O vira-lata...
O VIRA-LATA. . .
Há uns três anos atrás eu o vi pela primeira vez dormindo sob a pequena laje da entrada da minha casa. Parecia uma bola de saco de estopa... Seu pêlo, comprido e cacheado denunciava seu cruzamento com uma raça mais nobre do mundo canino...
Sujo e ferido, ele ainda tremia de frio. Pensei em expulsá-lo, mas deu-me dó seu estado. Apanhei a correspondência e voltei pra dentro de casa me perguntando o que fazer com aquele vira-lata e quando avistei restos de comida sobre a pia da cozinha me decidi...
Com a comida numa lata de goiabada e outra com água nas mãos, despertei o cão passando a comida na frente de seu focinho. Sua fome o fez me acompanhar até a calçada do terreno baldio em frente da minha casa onde ficou comendo esganadamente... Voltei pra casa e não pensei mais no assunto.
Semanas depois avistei nosso cão recebendo comida do dono de um bar do outro lado da vila... Ainda magro e sujo, não pude negar, o danado era valente com a vida...
O vi perambulando pelo bairro muitas vezes, mas uma vez que nunca me esqueço foi quando estava sendo chutado por um senhor alto e dono de uma das casas mais chiques do bairro... Essa cena me marcou pela crueldade e pelo ódio que senti daquele homem que só porque era maior em tamanho e de espécie, digamos, mais avançada, se achava no direito de ser violento com um ser que o importunava pela simples presença e no máximo pelo mau-cheiro, afinal o cão estava apenas na rua passando...
Depois desse dia o cão desapareceu e ontem, três anos após eu o vi novamente e o incrível é que ele estava do mesmo jeito... Magro, sujo e apanhando... Agora era um moleque de uns treze anos de idade o seu algoz. Parei o carro, dei uma bronca no moleque que pela expressão me achou um ser estranho por me importar com um vira-lata estropiado...
Peguei o cão, que era manso, coloquei no porta-malas do carro e levei a um amigo sitiante que aceitou ficar com o animal. Na volta para casa lembrança do olhar de espanto do moleque me trouxe pensamentos...
Primeiro sobre mim próprio. Eu ajudei àquele cão porque tinha restos de comida em casa, restos que dei longe do meu portão e que minutos depois eu sequer me lembrava do que fizera. Embora tenha visto o cão outras vezes só o ajudei pra valer três anos depois...
Agora o homem rico e o moleque... Como o mal é praticado sem qualquer justificativa plausível... É tão fácil chutar um cão de rua quanto cuspir na calçada, a diferença é que um cão sequer incomoda na boca...
Por último o cão... Fiel ao seu instinto nunca desistiu de viver, sempre o vi lutando por comida e por abrigo, lutando pela chance de continuar vivo...
Foi-me inevitável comparar esse cão a nós, os “humanos”...
Quantos de nós semelhantemente ao cão da história recebemos violência ou indiferença e às vezes um prato de restos nos portões das mansões? Quantos de nós lutamos dia a dia pra sobreviver e quantos de nós não fazemos nada pra ajudar? Quantos de nós fazemos efetivamente algo pelos outros? Poucos, muito poucos, infelizmente...
Ah, o cão vai bem, obrigado... E Feliz Natal a todos... A todos...