A Carruagem de Prata - Série contos  de Natal 3
     

     
Já passei uma vez por uma situação dessa. Eu tinha organizado uma festa de Natal para reunir amigos solitários, mas bem antes da ceia já desejava que tudo aquilo acabasse. Não podia suportar mais o caos em que se transformara o meu apartamento, na vã tentativa que todos faziamos para nos enganarmos mutuamente, fingindo, se não felicidade, pelo menos alegria. Nessas festas a gente perde o controle total sobre os convidados. Eles nunca aparecem sozinhos. Uma reunião planejada para um grupo de dez pessoas acaba contando com o dobro, muitas vezes até mais. Muitos que estiveram lá aquela noite eu seria incapaz de reconhecer mesmo que esbarrasem em mim no dia seguinte, nos corredores do prédio. Mas aquele homem chamou a minha atenção. Não foi porque se vestia de maneira simples e até fora de moda, eu não dava atenção a isso. Além do mais os meus amigos não têm o menor senso para se vestirem. Ele
chamou a minha atenção porque era descomunalmente alto. Passara o tempo todo bebendo junto à janela, olhando para fora, vendo não sei o quê, já que ali do vigésimo andar não havia muito para se ver, exceto a chuva. Tentei descobrir com quem viera, mas ninguém sabia. Como boa e curiosa anfitriã me aproximei, mas ele não me deu papo. Eu já tinha problemas de mais para esquecer e não insisti em arrumar mais um. Deixei-o em paz.

     Certa altura da noite, tendo esgotado toda a minha imaginação para fazer com que a festa ficasse animada, resolvi sservir a ceia mais cedo para que todos fossem embora e eu pudesse ficar sozinha outra vez, como sempre. Estava indo para a cozinha dar as últimas ordens quando, não sei de quem surgiu a idéia de que cada um de nós deveria contar uma história de Natal, como aqui agora, talvez com o objetivo de nos ligarmos mais uns aos outros, de introduzirmos na festa um toque de ternura e emoção. Três ou quatro pessoas falaram, não me lembro bem quantas, mas a idéia não surtiu o efeito desejado. As histórias eram insípidas, sem nenhum encantamento, pelo menos para quem ouvia. Notando sinais de impaciência em alguns convidados, bocejos disfarçados, achei melhor parar com aquilo e partir para a servir a ceia. Antes que eu pudesse tomar qualquer atitude, o homem assombrosamente alto e visivelmente bêbado disse que gostaria de contar uma história que tinha se passado ali, no lugar onde hoje se erguia o meu edifício, quando nada mais havia do que uma casa velha com cômodos para alugar, um armazém e um botequim da pior espécie. A curiosidade em torno, não da história que viria a ser contada, mas do homem alto fez com que eu me sentasse novamente. Percebi que a curiosidade era de todos. Posicionaram-se nos seus assentos, bocejos foram contidos. Todos olharam atentamente para o estranho convidado como se só então o tivessem notado. Ao perceber que era o centro das atenções ele se desencostou rumando para o centro da sala, ficando mais alto ainda. Seu corpo magro tentava manter o equilíbrio, as pernas meio abertas, um copo na mão e na outra o cigarro. e o que ele contou naquela noite, sem interrupção, foi mais ou menos o que vou contar aqui, com diferenças apenas de sinônimos e pontuação.

     "Ana e Acácio Fernandes eram um casal de sitiantes que viviam em um lugarejo não muito distante dessa cidade. Tiveram dois filhos, Davi e Tonhão. Davi era acomodado, só queria cuidar do sítio e nada mais.Tonhão, sonhador, vivia inventando coisas, histórias incríveis que divertiam a todos que o ouviam. Muitos achavam até que não era bom da cabeça. ,Depois que os pais morreram, um em pleno luto do outro, Tonhão deixou o sítio para o irmão e foi correr mundo. Durante muitos anos nada se soube dele, até que em certo Natal ele voltou. Trazia com ele um menino. Tinha se casado e sido feliz. Com a morte da mulher estava meio desnorteado, não sabia o que fazer com o filho e nem com ele mesmo. Precisava deixá-lo por uns tempos até arranjar um novo emprego e um lugar para viver com o menino. Daví, que havia se casado também e não tinha filhos, ficou encantado com a possibilidade de ter uma criança em casa. O menino era tal e qual o pai, inventivo e sonhador, acreditando em coisas impossíveis. A despedida de ambos foi patética. Tonhão, entre lágrimas, prometeu ao filho que voltaria para buscá-lo no próximo Natal, em uma carruagem de prata puxada por cavalos brancos. Prometeu ainda que se ele fosse um bom  menino e o deixasse partir, lhe daria então o relógio de bolso como presente, o relógio que ganhara do pai e o pai do avô. Animado com a promessa, mas sem deixar de chorar, o filho consentiu em ficar. Tonhão então foi embora, sem olhar para trás nem uma vez. Tinha medo de fraquejar.

     Durante aquele ano o menin o contou os dias que o separavam do pai. Nem uma só noite deixou de sonhar com a carruagem de prata e nem por um minuto duvidou que o pai voltasse embora o tio, preocupado com a provável decepção, tentasse preparar o menino para a realidade. Na cidade grande Tonhão nada conseguia. A morte da mulher tinha acabado com ele e nem mesmo a saudade que sentia do filho foi capaz de ajudá-lo. Envolveu-se logo com vagabundos, desocupados, fracassados. Vivia de botequim em botequim, bebendo. Não conseguiu juntar dinheiro suficiente para ir buscar o filho, como havia prometido. Mas, nas noites de beberragem afirmava que cumpriria a promessa, que iria ver o filho em uma carruagem de prata para lhe levar o relógio. A carruagem de prata passou a ser o motivo preferido das brincadeiras dos amigos. Lá estava o Tonhão quieto, encostado no balcão bebendo quando entre um trago e outro alguém gritava: "Lá vem sua carruagem, Tonhão." Ele não se abalava. Continuava a beber e a afirmar que iria mesmo, haveriam de ver para crer.

     Na noite de Natal, Tonhão bebeu mais do que nas outras noites. Os amigos, mudamente acordados, não falaram da carruagem uma só vez. Em certo momento, por entre o barulho de copos, garrafas, risos e gritos, pareceu a todos, embora não confessassem nem a si mesmos, que ouviam um barulho de cascos e rodas. Todos levantaram a cabeça para ouvir melhor e por um instante se fez silêncio de claustro no botequim. Tonhão desencostou-se do balcão como se impulsionado por uma força maior. Tirou o relógio do bolso, olhou-o e disse, a voz ressoando e preenchendo todo o vazio de som: "Está na hora de ir". E foi-se. Passada a estupefação todos voltaram para a bebida, esquecidos o incidente, se enganando a respeito. Menos um: Ditão. Aquela impressaõ de cascos e rodas ficou latejando em sua cabeça e depois de mais uns goles, resolveu verificar. Encontrou Tonhão a poucos passos dali, caído, a cabeça sobre uma pedra, morto. O relógio havia desaparecido. Roubo, disseram. E esqueceram. A imagem do menino esperando pelo pai porém, não deixava de incomodar a insônia de Ditão. Ele também esperara muito tempo por um pai que nunca viera. Indagando daqui e dali, juntando pedaços de lembrança, descobriu onde vivia o irmão de Tonhão. Assim que conseguiu algum dinheiro, foi até lá. quieria falar com o garoto, contar do pai e de seu amor. Mas não precisou chegar até ao sítio do Davi para saber o que acontecera lá, naquela noite de Natal, a mesma em que Tonhão morrera. Ali na vila mesmo, em um canto de balcão ficou sabendo. Naquela noite Davi e a mulher custaram a adormecer o menino febril, que esperava pelo pai. Assim que conseguiram, sairam para a Missa do Galo deixando a criança com o casal de empregados. Chovia muito.Quando voltaram, Davi ao descer do carro para abrir a porteira, viu um vulto caído.Foi ver o que era, pensando em um de seus animais,  bezerrinho extraviado do abrigo. Era o menino. Morto.Tinha batido a cabeça em uma pedra. Nas mãos, trazia apertado, o relógio do pai."

     Quando ele acabou de falar, ficamos todos em silêncio. Ele tirou o relógio do bolso e disse: "Está na hora de ir". Ninguém se lembra como ele saiu. Ninguém viu. Mas eu juro. Todos ouvimos barulho de cascos e rodas. Mesmo dali, do vigésimo andar.