Dedico este conto a Carlos Lopes, do blog Gândavos

NEVE NO SERTÃO
 
Toquinho era o apelido de José Jorge da Silva, um menininho de oito anos, mais novo entre cinco irmãos dos doze que Mariazinha, sua mãe, tivera e que sobreviveram. Ele morava com a família em alguma cidadezinha lá no sertão baiano, cidadezinha que nem está no mapa, no meio do nada, cercada de cactos e com paisagem desoladora. O apelido de José Jorge vinha de sua aparência física: pequeno, franzino, desses que dá a impressão que um vento mais forte conseguiria levar embora. E todo mundo comentava, quando havia alguma morte de criança (coisa que naquela época não era nada raro de acontecer) que Toquinho seria o próximo. Ninguém acreditava que o menino vingaria... o pai, ‘seu’ Juvêncio, tinha uma hortinha que mal garantia o sustento da família, onde plantava mandioca, batata e feijão. O resto vinha do governo, de vez em quando. Trabalhava quando dava. Quando tinha caixa para carregar na venda do ‘seu’ Manoel, capim para cortar ou laranjas para colher nas plantações dos mais abastados. Iam levando. Ou sendo levados.
‘seu’ Juvêncio e Mariazinha já tinham perdido sete crianças, e lá pela quarta, já nem choravam tanto assim. A gente se acostuma a tudo nessa vida. Tudo que Deus manda, é bem-vindo e sábio. Assim, continuavam a colaborar com a fábrica de anjinhos do Divino.

Toquinho, de tanto escutar por trás das portas, acabou descobrindo que seu destino era ser levado dentro de uma daquelas caixas que ‘seu’ Manoel da venda fabricava às pressas com sobras de caixote, e nem cobrava das famílias. Desde então, ele achou que se todo mundo falava, deveria ser verdade. Passou a não brincar mais, e a comer menos ainda – para preocupação dos pais e alegria dos irmãos, que dividiam a comida de Toquinho entre eles sem culpas, já que ele também sabiam que a morte do menino era apenas uma questão de tempo. Mariazinha fazia de um tudo para que o menino comesse; preparava mingau de fubá com leite, mandioca cozida passada na margarina (quando tinha), feijão com charque (sempre ganhava um pedacinho quando alguém matava um porco).

Ele às vezes comia, só para ver a mãe dar um sorriso. Mas um dia, ele finalmente caiu doente. Ficava o dia todo na esteira sem levantar muito e sem ir à escola. A professorinha foi visitar, e ficou doída de ver o seu aluno mais novinho naquele estado. Deu à família um cartão de Natal que recebera da família que morava na cidade grande, onde tinha o desenho de uma casinha iluminada no meio da neve, que era coberta de brilhinhos de purpurina. Quando alguém abria o cartão, tocava uma música natalina. Ela apagou  a mensagem com corretor de texto, e escreveu por cima: “Nunca percam as esperanças. Um Feliz Natal!” 

Quando Toquinho viu o cartão, tratou de perguntar: “Professorinha, o que é essa coisa branca e brilhante, linda demais?” E ela respondeu: “É a neve, Toquinho. Ela cai do céu nos lugares muito frios na época do Natal. Fica tudo assim, coberto de branco... é lindo de se ver!” Ele pensou um pouco, passando o dedinho magro sobre a imagem, e olhando a purpurina que ficou na pontinha do indicador: “E você já viu de perto? A neve, já viu?” A professorinha lembrou de sua única viagem ao estrangeiro, quando se casou, há muitos anos: “Vi, sim.” E o menino indagou: “E como é?” “Ah, Toquinho... é linda, macia e fria. Muito branquinha também. Quando o sol bate, ela brilha, brilha... As pessoas gostam de fazer bolas com ela e brincar de jogar umas nas outras, de brincadeira. As crianças fazem bonecos com nariz de cenoura, e colocam chapéus neles. É mágico...”
O menino suspirou fundo. Olhou para a professora bem dentro dos olhos, um olhar daqueles que a gente jamais vai esquecer enquanto viver, e declarou: “Eu queria muito ver a neve!”

A professorinha foi embora com lágrimas nos olhos. A frase do menino quase moribundo ressoando em seus ouvidos, espetando o seu coração: “Eu queria muito ver a neve!”

No dia seguinte, enquanto fazia compras na venda do ‘seu’ Manoel para levar para a família de Toquinho, a professorinha ainda não tinha conseguido esquecer as palavras do menino. Mas como fazer nevar no sertão? Era impossível! De repente, um caminhão parou em frente à venda, e uns homens começaram a descarregar umas caixas grandes. Eram árvores artificiais e enfeites de natal para ‘seu’ Manoel colocar à venda. Encomenda dos grandes fazendeiros da região, pois os clientes mais pobres jamais poderiam pagar por coisas como aquelas. A professorinha ficou observando enquanto ‘seu’ Manoel abria as caixas e ia separando as encomendas, segurando uma lista, caneta atrás da orelha. E conforme ele ia puxando as mercadorias de dentro das caixas, enfileirando os enfeites para separar em cima do balcão, iam caindo no chão bolinhas minúsculas de isopor, que o vento espalhava (aquilo se deu antes do advento do plástico bolha). 

A professorinha começou a ter uma ideia genial, e pegando algumas das bolinhas de isopor, perguntou ao ‘seu’ Manoel: “Como é que eu faço para conseguir mais destas, ‘seu’ Manoel?” O homem coçou a cabeça, sem entender: “O que? “ Ela repetiu: “Essas bolinhas de isopor! Como eu faço para conseguir mais, uma quantidade muito grande delas?” Seu Manoel riu: “E pra que a senhora quer isso, Dona Professorinha?” A professorinha contou a ele a história do Toquinho, menininho doente que queria ver neve no sertão. Quando ela terminou a história, ‘seu’ Manoel tinha os olhos rasos d’água. Disse: “Dona Professorinha, eu tenho caixas e mais caixas disso lá atrás no depósito. Engraçado... eu sempre achei que um dia elas iam servir pra alguma coisa!”  A professorinha ficou feliz da vida!

Dizendo aquilo, ‘seu’ Manoel decidiu que doaria uma árvore de natal que viera faltando alguns galhos, e uns enfeites que tinham quebrado na viagem. Os dois confabularam durante algum tempo, fazendo planos. Puseram-se a montar a árvore com os enfeites. Todo mundo que passava por ali perguntava o que eles estavam fazendo, e eles repetiam a história. As crianças tiveram a ideia de montarem um presépio vivo em frente à casa de Toquinho. Algumas mães confeccionariam as roupas com sacos de estopa. A festa de Natal foi sendo montada.

Alguém se lembrou que tinha em casa um velho gramofone e um disco de canções natalinas. ‘Seu” Alonso da farmácia emprestaria um ventilador grande para ajudar a fazer a neve voar.

Tudo pronto, na véspera de Natal todo mundo foi para a casa de Toquinho sem fazer barulho, pois queriam que o menino tivesse uma surpresa. Montaram tudo: o presépio, a árvore de natal com os enfeites (nem dava para ver que estavam quebrados), uma mesa com a ceia, doada pelos mais abastados da região, o gramofone. Alguns meninos mais levinhos subiram no telhado da casinha com os sacos de bolinhas de isopor, posicionando-se bem por cima da janela onde Toquinho estava. Quando a professorinha deu o sinal, o gramofone começou a tocar “Noite Feliz”, e as pessoas, que já tinham decorado a letra, cantavam junto. A família despertou dentro da casa, e assim que abriram a janela, os meninos começaram a derramar as bolinhas de isopor bem devagar, que era para elas durarem mis tempo. Foi mágico! Mariazinha, pegando o filho já bem fraquinho no colo, levou-o para a janela, dizendo entre lágrimas: “Vem ver! Tá nevando!”
Toquinho nem acreditava no que estava vendo: quase igual ao cartão de Natal! 

Uma força surgiu de dentro dele (dizem que antes de morrer, algumas pessoas há muito tempo doentes despertam se sentindo muito bem, conversam, riem e depois, morrem. É como se fosse uma despedida). Aquela foi  a festa de Natal mais linda que já se ouviu falar. 



FIM



Ah, já ia esquecendo! E quanto ao Toquinho?
Bem, ele melhorou. Morreu não. Cresceu, foi para a cidade grande estudar e virou doutor. Acreditou que tudo era possível depois que nevou no sertão, e assim foi.

Dizem que ainda tem bolinhas de isopor agarradas aos espinhos de alguns cactos, só para lembrar a quem ficou por lá, vazios de esperança, que é possível nevar no sertão. 


 
Ana Bailune
Enviado por Ana Bailune em 05/12/2014
Reeditado em 05/12/2014
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