O DEMÔNIO GUARDIÃO
CAPITULO I
Ele era um demônio entre demônios, até os mais velhos o temiam por sua força e sua fúria, sua raiva e seu ódio eram tamanhos que mesmo entre os outros, acima dele havia um consenso em evitá-lo.
Ele viera de um pequeno inferno sujo e apodrecido do circulo interior, um buraco, uma fossa, onde a carne era artigo de disputa no varejo, onde sonhos e ilusões eram comprados nas pedras brancas como sal.
Um lugar onde diabinhos eram escravos no mercado de peixe desde as barrigas prostituidas de suas mães, até o termino de sua desgraçada passagem sob o sol indiferente de um dia de trabalho mal pago.
Lá ele crescera...
De lá ele saira...
Para nunca mais voltar.
Lá conhecera a raiva, descobrira o ódio, libertara sua fúria, extravasara toda sua força em atos de vingança e prazer.
Foi lá que compreendeu o poder do medo.
Conheceu a luxúria e a corrupção.
Lá se banhara em sangue.
Sangue impuro.
Maldito.
Amaldiçoado.
Desprezível
Rentável.
Muito rentável.
Ah! , como era fácil se embriagar com a fartura, proporcionada pelo abate dos ímpios.
Ele se viciou nas boas coisas da vida.
Vida boa.
Boa vida.
Divertida.
Descabida.
Vida bandida.
Bem vivida.
Vida que vivia.
Vida que conhecia.
Vida que queria.
Todos os dias, todo dia, lhe eram encomendas almas, almas perdidas, encomendas feitas por boas pessoas, pessoas aflitas, pacatas, dedicadas, serias e moralistas, pessoas de família, cônscias de seus deveres e responsabilidades sociais, assíduas freqüentadoras da igreja, preocupadas com que algo fosse feito, desde que ninguém soubesse,visse, ou ouvisse nada.
Assim se tornara o ceifador pago, soldado mercenário, carrasco contratado, faxineiro do bairro, ele fez seu trabalho sem ver nada de errado, era seu trabalho, para isso era pago. Bem pago, não pelo que os pecadores valiam (eles não valiam nada), mas pelo silêncio. Seu silêncio que encobria a boa gente, gente que não queria, não podia, suportar mais aquela gente.
Um dia esse demônio assumido e bem resolvido se arrependeu se arrependeu não do que fez, nem do que fazia, muito menos ainda do que faria, mas se arrependeu por se compadecer de uma alma sozinha, solitária, deslocada em meio à paisagem árida de uma multidão afogada em vaidade, ali só, rodeada de risos falsos e maquiagens carregadas estava uma face pálida, sem brilho ou batom, límpida e inteligente, a menina se destacava entre as demais pessoas, tinha os olhos nervosos e o ouvido atento, meio assustada, mas não intimidada , essa foi a primeira impressão que o demônio teve dela , se interessou pela criança quieta e amuada que andava sozinha sem ser notada , a principio por achar graça, depois por diversão e por fim porque se cansara dos olhares e cochichos de escárnio e crueldade que sobre ela se lançara , ele se aproximou, devagar , aos poucos , foi se apresentando se achegando mais e mais , até conquistar a simpatia e amizade da criança , de fala macia , sorriso largo , olhar sincero , ele se escondia sob a pele do cordeiro enquanto afiava as garras do lobo , mas aconteceu do demônio se aprofundar demais naquela alma a ponto de se tornar intimo e confidente e ao se tornar fiel depositário de seus sonhos e desejos o predador se viu presa de sua caça , ele não suportou a idéia de mentir para ela como já mentira sem culpa para outras , não quis usá-la como outras o usaram , não ele não iria devorá-la , iria prepará-la não para o sacrifício mas para si , assim como bom demônio que era a influenciou e orientou nas sutis nuances da passagem da adolescência para a vida adulta , alimentou sua feminilidade que começava a insinuar-se, instigou a sensualidade que aflorava, sussurrou em seus ouvidos até fazê-la mudar seu modo de ser ,de agir e pensar, com sua lábia a corrompeu em proveito próprio , para se surpreender ao ouvi-la dizer que se interessava sobremaneira pelas varias opções que a vida oferecia a uma mulher sexualmente ativa e curiosa , ele a ouviu, extasiado E enternecido pela sua ingenuidade e vivacidade, respondera as suas perguntas , solucionara suas duvidas , incentivara suas fantasias até a realização das mesmas, mesmo quando elas lhe causavam dor e sofrimento, como quando sob a influência de uma amante ciumenta fora deixado de lado por aquela a quem com tanto afinco se dedicara, apenas para ser chamado de volta pela discípula abandonada e desiludida.
Quando ela chorou, ele a perdoou mesmo quando queria castigá-la pela sua ingratidão, na verdade para ela não existia punição, ele a amava e por isso relevava tais situações, ela não esta pronta, pensava, certo dia ela lhe disse estar apaixonada por um anjo, o demônio riu , paixonite pensou , foi aí, foi bem aí que ele errou, o tal anjo a enfeitiçou de tal forma que ao perceber seu erro e tentar saná-lo o demônio foi ameaçado pela menina agora uma mulher ciente do poder que tinha sobre seu preceptor, com a solidão eterna, ela jurou deixá-lo trancado para sempre, no poço amargo e frio de solidão onde ele se recolhia dentro de si quando ela resolvia ignorá-lo como forma de castigo por alguma falta cometida, caso ele em sua ira destroçasse o anjo que a enfeitiçara com sua beleza e juventude ignorante.
Beleza e juventude desprovidas de calor, de fogo, de paixão, ela queria amor! , amor! , esse sentimento frio e repetitivo, maçante e vazio, sem nada a oferecer além de certezas e fidelidade, fidelidade! , ah! , o primeiro e mais falso dos juramentos dos que amam certeza? , certeza de que? , de ser a única em uma existência medíocre e sem atrativos, a única de uma relação enfadonha e sem graça.
Ela negava para si e para o mundo o que sentia em relação ao demônio, um desejo tão obscuro e ardente que a queimava por dentro transbordando como suor pelos poros de sua pele macia rija e bronzeada, o odor dos feromônios de uma fêmea no cio, era exalado com intensidade brutal quando ele estava perto, esse desejo intenso por aquela criatura de mãos sangrentas e pele suada, de jeito bruto e aparência violenta, se tornava ainda mais forte quando ela se lembrava de vê-lo refletido com a mesma vontade nos olhos oblíquos que quando se estreitavam sob sobrancelhas negras e expensas exprimiam toda a raiva trancafiada em sua alma negra como o abismo, carregada pelos crimes que cometera em sua existência desregrada, a fazia se odiar por não conseguir se afastar do demônio que a amava e protegia como o cão de guarda do inferno, sim ela sabia que era amada pelo mais negro demônio que já conhecera, no seu intimo se perguntara deitada sobre a cama, debaixo dos lençóis, enquanto suas mãos pequenas e aflitas percorriam seu corpo tremulo e tenso, porque não? , porque não se entregar as caricias proibidas daquela fera assassina que a excitava tanto, excitava tanto que era preciso mantê-la longe para não se trair e se jogar sobre ela com toda gana e selvageria que se inflamava em seu sexo, quente, úmido, desejoso de se possuído com força, muita força e raiva, muita raiva, com violência e sofreguidão que a fariam gozar e sangrar em urros e gritos entre blasfêmias e louvores de adoração do mais puro e pecaminoso tesão.
Por medo essa era a resposta, ela tinha medo, mas não medo dele , medo do demônio ela não tinha , sabia que não precisava ter medo ele não a machucaria, nunca a machucaria, nem permitiria que alguém o fizesse, não, ele era o seu demônio, seu demônio protetor, seu cão de guarda, o guardião que sempre estaria presente, ela precisando ou não ele seria para todo o sempre seu demônio guardião, mas ela tinha medo de se entregar e na entrega se descobrir presa entre as garras do lobo desejando ser devorada, estraçalhada por uma paixão tão intensa e perigosa que ela não conseguiria, mas ser a senhora e sim a escrava, ela temia perder o controle, mas não sobre ele, pois sabia que a partir do momento em que se entregasse ela seria por toda vida sua dona, ela temia perder o controle sobre si e nunca mais retomá-lo.
Ela temia tomá-lo para si e se perder ali entre os lençóis de uma cama forrada de cetim.
E as pessoas? , o que as pessoas iriam pensar como iria encarar as pessoas caso descobrissem o que a noite com ela se passava, como explicaria para as amigas a família, o que ela diria o que falariam, Não! , não ! , não! , isso tinha que parar, ela tinha que acabar com isso, não importava como, tudo isso tinha que ter um fim, com o coração endurecido e o cenho franzido ela o chamou, o invocou a sua presença, e como sempre ele apareceu com um sorriso torto e olhar desconfiado, postura ereta e confiante, ela não pôde deixar de notar seu peito largo e os braços grossos, era sempre assim quando se viam, aqueles olhos escuros e cruéis se tornavam dóceis e submissos, diante da visão da garota amada, por ser mais baixo ele mergulhava bem fundo nas duas esmeraldas que ela tomara como olhos, antes que pudesse perguntar o que a menina queria o demônio se viu golpeado por palavras duras e frias como o aço da navalha, palavras que o cortaram em tiras, palavras tão pesadas que o prostraram de joelhos, pronunciadas com tanta raiva e ódio que ficaram gravadas como a ferida de um ferro em brasas em seu coração, ele não entendia o porquê, o que tinha feito, por acaso deixara de lado algo importante, teria dito alguma coisa que a ofendesse sem querer , mas ela não o ouvia , ela o acusava , ofendia , acuava, sem lhe dar a chance de compreender a que acontecia
Em um momento desesperado o demônio se atirou aos seus pés e tomando sua mão entre as suas a colocou sobre seu peito e ali com o coração descompasso declarou todo o seu amor e implorou por seu perdão, e ali naquele momento naquele lugar ele teve que negar o único pedido que não pudesse atender, ela lhe pedira que chorasse, ela queria ver sua lágrima, queria saber como um demônio chorava por aquela que amava, ele disse não, não poderia chorar, não poderia mostrar a ela como um demônio chorava por aquela que amava não que ele não quisesse chorar, não que ele se negasse a mostrar a ela suas lagrimas, e que ele não podia, pois se chorasse se deixasse que ela visse suas lagrimas, ele se entregaria de vez e aí não haveria volta, ele deixaria de ser um demônio, para ser um homem, ele não poderia ser novamente um homem, pois se voltasse a ser um homem estaria morto e aí sim estaria para sempre longe dela.
Tendo seu pedido negado e incapaz de acreditar nas palavras do demônio que só queria protege-lá e ama-lá, a menina lhe deu as costas e o deixou lá caído no chão, encolhido e soluçando num choro sem lagrimas, caído sobre a poeira envolto em nuvens de dor, desespero e solidão, sozinho, perdido e amargurado, ele ficou lá caído no chão no meio de um deserto escuro e frio sem sequer o vento por companhia, mas uma vez ele estava recolhido dentro de si mesmo em um lugar onde ninguém, exceto ela poderia alcançar com sua voz, chamando o seu nome poderia invocá-lo, porem ela não o chamou. Não o invocou, ela o deixou lá.
Muito depois que ela se foi o demônio se ergueu, olhou para frente e caminhou , mas nunca mais amou,dizem que mesmo agora onde esta, o demônio zela por ela, sempre pronto para protegê-la se ela quiser ou precisar e só seu nome chamar.