Mundo Negro
Eu desci as escadas da rua imunda. A rua da podridão era onde eu morava. Durante a noite eram apenas ratos, baratas e o mijo no asfalto apodrecido, onde o lodo se acumulava. Escura, com poucos postes, as vezes eu nem sabia onde pisava.
Os pivetes cheiravam, todos juntos dentro de uma manilha, num beco, próximo a escada. Próximo a minha escada, que descia para os confins da minha casa subterrânea.
Passando pelo último degrau a escuridão era total, eu tateava a parede áspera para achar a maçaneta enferrujada. A porta rangeu quando passei. Estava cansado naquele dia.
Minha casa cheirava a mofo podre, era mais uma biblioteca do que uma casa. Tinha mais livros que comida na geladeira. Aliás, o que tinha dentro dela estava apodrecido. Foi no auge da revolução industrial. Mão de obra requisitada nas fábricas. Larguei a família, larguei o singelo campo e fui para o mundo cinza e negro. Sinceramente, estou sempre coberto de fumaça preta, não sei qual a última vez que tomei um banho. A água cai suja e rala nessa encanação enferrujada. Tudo aqui é precário, eu trabalhava dezoito horas por dia e disputava sobras no lixo com os ratos. Acho que estava doente também. Nunca tinha me sentido tão mal. Eu era estudante antes de perder a vida. Perder a vida para o emprego, para o trabalho praticamente escravo. Mas eu tinha um amigo. Eles o chamaram de Analgésico narcótico. Meu coração batia mais rápido com ele e minha respiração acelerava. Eu sentia que estava no inferno. Eu também sentia muito sono. Espetava uma ou duas vezes na veia do meu braço esquerdo, depois me contorcia no carpete imundo. Eu sentia fortes dores, e também calor intenso. Como se o demônio me abraçasse e sussurrasse em labaredas na minha nuca. Ouvia barulhos na porta, batidas fortes, como se quisessem arrombar. Eu levantava, tropeçando entre as quinquilharias. E a porta abria sozinha. Mas não tinha ninguém lá. Apenas o escuro. Um vento gelado passou por mim, mesmo naquele inferno que estava meu corpo eu pude sentir. Senti uma pancada no maxilar e caí no chão de novo. Foi engraçado, aquilo me fazia rir. Aquela merda de ferida. Aquela merda de emprego. Aquela maldita casa imunda. Filhos da puta eram os meus pais! Que me mandaram para o covil da cobra. Para a vida maldita na cidade.
Então eu queimei todas aquelas porras de livros! Queimei as cortinas, o tapete e minhas roupas. Coloquei o vinil que eu mais gostava, Bauhaus. E cantei feito um louco, vendo as chamas levarem tudo de ruim. Cuspi nas chamas e parti daquela casa. Subi as escadas ao som de labaredas. Lá estavam os pivetes dormindo. Pois eu taquei fogo em todos também, cambada de vagabundos, mereciam arder até virar carvão. Acordaram aos gritos, e sua agonia era minha canção. E eu dancei com seus gemidos de dor. Enquanto os queimava sem dó.
Foi quando algo passou voando na minha frente. Maior que um morcego, do tamanho de um homem. Negro, com asas peludas, senhor da escuridão. As velhas de xale subiam as escadas, vindo do fogo. Subiam ardendo em chamas, segurando velas e cantando em procissão.
A loucura era o maestro principal. E por último levei um tiro na veia, pois queimou como aço em brasa na minha pele.
Meus olhos falharam e eu adormeci, tremendo, morrendo, sentindo dor e tendo convulsões. Que duraram mais de seiscentos anos. E quando tudo se acabou, minha visão voltou ao normal. Eu vi que estava em casa. No meu prédio, na cidade. Do meu lado, minha esposa dormia tranqüila e não tinha sequer suspeitas de toda aquela viagem. Afinal, ela não conheceu minha infância perturbada. Não sabia que naquele momento eu estava mergulhado em heroína. E muito menos que havia vendido minha alma ao Diabo.