Natal Branco - fato real
Estávamos em aproximadamente 20 cantores quando entoando a canção natalina “White Christmas” , em português “Natal Branco”, adentrávamos no primeiro portão da Penitenciária da Capital Catarinense.
Era natal, a cidade estava toda decorada, com papais noéis, estrelas iluminadas, presentes, laços, velas gigantes decorativas, árvores enfeitadas e contornos brancos simbolizando neve.
Muitos símbolos, herança do natal europeu e norte americano, que nós, latino-americanos, herdamos e sonhamos com um “Natal Branco”, com neve e com um velhinho todo encasacado vestido de vermelho vindo do pólo norte em seu trenó. Um natal com presentes, onde todos poderiam fazer sua encomenda para este velhinho, com corais cantando nas ruas e nas catedrais o “Noite Feliz”. Um natal onde ninguém precisasse comprar, pois, não haveria motivos para compras, uma vez que o bom velhinho atenderia generosamente todos os nossos sonhos.
Adentrávamos agora pelo segundo portão da penitenciária que detinha em seu interior 1.500 presidiários, nesta segunda entrada o portão de ferro fundido com enormes cadeados era aberto pelo agente penitenciário que com um gentil sorriso gesticulava para que prosseguíssemos cantando.
Passávamos agora por um estreito corredor ladeado por grades altamente resistentes. Grades brancas com algumas partes da pintura já gasta, provavelmente por mãos aflitas que as apertavam em dias, semanas, meses ou anos de passagem por este corredor.
Cantávamos a canção “Natal Branco” e podíamos observar as brancas e imponentes grades onde estavam enjaulados filhos, pais e irmãos que cometeram desde crimes hediondos até roubos comuns. Barbáries, latrocínios, genocídios, assassinatos, chacinas, estupros, roubos... enfim, seguíamos cantando imaginando onde chegaríamos em nossa caminhada.
Adentrávamos agora por uma terceira repartição que se dividia em duas áreas de celas: o pavilhão A e o pavilhão B. Essa era a área de regime fechado onde estavam as pessoas que cometeram as piores atrocidades. Imaginávamos que estivessem nos ouvindo aproximadamente 1.000 presidiários. Sim, imaginávamos! Porque nós não os víamos. Estávamos posicionados agora em uma área central, cercada por grades de aço e por detrás das grades haviam pequenas portas, totalmente vedadas em ferro fundido, onde, por detrás daquelas portas, em pequenas celas estavam os detentos.
Olhávamos para os lados, para cima e para trás. Estávamos cercados de grades e de portas. Acima de nós, outros andares seguiam compondo a paisagem gélida, sinistra e tenebrosa. Soltávamos nossas vozes, agora ainda com mais vigor porque sabíamos que nossa música estava atravessando os grilhões e chegando aos corações, muitos petrificados, de outros seres humanos.
Pensávamos: como estão recebendo estas canções natalinas? Quando entoamos o Noite Feliz, imaginávamos: será que lembrarão a infância? Quantos natais já passaram? Quantos ainda passarão?
Nos momentos de nossas pausas para troca de música o silêncio pairava no pavilhão penitenciário. Não ouvíamos um único ruído de dentro daquelas centenas de celas. Parecia que estávamos diante de um público exigente que atentamente nos ouvia, sem comentar e nem mesmo aplaudir.
As canções continuavam pairando o ambiente. Sabíamos que nossa música adentrava as celas. Naquele momento nenhuma outra forma material poderia penetrar aquelas barreiras, mas nossa arte penetrava.
Esforçávamos para cantar afinados e bem ritmados. Não podíamos nos deixar contagiar pelo ambiente mórbido e pela frieza que nos cercava.
Sabíamos que nossa voz atravessava todas as barreiras da penitenciária, mas nosso desejo era que nosso canto pudesse atravessar as barreiras do ódio, da vingança, do crime, do arrependimento e pudesse chegar até o coração daquelas criaturas.
Tentávamos imaginar os motivos que os levaram a cometerem seus crimes. Quem sabe a falta de oportunidade, a pobreza, a imposição de padrões intangíveis por uma sociedade, o culto ao luxo e ao corpo, o ódio gerado pelo desprezo ou a compensação por uma infância maltratada.
A única coisa que podíamos oferecer naquele momento era o nosso canto. Nosso canto que atravessava os grilhões e que acreditávamos que também poderia atravessar as barreiras da alma.