O NATAL DE 82 (2a. versão)
Na ocasião o que interessava era ter o coração aquecido. O mal é frio, assim como o inferno, que é frio, escuro de uma escuridão pós- lusco-fusco
e venta permanentemente, rajadas silenciosas sobre galhos frondosos de árvores com copas enormes que não apresentam a musicalidade do estalo, posto que petrificadas, logo não á folhas, quanto mais flores, tampouco há certeza de que vente; brisas e aragens são fictícias, pois, em suma, o inferno é dúbio e, quando convém, enigmático, mas não do enigma salutar Divino, que nos desafia a inteligência, mas da classe daqueles da esfinge, cheio de segundas e terceiras intenções com o fito tácito da destruição: Não se pensa tais coisas aos dezenove anos de idade, ainda bem! É o tempo quem propicia laços com o Diabo. De jeito nenhum Satanás é caprino ou reptiliano, nada tem de serpente, é aracnídeo, tece a teia do mal ao nosso redor, quando menos se espera somos presas sua. Não entendo de anjos nem de coisas divinas porque envelheci, acho, porém, que o Senhor envia-nos um anjo da guarda, cuja essência espiritual é de miasmas metálicos oxidados por nossos humores ao longo do tempo; tal enferrujamento reduz a defesa, ocasião na qual o Diabo emprega as fiandeiras.
Sim, o coração estava enregelado, eram tempos de recessão econômica,
polarizado na tristeza, friagem de neve... ou geada, melhor geada, à qual estou familiarizado: Tantos orvalhos, tantas neblinas... nada de alfa, longe de ômega fico no delta dos rios da confusão e injúrias e nenhuma foz faz o que fez o fastio... mas isso é agora, prestes a ir embora. Inevitável a lembrança de Scrooge visitado por espírito, assim como esquecer-me de Dickens e Leonílson*. Para mim, naquela época, Marx era sinônimo de Jesus, platonicamente o via como reflexo do mundo ideal, reflexo tolhido pela materialidade, logo imperfeito, mas era um vislumbre, já que o operariado não se instruira nem derrubara o Estado, papa ou leis: Queria tanto que o homem jamais perdesse a inocência ! Querer não é poder, mas perder... conquistas e vitórias são miragens do ego... não há como vencer ou conquistar quando tantos têm tão pouco... mas não entendo pobreza como sinônimo de desdita, porém os tentáculos dessa mostram-se quando o pobre sofre opressão...
e sempre foram e serão oprimidos, não apenas eles, como todos os homens, porque há este diabo chamado Discórdia, que ri malévolo das peças que impetra, camufladas de fatalidade. Não tinha consciência disso aos dezenove nem aos trinta e nove anos **, certas coisas só enxergamos na velhice.
Lembro-me de que naquela época não me interessava por sexo, ainda não amadurecera ( ou regredira) nisso, queria apenas amar de um amor oceânico, à Dickens ou São Francisco de Assis, amor desinteressado e equânimo, incondicional: Não é de se espantar um jovem querer ser Deus, é preciso considerar que o adolescente ainda não é adulto, tem muito de criança, criança que ensaia vontade própria com muito mais ímpeto e impregnada de boas intenções, esperança, otimismo. Sendo assim, naquela véspera de Natal saí do trabalho completamente empoeirado, suado, calorento pelo forno da Cerâmica Weiss, mas com frio no coração, porque a luta pelo sustento não tem o mesmo fascínio de um trabalho cuja realização traz prazer pela própria realização;
a luta pelo sustento num trabalho braçal e maquinal nos esfria e desumaniza, por isso queria aquecê-lo e nada melhor para isso do que fazer o bem... e bem é caridade, não das que se contentam em distribuir migalhas, o das que se divide o que se tem, ou mesmo das que se despojam de tudo e no fim se transformam num negócio qualquer, espécie de escambo sem trocas. não, tal caridade não me aqueceria...
mas não dispunha de recursos materiais, minha caridade teria de ser oferecida na forma de amor.
Naquela época o Diabo escarnecia de mim por intermédio das pessoas ao meu redor. os de minha idade consideravam-me esquisito, os mais velhos davam-me sugestões imbecis e os mais novos não me entendiam. Eu era de fato muito esquisito, sentia dó de bichos maltratados, pena de pessoas desamparadas; combatia com o que fosse possível as injustiças, queria que o mundo fosse melhor, houvesse menos ganância, egoísmo e sensualismo. Embevecia-me ao som de Häendel ou diante de uma planta que crescia, sorria para os piados e voos de pardais e dedicava-me a observar a evolução de voos de urubus pairando no céu, ao gosto dos ventos. Nada podia fazer para me modificar, nascera com o dom de apenas me interessar pelo que fosse interessante, só pessoas cultas ou sofredoras chamavam-me a atenção, as demais eram como coisas, talvez semáforos, dos quais só nos damos conta ao atravessar a rua, pouco nos importando com suas consistência e substância: Que graça poderia haver em quem se via ou sentia feliz? Conhecia bem a essência dessas felicidades, consistia-se em se embebedar em bares, fazer sexo com quem se dispusesse, ou drogar-se ao som de The Doors ou Led Zeppelin - O que alguém assim teria a me ensinar ? Tinha o desejo ardente de saber algo que jamais encontraria impresso, por que as pessoas sofriam ? Hoje a resposta é decisiva, ressonâncias magnéticas apontam más constituições de cérebros irremediavelmente depressivos, estruturalmente fadados à melancolia: Soa-me tão fatalista quanto Freud ou textos bíblicos, mal deram os primeiros passos na neurociência e já oferecem verdades definitivas, é quase mito. Nunca ocorre aos ocupados com a psicologia humana que as pessoas sofrem e são tristes porque o mundo as faz sofrer e é igualmente triste; categorizam como doentes todos os que de algum modo descobrem esta simples verdade, o mundo é ruim, as pessoas são más e o sistema é implacavelmente explorador e injusto. Não é só isso, a consciência da morte, a noção do tempo e certeza de perdas irreparáveis, essas coisas impossibilitam a felicidade de qualquer ser razoavelmente perspicaz. Os momentos felizes ludibriam e embriagam, o egoísmo clama por mais, contudo, a vida não nos faculta felicidade indefinidamente, muito pelo contrário, raramente nos propicia felicidades longas e quando o faz impede-nos a consciência dela ... é ridículo, mas possuir um dedo mindinho nos é indiferente até perdê-lo, só então percebemos o quanto éramos felizes quando o tínhamos.
Carregava embrionariamente essas ideias nalgum ponto indefinido da mente. Eram germes de infelicidade plantados por Satanás, sementes desidratadas ávidas por rega. Julguei que o coração se aqueceria se visitasse o tio e as três tias solteirões e solitários, para isso convidei meu irmão caçula de dez anos de idade: Como o amava! Bem poucas as pessoas por quem tive esse sentimento tão difícil de definir até mesmo pelos melhores poetas ou santos, mas vai aqui uma tentativa: "É como o badalo de sinos de uma catedral, supondo-a bem vetusta e taciturna e que nos inspire temores de condenação para o inferno, mas que tais medos se dissipem assim que se irrompam os sons dos carrilhões, que sempre me sugeriram cânticos angélicos... assim vejo o amor, no oco do silêncio, o som de sinos, que faz o coração deixar o batuque primitivo para reelaborar-se como sinfonia". Até hoje, agora ambos maduros, sempre que olho nos olhos desse meu irmão ouço sinos ( é claro que a natureza desse amor não contém a mesma fibra daquela que nutro pelos oprimidos, para esses a imagem é esta: "Há um sertão de caatinga, árido, repleto de mandacarus e lagartos, mais seco porque em época de estio prolongado e, de repente, pousa em um cacto um pássaro multicolorido, cujo canto é mais belo do que o de uirapuru." - Sinos e pássaros ... Amor é música interna, nada tem que ver com paixão homem-mulher, para essa reservo a imagem de dois macacos em cópula.
A janela da sala de meus tios dava para a rua, antes de chamá-los, os entrevi tristes e solitários, logo eles, tão generosos! O coração tornou-se solo propício para Satanás lançar-me a semente de dúvida sobre o princípio, quase à Rousseau, de que o homem, não obstante o óbvio, é intrinsecamente bom e digno e que sobre a Terra paira uma atmosfera não apenas de ar, mas de partículas, ora dispersas, ora agregadas, de justiça. À semente plantada urgia a ação do regador; uma vez germinada, a planta se fez pé de feijão encantado, cresceu mais do que sequoia e atingiu as nuvens; mas ao contrário da história de carochinha, traria misérias e não riquezas: Nunca mais fui o mesmo... descobri que meu amor não valia nada, era insignificante, pois tomado de uma incapacidade gritante de transformar o que quer que fosse.
NOTAS:
* Rios de confusão é uma alusão à certa obra do artista plástico cearense Leonílson, o google contém informações sobre ele e essa obra;
** Há duas versões para esse conto, escritas nessas idades.