VESTIDO NA JANELA!
O dia corria com velocidade exagerada nos ponteiros do relógio. O Sol se punha, também apressado e colorido. Os primeiros ensaios da noite, afixava, no firmamento, muitas estrelas, que mais pareciam pisca-pisca de imensa árvore de Natal, que salpicava luzes prateadas sobre os telhados de zinco, daqueles barracos que se apinhavam na favela. Espetáculo digno de véspera de Natal, essa comemoração milenar, a festejar nos corações, o nascimento do menino Jesus.
É nesse contexto que discorro a história. Nessa favela estavam, também, a família Dantas. Maria Estela, sua mãe, D. Antônia, seu pai, Sr. Cláudio Dantas e totó, o cachorro. Há que se fazer alguns comentários em relação ao caráter do Sr.Dantas, sempre irônico, possuidor de pouco estudo, pouco ofício, e um desinteresse permanente. Daí as dificuldades imensas de empregos, de serviços de qualquer natureza. Este trabalho por que não tinha aptidão, aquele porque era demasiado pesado, e faltava-lhe condições físicas para tal, conforme seu pensar. E é bom que se diga, encurtando a história, que ele abria mão de tais serviços, sem menor cerimônia, sem nenhum remorso.
Porém, o que lhe faltava em instância para o trabalho, sobrava-lhe, no tocante aos goles que sorvia sôfrego e amiúde, os quais pendurava, sempre gastando muitas promessas. Tinha gosto exemplar pelo carteado, beirando as portas do vício, e não raro era banido das mesas, pesado de dívidas e juras.
Diante de tal contexto, apresento a família Dantas, que só não ruía, porque, D. Antônia, mãe de Maria Estela, a sua esposa, a escorava, em que pese saúde modesta. Mas, tal situação, não lhe tirava o título de mulher maravilha, sim, o de Amélia (que era mulher de verdade). Lavava as roupas da sua comunidade, em troca de parcos pagamentos, e ainda financiava. Era diarista para aquela gente, de além asfalto, nos prédios de luxo que se debruçavam, sobre sua comunidade. E, aí dela, se as mãos de sua filha não a acudisse, por certo comprometeria o título. Além disso, em turno extra, concertava as roupas da família, e cosia outras tantas, para algumas freguesas, melhorando a sua renda, quando a madrugada se oferecia silenciosa.
Porém, o que faltava ao Sr.Dantas em presteza por firmar-se em algum trabalho, no intuito de um fazer produtivo, e do sustento da família, desgovernava-se no tocante aos alvoroços do coração, tanto que, na boca da noite do dia 24 de novembro, ele debruçou-se ávido sobre as faceirices de moça, da sua cunhada, e com ela evaporou da favela onde morava, com Maria Estela sua filha, de nove anos, e sua esposa, D. Antônia Dantas, não deixando rastro. Deixando, sim, ambas entregues aos suplícios da vergonha, de más notícias, que voavam de boca em boca.
D. Antônia, mulher forte, logo refez-se, não haveria de deixar vexar-se, pois não houvera sido a primeira pulada de cerca. Ele era dado a esse pula-pula, apesar de não ter nada de si, a não ser seu bem maior, sua família, e a palavra que empenhava, com pouco crédito. E, a demais, logo, logo ele se cansava, e batia poeira. Contudo, D, Antônia, resolveu... prometera a si mesma, desta vez ser a última, iria governar seu coração, não abriria nenhuma porta, não se curvaria, quando ele voltasse. A deixar, também, totó, pulando de alegria, como era costume. Vinha cheio de promessas, a desfazer-se em desculpas e súplicas. Simples perspectivas utópicas. Era questão de dias... logo, logo vinha a rotina... também, ela notara que o fardo ficara mais suportável, pois ao invés de três bocas, eram só duas e olhe, que a dele valia por três.
Contudo, para sua surpresa, os dias se passaram, e não aconteceu o que era de costume, parece que ele tinha perdido endereço de casa.
Os dias realmente passaram, e ela não viu a poeira levantar-se, nem totó também correr como bobo, a dar sinal. Maria Estela amparava o desânimo da mãe. Parece que o ser humano se acostuma com todas as vicissitudes.
Ela contava os dias, e nem sinal. A véspera do Natal, se fez intensa, as luzes da favela pareciam iluminar imensa manjedoura. Todos estavam radiantes, a alegria era comum. As crianças esperavam Papai Noel, com a mesma ansiedade, na esperança de ver um sonho se realizar!
Armou-se de fato um imenso presépio na rua principal, e qualquer uma daquelas crianças poderia deitar-se na manjedoura. Era lá que Papai Noel deixaria os presentes de cada uma delas. O de Maria Estela, não, na sua cartinha pedia um vestido, e determinou a Papai Noel, que o deixasse na janela, como reza a tradição. Um vestido, daqueles que as garotas vestiam, pois nunca tivera um que fosse seu, ademais já estava ficando mocinha, pois, já havia sintomas... a borboleta sairia do casulo! Sempre vestira as roupas velhas que sua mãe trazia, por generosidade de suas patroas. Esse era o seu sonho, um vestido novo!
Vou pôr de lado, o que sucedera ao pai de Estela, mesmo assim, é inevitável informar, que o feitiço virou contra o feiticeiro pois sua cunhada, dias depois, viu um caminhão, e na boleia viu o dono. O Sr. Dantas sentiu o gosto...
Notícias tem asas. Tal fato emprenhou os ouvidos de D. Antônia, que se sentiu vingada, porém nem mesmo era vitória de Pirro. Sentiu ainda mais saudades, e outros quinhões de desilusões. Consequência, a saúde mingou de vez.
Amanheceu o dia 25 de dezembro, sob imensa esperança, e trouxe novas expectativas para a criançada, os embrulhos rasgados fizeram surgir os sonhos. O encanto de agora, cegara as necessidades doutros dias.
A situação de D. Antônia estava aguda, seus pulmões sopravam com economia, ar escasso.
Há uma solidariedade implícita, onde se estabelece a miséria e a dor, lançando mão à ajuda mútua, fato este verificado em relação à família Dantas, cuja mãe se encontrava fragilizada, e a filha à mercê da caridade. Também, há de convir, no período natalino, o gosto de servir se acentua, e abre as portas à caridade. O Natal, ascende o espírito de amor e ternura, e os corações se humanizam.
A menina alheia à situação, a qual vivia a sua mãe, vestia-se de sonhos, e igual às outras crianças, consumia toda a alegria naquele dia feliz.
Quando a Lua saiu. Saiu das bocas dos autos falantes a proposta de Noite Feliz. Era a canção que podia ser ouvida a grandes distâncias, e a todos ainda emocionava...
No barraco de número 25, o contraste se fazia, D. Antônia estertorava. Seu pulmão soprara derradeira gota de ar, que sublimara no espaço como gota de cristal. Ela abrira as asas, voara livre. Fora ao encontro, do Sr. Cláudio Dantas. É que, o amor traz endereços.
Sr.Vilages, seu compadre, saiu às providências, não antes de preparar a vaquinha.
Neste exato momento, Maria Estela lembrara-se que não havia mostrado a sua mãe, o presente que recebera de Papai Noel. Abruptamente entrou no único cômodo, esbaforida e visivelmente contente.
- Mamãe, olha o vestido que Papai Noel me deu. E mirou-se com júbilo de criança, a fazer pose de moça. Mas sua mãe, não só, não pode admirá-la, como não pode responder.
É que: a natureza seguiu o seu destino, 25 de dezembro, nascem e morrem outros Cristos!
Maria Estela, fizera um pedido dramático. Não, a Papai Noel, mas, ao Menino Jesus. Acreditava ser possível. Colocou o vestido na janela.
Albérico Silva