A boneca caolha

Meu jovem leitor, minha jovem leitora! Gostaria de compartilhar um segredo convosco.

Cá entre nós – não sei se o sabem, mas há muito tempo fui visitado pela rainha Mab e seu cortejo de fadas e elfos; e ela, com seu cetro dourado e cravejado de diamantes, condecorou-me seu embaixador neste mundo. Assim sendo, posso ir e voltar de seus extensos domínios (sem que, porém, seja-me permitido estabelecer-me em definitivo por lá, por mais que tal ideia me seja apetecível) sempre que sinto vontade, e explorá-los em busca de maravilhosas histórias com as quais diverti-los e (quem sabe?) educá-los.

Hoje mesmo acabo de retornar de lá, e recolhi um conto deveras surpreendente! Espero que o ouçam com atenção, e gostem dele tanto quanto eu.

Pois bem! Os domínios da rainha Mab são compostos por vários reinos diferentes, a respeito dos quais espero poder demorar-me algum dia, mas dentre os mais singulares está um que é inteiramente populado por brinquedos. Repleto de adoráveis casinhas habitadas por elegantes bonecas cuidando de seus bebês, fofos e bem-vestidos ursos de pelúcia entre outros bonecos lavrados dos mais diferentes materiais e portadores de diferentes compleições, é conhecido por sua agitada metrópole composta de vistosos arranha-céus de blocos, cortada por um trânsito buliçoso e incessante de piões, bolas, trenzinhos e carrinhos pilotados por homenzinhos diminutos que vêm e vão – e ainda mais pelo enorme palácio onde vive o rei do lugar, sobre o qual falarei em breve se tiverem paciência.

Dentre tantos bonecos e bonecas que habitam o lugar uma merece posição de destaque: obviamente, a heroína de nossa história, cujo nome, como vim a aprender, era Colette. Colette era uma linda boneca, feita da mais fina porcelana e sempre vestida elegantemente num vestido verde; dois róseos coraçõezinhos enfeitavam-lhe as bochechas, e seus pequeninos e delicados lábios eram tão rubros quanto a pétala de uma rosa. Os louros e longos cabelos coroavam-lhe a cabeça como as ondas de um mar de ouro, e seu olhinho azul cintilava como o céu num cálido dia de verão.

Digo “o olhinho”, no singular, pois devido a algum capricho do destino, ou à negligência daquele que criou todos aqueles brinquedos, o outro olho de Colette (o direito, para ser mais específico ao leitor que for exigente) não se abria devido a uma falha em seu mecanismo. Por mais que isso a deixasse levemente aborrecida, tentava pensar no assunto o menos possível, e mesmo sendo portadora deste defeito era sempre tratada com gentileza por seus conhecidos, retribuindo-lhes com o dobro de afeição.

Entretanto, Colette tinha um segredo… E finalmente posso aproveitar tal ensejo para apresentá-los ao rei do país dos brinquedos.

Filipe era, dentre todos os brinquedos, o mais belo; poderia eu compará-lo àquelas estátuas do Pražské Jezulátko que vemos nas igrejas. Trajado em magnífica púrpura e coroado por um diadema incrustado de pedras preciosas, ele gostava de passear pelo reino, perguntando a seus súditos a respeito de suas vidas. Todos gostavam do rei Filipe; era um governante bom e justo, versado em diversos assuntos e muito eloquente.

Um certo dia, durante um de seus passeios, o rei passava próximo à casinha de Colette e parou para contemplar o lindo jardim de flores do qual ela cuidava com todo o carinho. Achando-o deveras encantador, bateu à porta de Colette e perguntou-lhe educadamente se poderia colher uma delas e levá-la consigo a seu palácio; esta, encabulada, com os corações em suas bochechas passando de cor-de-rosa a escarlates, respondeu-lhe:

“Como poderia negar um pedido tão singelo ao senhor de todo este país?”

Ela e Filipe, então, passaram um agradabilíssimo dia juntos, e só vieram a despedir-se quando o Sol começava a pôr-se no horizonte. A partir daí passou ele a fazer visitas cada vez mais frequentes à casa de Colette, e ela pôde ver que ambos tinham várias disposições e gostos em comum. Quando o percebeu, já era tarde demais: Colette se apaixonara por Filipe!

Por sua vez, ela gostava muito de frequentar os bailes anuais que Filipe dava em seu palácio; todos eram sempre bem-vindos a participar, e ao final de cada baile o rei também organizava espetáculos e desfiles que, quase sempre, duravam a noite toda.

Tendo presenciado um deles em primeira mão, posso garantir ao meu leitor e à minha leitora que nunca vi nada tão bonito em toda a minha vida! Todos aqueles brinquedos vestidos em seus melhores trajes dançando no enorme saguão iluminado ao som da música, palhaços de pano fazendo acrobacias, roliços joões-bobos saltitando, diáfanas bailarinas de papel rodopiando nas pontas dos pezinhos, a guarda real de Filipe composta por lustrosos soldados de chumbo e quebra-nozes em suas impecáveis casacas vermelhas e envergando espadins e baionetas… Nunca mais tive a chance de participar de algo tão divertido desde então!

Retornemos, porém, aos percalços de nossa heroína. Colette desejava muito ser capaz de revelar seu segredo a Filipe, mas a timidez sempre entrava-lhe no caminho; afinal, como uma reles boneca da plebe poderia vir a imiscuir-se entre a realeza? Era-lhe algo inconcebível! Igualmente, Filipe, que era tão loquaz e articulado, em se tratando de amor as palavras se atropelavam em sua língua, e nunca conseguia exprimir-se do modo que queria. Assim, permaneciam neste impasse toda vez que um almejava revelar seus sentimentos ao outro.

Mas eis que, depois de muito tempo, Colette finalmente criara coragem para declarar-se ao rei, e aproveitando o lindo dia que fazia tomou o caminho do palácio de Filipe, para onde tantas vezes ele a convidara (e ao qual qualquer brinquedo podia visitar irrestritamente conquanto que o rei não estivesse demasiadamente ocupado com seus assuntos de Estado), mas a vergonha impedia-a de aceitar o convite. Seu coração estava em festa, e a cabeça repleta de pensamentos alegres; parecia que ia arrebentar de emoção!

Quando já estava na metade do caminho, foi surpreendida por um barulho de uma mola saltando para cima e para baixo constantemente em seu encalço: era o Bobo da Caixa, que seguia em seus solitários passeios por aquela direção, coincidentemente.

“Bom dia!”, Colette cumprimentou-o alegremente.

“Bom dia, Colette”, respondeu o Bobo.

Em verdade, muito poucos brinquedos gostavam da companhia do Bobo; ainda que não fosse mal-intencionado, por alguma razão era propendente a encarar a existência sob uma ótica não muito otimista. Portanto, ninguém conseguia manter um diálogo com ele por muito tempo sem sair entristecido.

“Aonde vai assim tão apressada?”, continuou ele.

“Oh, Bobo!”, Colette exclamou, no ápice de sua alegria. “Se importa em ser o primeiro a saber de um segredo?” E, abaixando-se para sussurrar-lhe no ouvido, disse: “Estou indo pedir a mão do rei em namoro!”

“É mesmo?”, interrogou o Bobo, não muito impressionado. “E por que acha que ele aceitaria?”

“Ora”, começou a explicar-se ela, “ele vem bastante à minha casa; vejo que temos muitas coisas em comum, e me trata sempre com muita educação. Pode até ser que goste de mim também…”

“Só porque ele a trata bem não significa que retribuiria seus sentimentos românticos. Filipe dirige cortesia igual a todos… Meu palpite é que ele aparenta dar-lhe tratamento especial por pena.”

“Pena?”

“Devido ao seu olho.”

“E por que sentiria pena disso?”, perguntou ela, espantada, levando a mão ao seu olho direito perpetuamente cerrado. “Sei que meu olho é algo um tanto quanto… peculiar… mas nunca me trouxe nenhum inconveniente.”

“Mas não há como negar”, prosseguiu o Bobo com seu raciocínio, “que isso a faz diferente – afinal, o normal é ter dois olhos que se abram e enxerguem em sua totalidade. Entretanto, minha cara Colette, você tem apenas um… e isso faz com se torne uma exceção. Assim sendo, o rei talvez a trate com atenção redobrada por mera questão de etiqueta, a fim de não ofendê-la… Compreende?”

“Acho que sim…”, respondeu Colette, sua alegria de antes transformando-se no mais puro abatimento.

“Digo-lhe isto para poupar-lhe as decepções. Se contar de seus sentimentos ao rei, certamente ele dirá que não a vê do mesmo modo, e até rirá interiormente de você por sua presunção… Quem avisa, amigo é – gosto de você independente de seu olho… ou da ausência dele, por assim dizer. Portanto, seria melhor não nutrir tais ideias que, no fim, só acabariam por levar à sua infelicidade.”

“Pode ser que esteja certo, Bobo”, suspirou Colette, tristemente. “Talvez eu tenha apenas imaginado tudo isso… Como poderia de fato Filipe gostar de mim – uma mera boneca da ralé que, além de tudo, é caolha?” Grossas lágrimas começaram a escorrer de seus olhos.

O Bobo deu-lhe um abraço gentil, e disse:

“O segredo para viver bem é não almejar mais do que se tem… Se o rei a tem em estima, muito bem – mas está se iludindo se acha que pode ter mais do que isto. Continue a viver como sempre viveu… e esteja ciente de suas limitações. Eu próprio não espero nada de minha existência, e sigo assim muito contente. Bom… agora necessito ir-me; pode acompanhar-me em meu passeio, se quiser!”

“Agradeço o convite… mas não, obrigada.”

“De qualquer forma, não esperava que fosse aceitar”, respondeu o Bobo, e após despedir-se uma última vez continuou seu caminho a saltar com sua mola barulhenta.

Colette, então, ficou a sós com seus pensamentos, refletindo sobre o que o Bobo lhe dissera. Pela primeira vez na vida percebeu que o fato de ter um olho só lhe traria muitos contratempos, e pensou que talvez o rei Filipe a via meramente como uma excentricidade em seus domínios – arrependeu-se de ter revelado o segredo de sua paixão ao Bobo da Caixa, mas no âmago de seu ser supôs que seus argumentos eram verdadeiros. Dando uma última olhada ao palácio real, que começava a desenhar-se no horizonte, Colette voltou para casa e jurou a si mesma que nunca mais tocaria naquele assunto.

A partir daí, seu ânimo, que sempre fora tão jovial, começara a azedar-se; achando que o suposto fingimento de Filipe se estendia a todos os seus outros amigos, Colette passou a não receber mais ninguém em sua casa, tornando-se ensimesmada e introspectiva. Não recebia nem mesmo as visitas de Filipe! Com o tempo, vendo que suas tentativas de fazer com que se abrisse eram vãs, seus amigos a abandonaram em definitivo, e o rei acabou conhecendo outra boneca e se casando com ela. Colette, então, nunca mais saiu de casa, nem mesmo para cuidar de suas adoradas flores, que acabaram murchando uma a uma, vivendo seus dias a lamentar-se pelo seu olho defeituoso – e o Bobo, ao aprender que seu pessimismo fizera tudo aquilo, resolveu mudar de vida; até onde fiquei sabendo, partiu para um reino diferente, buscando um modo de redimir-se por seus erros do passado. Se conseguiu encontrar algum ninguém soube dizer-me, porém.

Enfim, anos e mais anos se passaram – e é importante que saibam que, no país dos brinquedos, eles envelhecem e morrem tal como nós, humanos. Conquanto sua pele não se enrugue, como a nossa, o mecanismo em seu interior que os faz funcionar vai desacelerando até parar de vez, desligando-os para que durmam eternamente. Colette já andava mais devagar, e falava de forma mais arrastada; muitos de seus antigos amigos já haviam falecido, e de acordo com boatos que ouvira de brinquedos que passavam a conversar rente à sua janela, a esposa de Filipe também. A única coisa que em nada mudara em todos aqueles anos foi o fato de Colette ter permanecido trancafiada em sua casa, sempre maldizendo àquele que a criara por ter-lhe feito diferente dos demais – porém, um certo dia a guarda real arrombou a porta de sua casa e, irrompendo pela sala, anunciou-lhe que Filipe requisitava sua presença no palácio, pois estava para morrer e necessitava dizer-lhe certas coisas. Pensando que não podia negar ao menos a graça de um último encontro com o rei, Colette aceitou o pedido; amparada pelos guardas, foi colocada numa magnífica carruagem guiada por um elegante cavalo branco, e assim partiram rapidamente rumo ao palácio.

Lá chegando, Colette espantou-se ao finalmente poder ver o palácio real por dentro; era imenso, tão grande por dentro quanto por fora, e decorado com lindas pinturas, tapeçarias e estátuas. Após andarem por incontáveis corredores e saguões, os guardas e Colette chegaram aos aposentos do rei; estava ele deitado em sua cama, pois há muito já não conseguia andar. Com um gesto fraco, dispensou os guardas, ficando a sós com Colette.

“Aproxime-se”, disse ele, sua voz quase um chiado. A boneca obedeceu-o, sentando-se ao seu lado na cama.

“Como pode bem ver, minha querida, estou velho”, continuou o rei, “e dentro em breve sei que haverei de morrer. Portanto, gostaria de compartilhar um segredo: bastante tarde, eu sei, mas não gostaria de partir sem revelá-lo… Há muito tempo eu a amei, mas talvez por ter demorado tanto a contar-lhe deve ter se cansado de mim… Como castigo por minha covardia passei anos a sofrer num casamento sem amor só para poder esquecê-la… Espero que possa perdoar-me, e conceder-me o amor pelo qual tanto almejei ao menos agora.”

“Não engane a si mesmo, Vossa Majestade!”, respondeu-lhe Colette, à beira das lágrimas. “Não engane a si mesmo e nem a mim! Eu também achei que o amava um dia, mas aquilo que chama de amor não passa de dó… Sei que sou a aberração de todo o seu reino, mas não preciso que abuse assim de meu amor-próprio, que já não é muito.”

“Por que diz isso?”, perguntou-lhe o rei. “Como pode alguém tão bela como você ser a aberração de meu reino?”

“Ora!”, exclamou Colette, exasperada. “Não vê que todos os outros habitantes deste lugar, incluindo você, têm dois olhos enquanto eu tenho só um? Não imagina como ririam de você se tomasse por esposa uma boneca simples e caolha como eu…?”

Filipe interrompeu Colette valendo-se das poucas forças que tinha para dar-lhe um amoroso abraço.

“Eu nunca me importei com seu olho!”, disse ele. “Comparado a seus modos doces e à sua beleza, tanto a exterior quanto a interior, o que é tal defeito tão insignificante? O que importa é como você enxerga a vida, ainda que porte mais de mil defeitos… Se pensar no bem, atrairá o bem, e tudo lhe parecerá bom… mas se pensar no mal, tudo acabará por parecer-lhe mau. Em verdade, nosso erro foi pensar nas coisas que NÃO podíamos fazer, em vez de nas que poderíamos ter feito… Eu com minha timidez, e você com seu olho, deixamos de fazer muitas coisas agradáveis…”

“Acha isso mesmo?”, perguntou Colette, a voz embargada.

“Provarei do melhor modo”, disse Filipe, e beijou-a nos lábios. Finalmente ambos puderam sentir como o amor era bom; um não queria soltar o outro. As forças do rei fraquejaram mais uma vez, e ele tombou na cama, semimorto.

“Aceita ser minha rainha?”, pediu ele, sua voz desaparecendo.

“Aceito”, foi a resposta de Colette.

“Ótimo. Finalmente posso partir feliz, então.” O rei deu seu último suspiro, e não mais se moveu. Colette continuou lá sentada, encarando-o – como era bonito, ainda na morte! Ela acariciava-lhe o rosto e o beijava, cada vez mais lentamente… Seu próprio mecanismo estava para parar; ela começou a sentir que as forças a abandonavam também, mas não fazia mal. A única coisa que importava era que estaria com seu amado dentro em breve. (Será que existe um Além dos brinquedos…? Ninguém pôde responder-me satisfatoriamente… Mas quero muito crer que exista!)

Colette sentiu que chegara a hora; apertou a mão de Filipe na sua, e sentindo-se cada vez mais fraca, fechou seu olhinho operante – desta vez para nunca mais abri-lo novamente. E congelados naquela pose tão tocante, qualquer um que os visse poderia dizer que, onde quer que estivessem, finalmente poderiam viver felizes para sempre após tamanhos infortúnios.

(22 de dezembro de 2014)

Galaktion Eshmakishvili
Enviado por Galaktion Eshmakishvili em 22/12/2014
Reeditado em 09/05/2024
Código do texto: T5077556
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