Meu natal com Lucy
Era noite alta. Passava da véspera de natal. Eu me lembro perfeitamente. Meu pai e eu estávamos sentados ao redor da lareira de sua casa. Ele lia pela enésima vez Moby Dick e eu apreciava uma boa taça de vinho, resquício de uma farta ceia natalina. Jacques saíra para comprar cigarros, já fazia algum tempo. Meu marido fumava feito uma chaminé e não era bom em se planejar, pois não contara com a falta de cigarros justamente na noite de natal. Agora, seria quase impossível ele encontrar algum lugar aberto.
Quando dei por mim, já passava das duas da manhã. Foi eu tirar os meus olhos do relógio, Jacques chegara em casa, sem os seus cigarros. Alegara que rodara a cidade inteira e não encontrara um único comércio aberto. Era de se esperar esse resultado.
Foi então que meu pai propôs o que ele pensara ser a ideia do ano. Que, ao invés de fumar um cigarro comum, por que não ambos fumarem um charuto cubano autêntico. Seria a ocasião perfeita de consumir um daqueles “danadinhos”, segundo meu pai mesmo dissera. Ele tinha uma reserva deles guardada em seu escritório. Presente de algum cliente satisfeito com a compra de um carro qualquer. Ambos foram até o cômodo, e eu permaneci sentada próxima ao fogo, bebericando do meu vinho gelado. Quando saíram, eu acompanhei os dois com o olhar até eles sumirem da sala e, logo em seguida, os vi chegarem com os charutos em suas bocas, com papai segurando a caixa com os artigos de tabacaria, tais como: isqueiro, cortador e alguns charutos restantes.
— Eu não acredito que vocês dois vão fumar aqui. – Exprimi incrédula.
— Qual o problema? – Indagou Jacques, com seu forte sotaque francês. – Deixe os homens serem homens!
— Me poupe de seu machismo, Jacques. E papai, você sabe que eu não suporto nem de longe o cheiro desses charutos. Vocês podiam ter fumado no escritório.
— Tudo bem, filhinha. Nós vamos fumar lá fora, então.
— Obrigada.
Apesar de toda neve e do frio que fazia, meu pai e Jacques foram fumar fora de casa.
Foi a última vez que vi meu pai com vida. E, por minha culpa, pois ele morreu atendendo um capricho meu. Ele estaria aqui ainda se eu não tivesse exigido dele que fumasse longe de mim. Ele teria terminado mais uma vez o seu livro épico, se eu não tivesse sido tão chata. Agora, baleias brancas e charutos povoam meus pesadelos a toda noite. Eu não consigo nem culpar o motorista embriagado que o atropelou. Só consigo culpar a mim mesma. Enfim... agora ele está com mamãe, afinal. Depois de anos sem a sua companhia, eles finalmente se reencontraram. E em um lugar melhor.
Hoje, mais uma véspera de natal que passo sem ele, uma solidão imensa preenche meu coração. Eu perdi mamãe muito cedo, então já havia um certo costume de não a ter por perto. Mas eu convivi muito mais com papai. E é certo que eu vá sentir sempre essa solidão nessa época do ano, já que foi quando eu o perdi. Só me resta Jacques nesta vida. Não sei o que eu faria se também tivesse o perdido naquela noite. Não sei o que farei caso eu o perca.
Desde o acidente, meu marido deixou de fumar. Ganhou peso, esbanja saúde. Eu fico feliz por sua superação, e ele parece feliz também. Não sei o que ele pensa sobre aquela noite. Ele nunca me disse nada e eu não ouso perguntar. Mas sinto que há um peso nele desde então. Seria algo que só poderíamos superar juntos, mas se ele não quer compartilhar a dor, eu o respeito.
Então mais uma vez o natal passaria em branco. Sem festa, sem ceia, sem vinho perto da lareira. Somente a costumeira condolência condoída e silenciosa. Um contrato recíproco nunca firmado entre nós dois de não comemorarmos a data. Eu praticamente não faço nada por uns dias, mal me movimento. Só fico dentro de nosso apartamento, até acabar o ano.
Mas, este ano, Jacques decidiu aceitar o convite do pessoal da concessionária e comemorar o natal na Horátio’s Autos (Empresa de automóveis de minha propriedade, que eu herdara de papai). Uma quebra na importante cláusula do nosso contrato de não comemorarmos o natal. A desculpa que ele dera foi que fazia anos que eles convidavam a nós dois e sempre recusávamos.
Relutantemente, aceitei ir. Também fazia um bom tempo que eu não pisava naquela loja de carros. Ao chegar na Horátio’s, um calafrio percorreu todo o meu corpo. Eu sentia que não deveria estar ali. A vontade de sair correndo só não foi maior do que meu repentino congelamento. Parecia que o frio extremo daquele inverno que havia me congelado, mas foi meu pensamento que mandou o comando “petrificar” para todo o meu corpo. Estaquei no meio do estacionamento e Jacques, percebendo que algo estava errado, perguntou:
— Está tudo bem, Mona?
Não, não está nada bem. Mas, aparentemente, eu também não conseguia falar. Um aperto crescente em meu peito doía e eu queria chorar. Mas as lágrimas não vieram. Jacques se aproximou mais ainda e insistiu:
— Mon Amour? O que se passa, Mona?
O máximo que consegui foi abrir a boca e exprimir sons ininteligíveis, semelhantes a ganidos.
— Acalme-se, sim? Vai ficar tudo bem. Você não precisa ir se não quiser.
Ótimo. Vamos embora. Assim que meus pés voltarem a me obedecer, nós vamos partir.
Passaram-se alguns momentos até eu conseguir respirar fundo e dar meia-volta. Jacques me acompanhava de perto. Cruzamos a pista e, já na outra calçada, as lágrimas vieram. Ele envolveu seus braços em mim e tentou me confortar. Foi só quando parei de soluçar que ouvi o choro. Achei estranho, porém era algo natural de se ouvir. Mas aquele choro, por algum motivo, me atraiu até sua fonte: um beco escuro próximo de onde estávamos. Parei em frente a uma caçamba de lixo, onde o som abafado ficou mais forte. Abri a tampa e vi aquela pequenina criatura aos berros, envolta apenas por um lençol puído. Não me contive. Envolvi-a em meus braços e a balancei devagarzinho, até ela parar de chorar. Olhei para meu esposo, que estava estupefato. Só pude dizer a ele “ligue para a polícia”, pois as lágrimas retornaram com uma força nunca antes vista.
A viatura não demorou a chegar. Fomos conduzidos até a delegacia, onde tive que contar o que acontecera. A bebezinha, batizada de Lucy, foi levada para o hospital para avaliação médica. Aparentemente, ela ficou horas no frio. Fomos liberados logo, antes mesmo da meia-noite.
Algo em mim havia mudado. Eu não sabia dizer o que, mas tinha, definitivamente, algo diferente em mim. Uma sensação de esperança renovada e, ao mesmo tempo, uma total falta de fé na humanidade. Como alguém podia abandonar um bebê recém-nascido na noite de natal? Porém, aquele calor que senti ao envolver Lucy em meus braços, fez arder uma chama dentro de mim. Eu precisava ver aquela bebezinha novamente.
Caminhando pela noite fria, Jacques e eu não trocamos palavra. Nevava muito naquele momento e ventava, não muito forte nem muito fraco. Chegamos em casa, Jacques foi ligar para o pessoal e dizer o motivo de não comparecermos, e eu fui me deitar. Demorei a pegar no sono, e quando dei por mim já era manhã. Levantei-me e fui fazer café.
Quando a chaleira apitou, Jacques apareceu na cozinha. Disse que alguém estava ao celular querendo falar comigo. Atendi e conversei por cerca de cinco minutos com um policial que queria avisar-me sobre o estado de saúde da pequena Lucy. Aparentemente, estava tudo bem. Não me contive e perguntei onde ela estava, pois gostaria de vê-la. Ele informou que ela se encontrava no Esther Emancipation Hospital. Desliguei o celular e parecia uma criança no natal prestes a abrir os presentes, tamanha a minha felicidade.
Encaminhei-me para o hospital, juntamente com Jacques. Chegando à recepção, informei que queria ver a bebezinha chamada Lucy, que chegara ontem. A recepcionista me perguntou o meu grau de parentesco com a criança. Não havia nenhum, eu só queria ver a menininha que eu salvara do frio.
— Eu me chamo Mona Del Vecchio, eu estava na rua ontem quando encontrei Lucy em uma lata de lixo. Eu a envolvi em meus braços para aquecê-la e liguei para a polícia. Depois ela foi trazida para cá.
— É uma história muito bonita, senhora. Mas sem parentesco não pode ver a bebê.
— Tenha coração! Ela foi abandonada, não tem família nenhuma. Eu sou tudo o que ela tem.
— Desculpe. São ordens do hospital.
— Abra uma exceção para ela. – Argumentou Jacques. – Eu tenho certeza que fará bem à bebezinha. É natal. Dê esse presente à minha esposa. Por favor?
A recepcionista nos olhou com uma expressão séria e indecifrável por um momento. Então liberou a minha passagem. Jacques beijou-me e ficou me encarando do saguão vazio enquanto eu me afastava. Chegando aos leitos infantis, bati o olho e reconheci Lucy entre os demais bebês. Ela dormia serenamente, ostentando um laço rosa em seus parcos fios de cabelo. A emoção inundou meu corpo e chorei novamente. Que efeito era esse que aquele pequeno ser tinha sobre mim? Indaguei-me.
E foi assim que Lucy passou seu primeiro natal: dentro de um hospital, comigo a observando através de um vidro por um bom tempo. No ano seguinte eu a adotaria. Este seria o primeiro de muitos natais que passaríamos juntas, apesar de separadas por uma parede.