Nos braços de Angelina
Nos braços de Angelina
(1o. lugar 14o. Concurso Nacional de Poesia, Crônica e Conto da ALECI-SL)
Faltavam quatro meses para que Rafael completasse 12 anos. Mas ele tinha plena consciência de que seria difícil chegar até lá, devido ao seu problema de leucemia. Sua família não era abastada, mas possuía recursos suficientes para lhe proporcionar uma vida regular. Seus dois irmãos mais velhos lhe tratavam bem e tentavam tornar sua breve passagem por aqui menos dolorosa.
Seu pai, funcionário do Itamarati, ficou surpreso quando no Natal o garoto lhe pediu um livro, ao invés de um aparelho de games ou uma ferrovia elétrica para montar na varanda da casa. Mas sua mãe conhecia seu gosto pelas aventuras escritas, ao invés de filmes de ficção cheios de efeitos especiais.
Na noite da festa, Rafael abriu o embrulho cheio de expectativas. Seus olhos brilharam de alegria quando segurou o belo exemplar de capa de couro azulada, com o rosto de uma bela adolescente loura, aparentando 12 ou 13 anos. Leu duas vezes a dedicatória preparada pela sua mãe e deu algumas folheadas rápidas nas quase 120 páginas repletas de primorosas ilustrações, apreciando a textura das páginas e o gostoso aroma de jasmim. Colocou-o sob o travesseiro do seu quarto, prometendo começar a le-lo no dia seguinte, antes de dormir.
No dia 25, após o passeio com a família pelo frondoso Parque Nacional de Teresópolis, lancharam numa pizzaria no bairro onde moravam, chegando em casa em torno das 17 horas. Rafael tomou banho, colocou o pijama amarelo com círculos negros, recebeu os beijos familiares e foi para seu quarto com a intenção de iniciar a gostosa leitura.
Sentado na cama, Rafael ouviu seus irmãos saírem em suas motos ao encontro das namoradas. Seus pais ficaram na sala, atentos à televisão fútil. Quando chegou à décima página, a chuva fina começou a cair. Às 20:30, já estava na página 75, apreciando a figura da bela jovem sentada numa cadeira de balanço, abraçada ao lindo buquê de flores que havia recebido de Gustavo, filho do jardineiro do orfanato onde residia. A chuva estava mais forte. Um raio iluminou toda a região. O transformador da rua explodiu e a casa ficou às escuras.
Rafael escorregou para a posição deitada, abraçou o livro aberto, fechou os olhos e repassou os fatos em sua mente até onde havia lido.
“Angelina era filha de um traficante de drogas, que morrera num tiroteio. Sua mãe era dançarina de cabaré e deixou a filha com uma prima, que a colocou num orfanato. Como esta prima não podia pagar a estadia da garota, a menina cresceu ali quase como escrava. Trabalhava duro, perto de 12 horas por dia, sem recompensa equivalente. Quando completou 13 anos, conheceu Gustavo, 15 anos, filho do jardineiro que visitava o orfanato duas vezes por semana. Por ser tímido, ele ainda não revelara sua paixão por ela. Após dois meses de contato, ele lhe deixou o buquê no armário de limpeza na cozinha, com um cartão contendo apenas o nome dela, desenhado com pétalas de Margarida. Mas Angelina sabia a origem das flores. Também simpatizava com o jovem que lhe ajudava a sobreviver dentro daquele universo tristonho.”
Rafael bem que desejou estar no lugar de Gustavo, nem que fosse por um momento, só para roubar um longo beijo da sua bela princesa e poder lhe dizer para ser forte e resistir às dificuldades que a tornariam uma mulher de fibra.
Uma trovoada mais forte fez Rafael abrir os olhos. Seu coração bateu forte. Angelina estava sentada na poltrona ao seu lado, com um sorriso nos lábios. Ela falou com a doce voz que ele imaginou:
- Não se assuste, Rafael. Sei seu nome, pois o vi na dedicatória. Minha história foi criada há mais de 80 anos. Todos que a lêem, se imaginam participando dela de alguma forma. Por ser carente, bem que esperei conhecer alguns amigos com quem pudesse conversar. Porem, jamais alguém entrou no livro para me dar o prazer de sua companhia. Portanto, hoje resolvi sair do papel e conhecer você pessoalmente. Como a luz acabou, se você quiser, eu mesma lhe conto o restante da história.
Rapidamente, Rafael saiu da cama e se acomodou emocionado no colo de sua amada, que suspendeu a cabeça do rapaz, de forma a conseguir encostar seus lábios na boca carnuda do jovem. Ele sentiu o gosto de cereja que tanto apreciava.
Às 23:30 a energia retornou. O pai de Rafael notou a luz acesa no quarto do garoto. Imaginou que ele já estivesse dormindo. Abriu a porta e o viu mal acomodado na poltrona, com o cobertor manchado de baton servindo de travesseiro. Ao chegar mais perto, percebeu que o corpo do jovem estava inerte e seu coração havia parado. Quando sua esposa se aproximou com lágrimas nos olhos, ele a informou que Deus havia levado o anjo para descansar no Paraíso. Ela se inclinou com as pernas trêmulas, para o último abraço no seu filho querido. Seu pé esquerdo tocou no livro sobre o tapete. Agachou-se e o recolheu com muita delicadeza. Antes de fecha-lo, observou a página 75, contendo uma bela jovem sentada na cadeira de balanço, tendo ao colo, uma criança, toda vestida de amarelo, cujo tecido era ornamentado com círculos negros.