, gostaria de agradecer a sua preocupação pela minha saúde. Peço desculpas por ter atrasado o dia de seu baile particular. Vim para descansar, mas só estou a importunar a você e sua família.

Meu tio afagou minha mão.

- Não se preocupe meu jovem. Você é a minha única família que tenho. O que faço por você é para o seu bem. Não se incomode com relação à festa, faço-a todos os anos. Agora coma, você está muito magro.

Obedeci meu tio, apesar de estar sem fome. Ainda comíamos quando um pajem anunciou a chegada do noivo de Augusta. Enfureci-me. Meu tio mandou avisar-lhe que esperasse na sala de visitas. Parei de comer. Fixei meu olhar em Augusta. Ela olhou para mim e envergonhou-se, pois eu a olhava malevolamente.

Meu tio percebendo o impasse comentou:

- George, infelizmente, a guarda ainda não conseguiu deter o maníaco que fez isso com você.

Parei de olhar para Augusta. Tio John aproximou-se do meu ouvido e sussurrou:

- O Doge em pessoa, disse-me que você não foi o único que foi atacado por esse homem. Outras pessoas foram atacadas em outras piazzas da cidade, mas um detalhe faz de você um sortudo: você sobreviveu.

Olhei para meu tio. Fiquei extasiado com a notícia.

- As outras vítimas - continuou ele. – tiveram as mesmas mordidas no pescoço como você, mas não sobreviveram. Os boatos estão se espalhando por toda a Veneza.

Não tinha o que falar. O demônio atacara outras pessoas. Pessoas inocentes. Não quis mais comer. Augusta terminou de comer, pediu licença e saiu da sala; sua mãe atrás.

Meu tio tocou em meu ombro.

- George, com todos esses boatos e o conhecimento de que o meu sobrinho fora atacado são motivos fortes para que você não saia de casa.

Assenti.

Ele esboçou um sorriso, levantou-se e foi cumprimentar o seu genro. Subi as escadas, fui à biblioteca particular de meu tio. Fui pegar alguns livros para passar o tempo. Escolhi alguns romances franceses e peguei um livro com o título em latim: “Vox Populi”, de Augustin Calmet. Falava das crenças e mitos populares. Resolvi lê-lo.

Fui ao meu quarto. Deitei-me na cama, e comecei a ler o livro de estórias míticas. O livro retratava a crença de vários países: lobisomens, fadas, ninfas, sereias, duendes, unicórnios, gigantes e... vampiros.

Comecei a ler. Fiquei assustado. Passagens do capítulo diziam as características de um vampiro, o modo de ataque, organização de uma sociedade vampírica, sintomas de uma pessoa “marcada”, motivos da excessiva “sede” por sangue.

Li uma passagem do livro que mudou, para sempre, a minha vida:

“Os vampiros, ou sugadores, quando mordem suas vítimas para se alimentarem, são obrigados, segundo suas leis, de consumir todo o sangue das vítimas. Se tal ato não ocorrer da forma prevista e ela sobreviver ao ataque, por outros motivos que impeçam a consumação, esta passará por transformações físicas intensas. Sua personalidade, libido, relacionamentos sociais e interpessoais serão alterados ou até extintos. O ciclo de transformação é de sete dias. Nos três primeiros dias a vítima sofrerá de náuseas, dores de cabeça, insônia, vômitos em excesso, desmaios frequentes, diarreia, fúria, perda de apetite etecetera; ou seja, transformações fisiológicas. No quarto dia, o ritmo de transformação aumenta de forma considerável. Os tecidos musculares enrijecem e tonificam-se de forma intensa e rápida, causando enorme dor à vítima. Alguns órgãos internos sofrerão necrose isquémica, como o sistema excretor; outros se modificarão para uma anatomia mais “avançada e evolutiva”, como o estômago. No quinto e sexto dia, a vítima adquirirá intolerância à luz natural, mais conhecido como “fotofobia”. No sétimo e último dia, o ciclo é completo. A partir deste dia em diante, a procura e o consumo de sangue será o único modo de sobrevivência”.

Não acreditava no que lia. Fiquei preocupado. Eu estava me transformando em um vampiro!

Desesperei-me. Levantei-me da cama e fiquei andando pelo quarto. Existe uma cura? O que vou fazer? Batidas na porta despertaram-me do meu devaneio. Abri-a e, novamente, a empregada disse:

- Signore George, suo zio gli ha chiesto di vestire e andò in soggiorno, perché gli ospiti sono in arrivo. (Senhor George, seu tio pediu-lhe para vestir-se e ir à sala, porque os convidados estão chegando).

Assenti. Tinha me esquecido da festa do meu tio.

Coloquei minha roupa de gala. O Doge em pessoa viria para cá, além de várias outras pessoas importantes e ricas. Cobri a ferida quase cicatrizada com um belo lenço de seda vermelho. Desci as escadas elegantemente. Dava ouvir o murmúrio de vozes por toda a casa. Algumas pessoas olhavam para mim curiosamente. Eu fingia que ninguém olhava para mim. Entrei no salão de festas lotado, peguei uma taça de champanhe francês de um empregado que passava pela multidão equilibrando a travessa. Os músicos afinavam seus instrumentos. Não conseguia encontrar meu tio. Augusta estava, obviamente, com o seu noivo; próximos à enorme janela aberta.

Escutei batidas numa taça. A multidão calou-se.

- Benvenuti al Ballo in Maschera! (Bem-vindos ao Baile de Máscara!). – falou alto meu tio.

Baile de Máscaras era o nome da festa, mas ninguém usava máscara para obedecer às ordens do Chefe da Guarda do Doge. Se alguém fosse atacado, ficaria mais fácil reconhecer o atacante.

- La festa cominci! (Que a festa começe!). – exaltou meu tio.

A multidão bateu palmas. Um círculo se formou no meio do salão para os casais dançarem. Os músicos começaram a tocar e os pares a dar seus passos iniciais.

Fiquei de longe observando Augusta e seu noivo dançarem. Mas, alguém estava de olho em mim também. Recostei-me na parede. Um homem alto passou pela minha frente e deixou cair seu lenço. Apanhei-o e fui atrás do homem. Saí do salão e o vi subindo as escadas.

- Ei, signore! Signore! Aspetta! (Ei, senhor! Senhor! Espere!). – gritei.

O homem não me escutou e continuou a subir. O segui rapidamente e o vi entrar na biblioteca particular de meu tio.

Abri a porta e vi que o recinto estava em total escuridão. Não escutei nenhum barulho.

- Signore? Lasciò cadere il fazzoletto. (Senhor? Deixou cair o lenço).

Ninguém respondeu.

Virei-me para sair, mas senti alguém passar a mão em minha nuca. Retornei com um movimento brusco.

- Quem está aí?

Uma risada veio do fundo da biblioteca. Outro toque no meu corpo, agora no meu rosto. Virei-me bruscamente, mas só soquei o ar.

Corri à porta, mas ela estava trancada. Então, uma voz sedutora soou por toda a biblioteca:

- Para onde quer ir meu cordeirinho?

Gelei. Eu reconhecia aquela voz. Era o demônio que me atacou! Ele estava na casa de meu tio!

Gritei por socorro, mas ninguém iria escutar minha voz.

- Ah, bobinho. Não tenha medo. Não irei matar-lhe... a não ser que você queira. – falou ele.

- Apareça! – ordenei.

Senti no mesmo instante o seu gélido hálito em meu rosto. Sua boca estava a milímetros da minha.

- Aqui estou querido.

- O quer de mim? – perguntei envergonhado com a proximidade.

- Eu não quero nada seu. Nosso último encontro fora maravilhoso, mas fomos interrompidos. Os venezianos são muito mal educados.

Ele se afastou e acendeu algumas velas. Observei-o de longe. Ele estava vestido elegantemente. Eu fiz uma pergunta que iria contra os meus preceitos, mas precisava saber.

- Por que você não me matou agora?

Ele riu e respondeu:

- Vou ser sincero com você. Era para você estar morto agora depois de nosso encontro, mas aqueles imbecis o destruíram.

Engoli seco.

- E por que você não pode me matar?

Não acreditei que fiz essa pergunta.

- Por que o seu ciclo está quase completo. As leis me impedem de matá-lo.

- Leis? Quais leis?

- Não posso responder agora.

Não estava entendendo nada.

- Se você não veio me matar, então, o que faz aqui?

Ele olhou para mim de forma séria.

- Terei que vigiá-lo, e ser o seu mestre por algum tempo. – respondeu.

Olhei para seu belo rosto iluminado pelas velas bruxuleantes.

- Por quê?

- Você não percebe? Você está se tornando igual a mim!

Tremi.

- Você é um vampiro! – eu conclui. – Li sobre vocês num livro!

Ele bateu palmas ironicamente.

- Ah, sim. Sei qual é. “Vox Populi”, escrito por um alemão que teve ajuda de um de minha raça. Mas, felizmente, os dois foram mortos judicialmente. – afirmou ele sorrindo.

Refleti o que ele havia me dito até aquele instante. Não gostei do resultado, não queria que minha vida mudasse bruscamente.

- Você vai ter que me “destransformar”.

Ele riu alto.

- Você é um estupido! Não há cura para isso! Só há duas saídas: viver com isso ou a morte.

Eu não tinha escolha. Fiquei furioso. Ele me transformou naquilo! Eu não tive chance de defesa!

A cólera espalhou-se pelo meu corpo.

- Vou matá-lo!

Corri na direção dele com os punhos em riste. Dei o primeiro golpe, mas quem sentiu a dor fui eu. Cai ao chão abruptamente.

- Estúpido! Você ousa desafiar-me? Eu sou mais forte do que você!

Não me intimidei. Levantei-me e fui à direção dele novamente. Mas, ele segurou o meu pescoço com força.

- Como eu gostaria de matá-lo! Sei que está com fúria, mas não tenho escolha! Essa é a minha natureza!

Ele me soltou. Caí ao chão novamente. Ele abriu a janela do recinto e disse sem olhar.

- Vá amanhã, à noite, à Calle del Cristo. A casa tem uma pintura peculiar.

Então, ele saltou através da janela e desapareceu na noite de Veneza. E eu ainda sentia o pescoço doer.

||||||||

Saí da biblioteca assustado, sem rumo. Não sabia o que fazer... A mansão parecia mais cheia. Fui ao meu quarto. Tranquei a porta. Acendi algumas velas e fiquei sentado na escrivaninha, que hoje escrevo. Eu tinha de resolver isso, mas como?

O que ele queria comigo? Minha cabeça ia explodir. Resolvi me deitar. Fiquei pensando durante horas. A festa continuava lá embaixo.

Fiquei pensando o quanto o destino é injusto. Não pedi para ser vampiro.

Fiquei assim durante algum tempo e adormeci pesadamente. Por pouco tempo.

|||||||||

Acordei de madrugada com fortíssimas dores em meu corpo. A casa estava em silêncio total, mas meu corpo não. Meus músculos pareciam que iam romper-se. Cãibras, estalos de ossos, rompimentos de músculos e tendões marcavam o meu corpo. Coloquei o travesseiro na boca para abafar meus gritos de dor, pois sabia que era a transformação do mal.

Caí da cama e fiquei retorcendo-me de dor no chão. Pensei que não ia aguentar. Senti uma dor adicional. Meu abdômen estava inchado. Senti vontade de defecar. Fui à latrina e, desculpe-me os termos, defequei meus intestinos. Sou fraco para essas coisas, portanto, vomitei.

As dores eram intensas. Joguei o conteúdo pela janela, fazendo-o cair na água turva do Grande Canal. Fiquei exausto, estava pálido e com dores. Tomei uma dose de brandy, mas parecia que eu estava bebendo ácido. Um sono intenso veio pairar sobre meu corpo. Os sintomas eram acumulativos! Como eu queria poder matar aquele maldito! Maldito! Demônio!

Não pensei muito. Adormeci de imediato.

||||||||

Acordei com o barulho das empregadas limpando os cômodos, levando pratos, taças, talheres, roupas e joias esquecidas. As horas avançadas indicavam o calor explícito dentro do meu quarto. Abri as cortinas. Os raios luminosos invadiram meu quarto e transpassaram minha íris. Dor cintilante. Tropecei no pedestal da cama e caí sobre uma pequena mesa.

Meus olhos ardiam, vi manchas coloridas; parecia que meu quarto tinha sido pintado de branco. Levantei-me com dificuldade e cerrei as cortinas. Alívio. O que viria depois disso?

Pedi água às empregadas para tomar banho. Estranhei o modo como elas me olhavam. Um olhar de dúvida, ou até de desejo... Uma delas foi abrir a cortina, mas eu a impedi. Quando elas saíram do quarto, despi-me. Então, percebi o motivo dos olhares insinuantes delas. Eu estava pálido. Não uma palidez normal, mas uma palidez profunda. Todo meu corpo parecia ter desbotado. Eu estava muito branco. Fui olhar-me no espelho. Fiquei boquiaberto. Meu corpo... estava mais delgado! Mais forte! Podia-se ver o tônus dos meus músculos da barriga, braços, tórax, pernas. Eu era outro homem.

Tomei banho, arrumei-me e desci as escadas. Como disse antes, a tropa de empregados estavam trabalhando ao máximo para deixarem a mansão arrumada antes que meu tio e sua esposa acordassem.

Uma jovem empregada aproximou-se de mim.

- Vuoi che il tuo colazione per essere servito? (Você quer que seu almoço seja servido?).

Fiquei olhando para ela. Eu sentia seu cheiro profundamente, apesar de ela estar um pouco afastada. Podia eu ouvir sua respiração. Ela enrubesceu-se com meu olhar.

- Sì, grazie. (Sim, obrigado). – respondi simplesmente.

Ela virou-se e foi à cozinha preparar meu desjejum. Fui à sala de jantar. Estava arrumada. As cortinas abertas me fizeram estacar à porta. A luz do dia cobria todo o recinto. Chamei uma empregada que estava arrumando os vasos com flores.

- Chiudere le tende. (Feche as cortinas). – ordenei.

A empregada olhou para mim de forma repressora.

- Signora Maria ci ha dato gli ordini che, la mattina, le tende sono aperte. (Senhora Maria nos deu as ordens no período da manhã, as cortinas devem ficar abertas).

Olhei furiosamente e a peguei pelo pulso.

- Obbedisci! Siete pagati per servire! Marca, ma convinto mio zio a fuoco lei! (Obedeça! Você é paga para servir! Faça, ou convenço meu tio para demiti-la!).

Ela se contorcia de dor. Soltei o seu pulso. Ela olhou-me assustada e foi cerrar as cortinas. Saiu do recinto chorando.

Sentei-me à mesa. Minutos depois, a primeira empregada entrava na sala com o desjejum. Incrivelmente, eu podia ouvir os lânguidos batidos de seu coração. Sua respiração estava mais intensa. Serviu-me educadamente. Olhei-a intensamente. Eu a desejava. Mas, ela não olhava para mim. Ela estava triste. Olhava para o chão. Ficou em pé ao meu lado e perguntou:

- Vuoi qualcosa di più, signore? (Quer algo mais, senhor?).

- Non. (Não). – respondi.

- Mi scusi. (Com licença). – disse ela com uma reverência.

Peguei-a pelo braço vorazmente, que me assustou tanto quanto ela. Ela olhou assustada para mim.

- Cosa è successo? Perché sei depresso? Pochi minuti fa, eri radiosa. (O que aconteceu? Por que você está deprimida? A poucos minutos atrás, estava radiante). – perguntei.

Ela não quis responder. Mas, insisti.

- Giovanna è in uno stato di disperazione, perché ... le hai trattato male. Lei è mio amico. Ti credevo diverso dagli altri veneziani uomini. (Giovanna está em um estado de desespero, porque ... você a tratou mal. Ela é minha amiga. Eu pensei que você fosse diferente dos outros homens venezianos).

Dei uma risada irônica.

- Non ti preoccupare, digli che io chiedo le scuse del caso. Te lo prometto. (Não se preocupe, diga a ela que pedirei desculpas pessoalmente. Eu prometo).

Ela assentiu.

- Ora per favore, voglio che tu mi dia un sorriso. (Agora, por favor, eu quero que você me dê um sorriso).

Ela sorriu pela graça do pedido. Soltei seu braço e ela andou pela sala para sair.

Quando chegou à porta, perguntei:

- Como se llama? (Como se chama?).

Virou-se para mim e respondeu:

- Rose.

Assenti. Ela saiu e fechou a porta. Sorri com a minha vitória. Mas, por que eu a estava desejando? Era como um “instinto” que irradiava do meu subconsciente.

|||||||

Como eu era estúpido, leitor. De madrugada havia defecado quase todos os meus intestinos e eu ainda queria comer! Idiota! Era o costume... Não estava com fome. Levantei-me da mesa e pedi ao pajem para que retirasse a mesa. Atravessei o largo corredor ladrilhado com piso chinês para ir à cozinha.

Abri a porta de supetão. Todos os empregados olharam para mim de forma acusativa e de medo. Quase todos eles estavam em volta de Giovanna. Ela, por sua vez, estava chorosa e amargurada. Adiantei-me em direção à Giovanna. Alguns empregados se afastaram. Parei inquisitorialmente em sua frente.

- Mi scuso per la mia maleducazione. Mi sono svegliato un po 'agitata perché non ho dormito bene la notte. Spero che accettare le mie scuse. (Peço desculpas por minha grosseria. Acordei um pouco agitado, pois não dormi bem à noite. Espero que você aceite minhas desculpas.).

Todos olharam para ela desejando que ela não aceitasse.

- Sì, scuse accettate. (Sim, desculpas aceitas).

Alguns bufaram. Saí e relanceei meus olhos para os de Rose, que estava sentada ao lado de Giovanna. Pisquei para ela e saí. Mas, o assunto não havia sido totalmente resolvido.

||||||||

Eu estava na biblioteca, com as cortinas fechadas, lendo e pesquisando livros sobre vampiros, quando Maria entrou batendo os pés. Augusta e Giovanna a acompanhavam.

Maria apontou para mim furiosa.

- Come ti permetti di dare ordini ai miei servi! È la ragazza violentata, vigliacco! Lei mi deve obbedire e non voi! Hai raggiunto troppo in là con la sua arroganza, sanguinosa inglese! Io ti mando indietro alla sua corte, dove il re ha fieno attaccato ai capelli e polli vagare liberamente per il castello! (Como você se atreve a dar ordens aos meus servos! Você maltratou a menina, covarde! Ela deve obedecer-me e não a você! Você chegou longe demais com sua arrogância, inglês sangrento! Vou mandar-lhe de volta para a sua corte, onde o rei tem feno preso ao cabelo e galinhas vagam livremente pelo castelo!). – gritou ela.

Meu tio chegou logo depois.

Maria olhou para meu tio e disse:

- Lo hanno uscire di casa! Egli vergogne! (Ele tem de deixar esta casa! Ele é uma envergonha!).

- Molto bene, molto bene. Maria, tu già detto quello che volevo dire. Ora, ci lasciano soli. (Muito bem, muito bem. Maria, você já disse o que eu quis dizer. Agora, nos deixe a sós). – disse o meu tio.

Augusta não olhava para mim. Ela acariciava a cabeça de Giovanna que estava com o pulso machucado e marcado.

- Dare ordini ai dipendenti in modo da non essere servito! (Darei ordens aos empregados de modo a você não ser servido!). – continuou Maria.

- Basta! Basta! Fuori! (Basta! Basta! Fora!) . – gritou meu tio.

Todos saíram. Meu tio fechou a porta. Virou-se para mim com o ar sério; nunca o tinha visto dessa forma.

-George, não posso desmentir minha mulher. Você cometeu um erro grave. Não pode ameaçar os empregados de uma casa se você não é o proprietário.

- Tio George, se você quer que eu vá embora, não se preocupe. – comentei.

Ele tocou meu ombro e disse:

- Não quero que vá embora George. Só estou pedindo que respeite as regras do meu lar.

- Sim, senhor.

- Aliás, você está doente? Está muito pálido. Vá tomar um banho de sol.

Ri.

- Não, meu tio. Estou bem. Não se preocupe, não o envergonharei novamente.

- Esse é o meu garoto!

Saiu sem cerimônia, e deixou-me só. Algo sinistro crescia dentro de mim: vingança! Giovanna iria pagar pela sua infantilidade.

Voltei à leitura.

(Continua em: MORDIDO EM VENEZA - PARTE II).

Deo Odecam
Enviado por Deo Odecam em 05/07/2010
Reeditado em 05/07/2010
Código do texto: T2359913
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