MENSAGEM NA NEVE
Acordou no meio da noite e olhou em volta, piscando na penumbra. Os estalos da lenha na lareira ajudaram-na a despertar para onde estava.
Acordou no meio da noite e olhou em volta, piscando na penumbra. Os estalos da lenha na lareira ajudaram-na a despertar para onde estava.
Saiu da cama, e olhando pela janela, viu o luar brilhando sobre as partículas de gelo que formavam um lindo tapete branco sobre a paisagem. Gabriela estava em um hotel, em outro país, bem longe de casa. Decidira que não mais participaria das celebrações natalinas, e para evitar ter de ouvir os insistentes convites da família e dos amigos, e os sermões sobre o quanto era importante estar junto de alguém naquela data, ela decidiu ir para longe naquele ano. Um destino desconhecido a todos. Viajou no dia 22 de dezembro, sem avisar a ninguém, deixando apenas um bilhete sobre a mesa da cozinha, onde sabia, seu marido Fernando o acharia quando voltasse de sua viagem de negócios. Os bilhetes haviam se tornado seu principal meio de comunicação depois que tudo acontecera. Ela não conseguia olhar nos olhos do marido, que após algumas tentativas de reaproximação, aceitara seu silêncio.
Alguns dias antes, Nena, sua cunhada, havia telefonado e convidado para passar o natal na casa dela, onde toda a família estaria reunida:
-Gabi, você precisa superar! Lá se vão dois anos...
Ela permaneceu calada. Quem era ela para dizer-lhe o que precisava ou não fazer em relação à perda de seu filho único? Nena estava feliz, com seus três lindos filhos, fortes e saudáveis. Não precisara passar por tudo que ela passara. Não precisava acordar todas as manhãs em uma casa vazia de sentidos e daquela presença amorosa.
Breno certa vez dissera-lhe que sonhava com ele quase todas as noites. Por que não ela? Por que ele não vinha para ela em seus sonhos, como aparecia nos sonhos do pai? Aquilo virou um ressentimento, como se Breno fosse o culpado por ser o único a sonhar com Gabriel. Até que um dia, na mesa do café, assim que ele começou a contar sobre um de seus sonhos, ela o interrompeu:
-Por favor, eu não quero ouvir.
Ele pareceu ferido.
-Mas... por que, Gabriela? Eu pensei que você gostava de ouvir... e eles são tão reais, e as coisas que ele me fala são...
-Não passam de sonhos, Breno. São uma saída que sua mente criou de lidar com a dor.
Após tomar um gole de café, e agindo como se estivesse pisando em campo minado, Breno respondeu:
-Bem, mesmo que seja... acho que você deveria ajudar a si mesma e criar a sua própria maneira de tentar levar a vida a diante, Gabi. Talvez se você concordasse em ir ao centro espírita comigo...
-Já disse que não acredito nessas coisas, Breno. Não faz sentido para mim. Que Deus levaria embora uma criança de doze anos daquela forma, entre tantas dores? Deus não existe.
Os músculos da face de Breno retesaram-se.
-Você anda muito amarga. Não é bom para você. Não é bom para nós. E não é bom para Gabriel. Ele sente suas vibrações.
Ela levantou-se da mesa, e inclinando-se de pé na direção dele, o peso do corpo apoiado nos punhos sobre a mesa, olhou-o friamente:
-Gabriel está morto. Não sente mais nada. Não vê mais nada. Não existe mais. Pena que eu não fui junto com ele. Nenhum pai ou mãe deveria sobreviver à morte de seu filho. Mas eu sei que um dia eu vou tomar coragem, e...
Ele a interrompeu, gritando:
-Não diga uma coisa dessas! Chega de sentir tanta autopiedade, Gabi! Você nunca foi assim.
-Você nunca me conheceu de verdade. Não dizem que os momentos difíceis trazem à tona a nossa verdadeira personalidade?
Dizendo aquilo, ela saiu da cozinha, deixando-o transtornado. Breno não sabia mais como lidar com ela. No centro espírita, diziam-lhe que tivesse paciência, e não discutisse. Com o tempo, ela seria capaz de superar. O importante era que eles ficassem juntos e se apoiassem mutuamente, mas ele não recebia nada dela, nem uma palavra de carinho, e quando tentava aproximar-se, Gabriela se fechava em uma concha de frieza, e se ele insistisse, de agressividade.
À janela do hotel, Gabriela ainda olhava a noite branca e fria. A beleza da paisagem, ao invés de animá-la, deixava-a ainda mais triste. No fundo, estava triste e arrependida por ter viajado daquela maneira, pois sabia que todos ficariam tristes e preocupados. Mas não conseguia mais lidar com os sorrisos forçados e palavras forçosamente "animadoras" das pessoas. Ou com quando elas fingiam que nada havia acontecido, tentando conversar sobre amenidades. Detestava quando ela chegava e percebia que todos paravam de falar de repente, se entreolhando e pigarreando.
Tinha consciência de que sua aparência, agora quase dez quilos mais magra, não era das melhores. Os cabelos, antes sempre bem tratados e brilhantes, agora não passavam de uma mancha escura presa em um eterno rabo-de-cavalo baixo. Desde que tudo acontecera, não comprava roupas ou fazia as unhas. Mantinha-nas curtas e sem esmalte. E também não fazia amor com o marido. O toque dele, ou de qualquer outra pessoa, a repugnava. Não queria realmente estar daquele jeito, mas não podia forçar a si mesma... era como se sentia.
Estava perdendo Breno, mas nem isso a fazia despertar.
Estava envolvida por sua dor, quando de repente, pareceu ver algo movendo-se na neve, ao longe. Ficou prestando atenção. Apertou os olhos para ver melhor, pois a luz do luar fora encoberta por uma nuvem passageira. Quando conseguiu vislumbrar do que se tratava, tapou a boca para reprimir um grito: era um menino! tentou abrir as janelas, mas estavam lacradas. Ela o viu correr em direção ao lago congelado. Não podia perder tempo: do jeito que estava, de camisola, agarrou o robe e saiu porta afora, para o corredor silencioso e vazio.
Passou pela recepção do hotel, e o relógio de parede marcava 3:45 da manhã. Não havia ninguém por lá. Talvez o recepcionista de plantão estivesse lanchando ou tirando uma soneca. Achou que perderia tempo se procurasse por alguém para pedir ajuda, e então saiu pela porta giratória, deixando-se envolver pelo ar frio da noite, em direção ao local onde tinha visto o menino. Correu sobre a neve fofa com dificuldades. Chegou a uma elevação, e o que ela viu deixou-a quase sem fôlego: o menino estava de pé, bem no meio do lago congelado! Parecia muito assustado, e chorava. Naquele instante, Gabriela escutou um ruído que fez seus cabelos se arrepiarem: o gelo estava rachando! Ela gritou para ele:
-Não se mova, fique bem quieto!
Ele a viu, e obedeceu-a. Ela percebeu que o menino não deveria ter mais que cinco anos de idade.
Gabriela ficou tentando decidir o que fazer, pois percebeu que suas decisões seriam vitais para salvar o menino. Gritou:
-Fique quietinho! Eu vou voltar e buscar ajuda!
Ele choramingou:
-Não! Não quero ficar aqui sozinho. Eu vou cair! O gelo...
-Eu sei, meu bem, eu sei... fique calmo...
Ela olhou em volta, e encontrou um longo galho de cedro caído no chão. Rapidamente, mediu o tamanho do galho e calculou que ele seria suficiente para que ela o estendesse sobre o lago para que o menino o agarrasse, caso ela avançasse alguns metros para dentro do lago, e ela poderia então puxá-lo bem devagar. Se ele caísse, ela teria que mergulhar para tirá-lo, mas pelo menos ele se sentiria mais seguro segurando o galho.
Ela tirou algumas folhas da ponta para que ele pudesse sentir mais firmeza ao pegar o galho, e enquanto o fazia, falou com ele:
-Qual o seu nome, meu bem?
Uma voz chorosa e tremida respondeu:
-Roberto! Eu estou com frio...
-Eu sei, eu sei... olhe, eu vou tirar você daí, e logo você estará na cama quentinha, mas tem que fazer tudo o que eu mandar, OK?
Ele acenou, concordando. Tinha os braços ao longo do corpo, e a respiração ofegante fazia surgirem nuvens de vapor de sua boca. Gabriela chegou à beira do lago, avançando bem devagar, e deitou o galho de árvore no gelo. Foi empurrando o galho, até que este chegou ao menino;
-Está vendo este galho? Quero que você se abaixe bem devagar e o segure bem firme. Eu vou puxar você. Se o gelo quebrar e você cair na água, não importa o que aconteça, mantenha-se sempre segurando o galho. Ok?
O menino fez exatamente como ela disse, e assustados, ambos escutaram nova rachadura no gelo. Gabriela olhou para baixo, e viu que havia uma fenda de aproximadamente meio metro entre eles. O menino teria que pular. Ela começou a puxar o galho. Ao chegar na rachadura, ela disse:
-Agora preste atenção: você vai ter que pular para o outro pedaço de gelo logo em frente.
Ele recomeçou a chorar.
-Não fique nervoso, Roberto. Quantos anos você tem?
-Seis...
-Como você veio parar aqui sozinho?
-Eu esperei a mamãe e o papai dormirem, abri a porta com a chave e vim brincar na neve... eu nunca tinha visto a neve...
-Está tudo bem, isso logo vai acabar. Quando eu disser "três" quero que você pule, mas não largue o galho, ouviu? Segure bem firme nele! Um... dois... três!
O que aconteceu em seguida foi muito rápido: Roberto pulou na beirada do pedaço de gelo, que virou, e ele imediatamente afundou na água gelada e negra. Gabriela gritou por socorro. Nem percebeu que várias luzes no hotel se acenderam. Alguém gritou. logo, pessoas corriam sobre a neve em direção a eles. Ela puxou o galho, e apavorada, viu-o surgir, mas sem o menino agarrado a ele. Sem pensar duas vezes, mergulhou na água. Não conseguia ver absolutamente nada. Esticou os braços e nadou, até que conseguiu agarrar o braço do menino, e nadando para cima, trouxe-o à tona. Tremendo muito, ela o estendeu às pessoas que estavam à beira do lago, e alguém ajudou-a a sair da água. Viu quando alguém o embrulhou em uma manta e o levou para dentro, desacordado. Depois, ela desmaiou.
Ao acordar, Gabriela olhou em volta e notou que estava em um hospital, e era dia claro. Uma enfermeira fazia anotações, de pé ao lado da cama, e ao perceber que acordara, sorriu-lhe:
-Você está bem?
Ela respirou fundo, e mexeu braços e pernas antes de responder, sem sentir nenhuma dor. Estava bem. Acenou para a enfermeira, concordando.
-E Roberto?
-Bem, ele teve uma parada respiratória, mas conseguimos trazê-lo de volta. Foi uma noite difícil, mas ele agora está bem. Ele vai ficar bom. Você gostaria de falar com os pais dele? Eles podem entrar? Gostariam de conhecê-la; querem agradecer...
Ela sentou-se na cama, e ajeitou os cabelos com a as mãos.
-Sim, pode mandá-los entrar.
Alguns minutos depois, um jovem casal em lágrimas entrou no quarto, e a moça, num gesto espontâneo, abraçou Gabriele, murmurando muitos agradecimentos. Logo, o pai fez o mesmo. Após os agradecimentos, o rapaz pigarreou, e a moça olhou-o. Ele disse:
-Hoje é antevéspera de natal, e gostaríamos muito de dar-lhe um presente. Não é nada diante de tudo o que fez por nosso filho e por nós, mas gostaríamos que se lembrasse de nós e do quanto somos gratos.
Dizendo aquilo, ele estendeu-lhe um livro. Gabriele abriu o embrulho, e deparou com os dizeres na capa: tratava-se de um livro sobre crianças que morreram prematuramente, do autor Brian Weiss. Ela tentou não mostrar sua descrença, e sorriu, agradecendo. O casal ia saindo, quando Gariela perguntou:
-E Roberto? Posso vê-lo?
-É claro! Ele acordou, tomou café e está dormindo agora, mas pode vir quando desejar.
O médico entrou naquele momento, e ao examiná-la, disse que podia voltar ao hotel. Gabriela vestiu-se, e antes de ir, bateu à porta do quarto de Roberto. Sua mãe abriu-a e mandou que entrasse. Encontrou o menino sentado na cama, brincando com o pai e alguns carrinhos.
Gabriela sentiu-se muito feliz, mas a dor pela perda do próprio filho doeu agudamente naquele instante. Lembrou-se de Gabriel, também sentado em uma cama de hospital brincando com o pai, quando ainda havia esperanças para o seu caso. Mal sabiam que em apenas alguns dias, aquele cenário mudaria e se transformaria em um terrível calvário... ela enxugou uma lágrima, e aproximou-se da cama. O pai do menino sorriu ao vê-la, e disse a Roberto:
-Filho, esta é a moça que o salvou!
Roberto estendeu os braços para ela, sorrindo:
-Eu sei! Você é muito boazinha. Obrigado.
-Como você está, Roberto?
-Bem. Eu vou para casa antes do natal, ou melhor, para o hotel.
Após conversar com o menino por mais algum tempo, Gabriela despediu-se. Quando já estava à porta, Ouviu Roberto chamá-la:
-Gabriela! Lembrei de uma coisa importante!
Ela voltou até a cama, perguntando:
-É mesmo? E o que seria?...
Brincando com seu carrinho sobre as cobertas, Roberto disse:
-Gabriel me pediu para dizer que ele está bem. Não sente mais dor, e mora em um lugar muito bonito.
Gabriela emudeceu, engolindo em seco. Sentiu que seu coração ia sair pela boca. Os três adultos se entreolharam, e Roberto, inocentemente, prosseguiu:
-Ele disse que esta muito bem, mas que fica triste quando vê você triste ou chorando. O vovô Pedro está com ele. E...
Ele pareceu tentar lembrar-se de algo, e finalmente, acrescentou:
-Ah! Já sei: ele quer que você volte para casa e passe o natal com a família toda. Ele me pediu para falar que... que um dia vocês vão se rever, e que ele ainda não conseguiu ir até o seu sonho porque a sua tristeza é como se fosse uma porta que o segura do lado de fora. E também disse que a ama muito, e o papai também, e que você precisa ser feliz de novo. E disse que vai mandar um presente. Um presente de Natal!
Ao ouvir aquilo, Gabriela não teve mais dúvidas: abraçou a todos, e despediu-se, agradecendo efusivamente. Os pais de Roberto imediatamente compreenderam do que o filho estava falando, e quando Gabriele fechou a porta do quarto, eles se deram as mãos, olhando para o menino que brincava sobre a cama, e sentiram-se abençoados.
Gabriele pegou o primeiro avião de volta. Não havia mais lugares no avião, mas por sorte, alguém desistiu da viagem na última hora, e a companhia aérea colocou-a no voo.
Após quase oito horas de viagem, ela desembarcou no aeroporto e ansiosa tomou um táxi para casa. Chegou de manhã bem cedo, na véspera de natal. Colocou a mala no chão. Girou a chave na fechadura. Ao abrir a porta, deparou com Breno dormindo no sofá da sala. Segurava uma fotografia da família. Ao lado dele, havia uma garrafa de vinho vazia. Gabriela percebeu o quanto ele estava sofrendo por causa dela, e beijou-lhe o rosto. Ele abriu os olhos e viu-a sorrindo. Piscou várias vezes:
-É um sonho?... Você está sorrindo?
Ela o beijou novamente, desta vez, nos lábios.
- Tenho uma história linda para contar a você. Mas eu o farei diante de todos, na noite de natal.
Breno sentou-se no sofá, abraçando a esposa.
Ao fazerem amor, nem sequer desconfiavam que o presente prometido por Gabriel estaria com eles no próximo natal: Gabriela ficaria grávida de um menino!