UM DE MEUS CONTOS DE NATAL, QUE ESTAREI PUBLICANDO ATÉ O DIA 25 DE DEZEMBRO EM MEU BLOG "HISTÓRIAS".
http://anabailunecontos.blogspot.com
O Natal da Cafetina
Era um bordel tradicional, se é que se pode chamar de tradicional um lugar assim. Existia naquela cidadezinha do interior há muitos e muitos anos, e primava pela discrição e limpeza de suas ‘meninas’, que eram frequentemente examinadas por um médico que vinha da cidade vizinha ( o médico local recusava-se a tratá-las; não por cupidez, pois era um dos mais assíduos frequentadores da Casa de Gerda, mas porque sua esposa o proibira sob ameaça de divórcio). Muitas vezes as mulheres da Sociedade da Família tentaram fechá-lo, mas sempre perdiam as causas. O que elas nem sequer desconfiavam, é que até mesmo o juiz que julgava os casos na cidade era não apenas um frequentador esporádico, mas um colaborador – doava um dinheirinho para a manutenção e para que, quando ele fosse recebido, a casa abrisse apenas para ele. Ningupém poderia saber quem era o frequentador secreto! Assim, a Casa de Gerda ia de vento em popa, e já passara dos vinte anos de existência.
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O Natal da Cafetina
Era um bordel tradicional, se é que se pode chamar de tradicional um lugar assim. Existia naquela cidadezinha do interior há muitos e muitos anos, e primava pela discrição e limpeza de suas ‘meninas’, que eram frequentemente examinadas por um médico que vinha da cidade vizinha ( o médico local recusava-se a tratá-las; não por cupidez, pois era um dos mais assíduos frequentadores da Casa de Gerda, mas porque sua esposa o proibira sob ameaça de divórcio). Muitas vezes as mulheres da Sociedade da Família tentaram fechá-lo, mas sempre perdiam as causas. O que elas nem sequer desconfiavam, é que até mesmo o juiz que julgava os casos na cidade era não apenas um frequentador esporádico, mas um colaborador – doava um dinheirinho para a manutenção e para que, quando ele fosse recebido, a casa abrisse apenas para ele. Ningupém poderia saber quem era o frequentador secreto! Assim, a Casa de Gerda ia de vento em popa, e já passara dos vinte anos de existência.
Mme. Gerda chegara por ali sem eira nem beira, fugindo das mãos de um padrasto que a violentava com o consentimento mudo da mãe, uma filha de imigrantes alemães, mulher forte, sisuda, cumpridora dos deveres morais, etc e tal.
Com fome, Gerda fora acolhida por ‘Seu’ Amâncio, um velho senhor viúvo que para os padrões locais, era rico. Possuía algumas cabras e um pequeno sítio onde produzia leite, queijo e manteiga. Acolheu a menina tímida e maltrapilha em sua própria casa, sob os olhares de admiração do povo. O que ninguém sabia, é que lá detrás das portas, os abusos dos quais Gerda fugira continuaram... mas ela dava-se por sortuda, pois não lhe faltava comida, e eram raras as vezes em que o velho Amâncio conseguia uma ereção... ele a tratava quase bem – pelo menos, não batia nela, como o padrasto. Além disso, permitiu que ela frequentasse a escolinha primária.
Um dia, ele partiu desta para outra bem melhor, e deixou-lhe tudo o que possuía em testamento, já que não tinha herdeiros. Naqueles tempos, a jovem Gerda contava dezesseis anos de idade. E ela bem que tentou tocar o negócio das cabras, mas não conseguia fazer tudo sozinha. Tentou também contratar alguns ajudantes, mas logo descobriu que eles a estavam roubando quando as cobranças das contas que ela acreditava terem sido pagas começaram a chegar. Sem dinheiro para pagá-las, ia perder o sitio para o banco, mas recebeu uma oferta por ele que, se não cobria o valor real, pelo menos deixava-lhe algo para comprar uma casinha e recomeçar tudo. E foi o que ela fez: adquiriu por bom preço uma casinha de dois cômodos na beira da estrada, fora da cidade. Conseguiu sobreviver por algum tempo com o dinheiro que sobrara, e tentou arranjar trabalho, o que logo percebeu que não havia por ali – ainda menos para uma menina da sua idade.
Um dia, conheceu Juvêncio, um cabra que estava de passagem. Dizia-se mascate (carregava sempre uma grande mala onde ele dizia estarem os seus “produtos.”). Sozinha e carente, enrabichou-se pelo moço bonito e faceiro, que passou a morar na casinha, sustentado por ela. Mas depois de alguns poucos meses, o cabra cansou-se dos favores da menina e foi-se embora sem nem dizer adeus, levando consigo o pouco dinheiro que restara à jovem Gerda e deixando no ventre da pobre moça uma semente sua, que após nove meses, surgiu no mundo como uma menininha graciosa que Gerda chamou de Lucy. Mas infelizmente, a pequena Lucy ficou por aqui durante um tempo curto demais, despedindo-se da vida aos quatro anos de idade. Sozinha, ferida e sem dinheiro, Gerda começou a “fazer a vida” como podia. Logo, outras moças foram surgindo e formando o seu pequeno staff. Elas apareciam assim, do nada, vindas de suas andanças por estradas que há muito ficaram para trás. Nada traziam, a não ser as histórias tristes de suas vidas curtas e infelizes. E todas as que bateram à porta de Mme. Gerda foram por ela acolhidas e bem treinadas na mais velha profissão do mundo. O negócio foi crescendo, crescendo e transformando-se de uma casinha de dois cômodos a uma casa ampla e confortável, as paredes pintadas de roxo, tapetes vermelhos, cortinas de brocado dourado vindo da capital e amplas camas com dosséis. Vinham homens também de cidades vizinhas, tal a fama que Mme. Gerda e suas meninas bem treinadas adquiriram. Às vezes, atendiam também a casais que exigiam serviço em domicílio.
Naquela manhã do dia 23 de dezembro de um ano qualquer, Mme. Gerda reuniu suas ‘meninas’ e anunciou:
-Não teremos função na noite do dia 24 e no dia 25 de dezembro.
As meninas olharam-se espantadas, pois naquela noite sempre apareciam alguns clientes sem famílias (ou com famílias) que desejavam ter uma noite feliz. “O prejuízo será enorme para nós,” comentou Juju, uma ruiva maquiada demais cujo sonho era juntar dinheiro suficiente para abrir sua própria casa em outro lugar longe dali. Mme. Gerda tranquilizou-as:
-Não se preocupem, todas vão receber como se fosse uma noite normal. Já fiz as contas e cada uma vai receber o equivalente ao que ganharia se houvesse função.
As meninas suspiraram aliviadas. Dália, uma negra baixa e gordinha, foi logo perguntando, as mãos na cintura e olhar desconfiado:
-Mas qual o motivo dessas férias repentinas?
-Eu quero ter uma noite de Natal. Nunca tive uma, e acredito que a maioria de vocês também não.
As meninas se entreolharam, algumas baixando a cabeça com tristeza. Uma brisa morna adentrou o cômodo, enquanto Mme. Gerda continuou:
-Vamos já com os preparos da nossa noite de Natal. Juju, você vai ao mercado comprar os panetones, o pernil, um peru de natal bem grande (as meninas interromperam com uivos e gargalhadas) e algumas garrafas de champagne do bom. Dália e Cilene, arrumem os quartos e a sala e deixem tudo nos trinques! Débora e Clô, já para a cozinha e só saiam quando a ceia estiver pronta. E nós, Gigi, Valentina e Margô, vamos comprar os enfeites e preparar a árvore mais linda que já se viu por aqui!
-Vai ter presente, madame?
Mme. Gerda pensou por um segundo antes de responder:
-Vai sim... vai ter presente para todo mundo!
E entre risadas, urros e aplausos, os preparativos começaram. No dia 24 de dezembro, uma das meninas pintou um cartaz de “fechado para o Natal” e pendurou è porta de entrada. Logo, a notícia do Natal da cafetina correu a cidade. As senhoras de bem faziam o sinal da cruz nas esquinas. Algumas, ao saberem da notícia, desmaiaram. Foram até a igreja e perguntaram ao Padre Jonas se haveria como impedir que o nascimento do Salvador fosse profanado naquele templo de perdição. Padre Jonas pensou na ironia daquela situação, pois se aquelas mulheres mantinham-se casadas a tanto tempo, deveriam agradecer a Gerda e suas meninas, e quase disse aquilo; mas achou melhor calar-se, e encolhendo os ombros, disse:
-Não posso impedir ninguém de celebrar a festa do Natal, senhoras. Cristo nasceu para todos nós, e perdoou Maria Madalena. Por que não fazem o mesmo?
Aquilo pareceu acalmar os ânimos por algum tempo; pelo menos, aparentemente. Até que, não se sabe como, chegou às ceias de natal familiares a notícia de que as prostitutas estavam se preparando para ir à Missa do Galo! Alguns homens se entreolharam preocupados, pois temiam serem chamados por seus nomes por alguma das meninas, quando estivessem na igreja acompanhados de suas esposas e filhos. Ao mesmo tempo, nada disseram contra ou a favor, preferindo não tomarem partido. Afinal, quem tem rabo, não senta! Diante das esposas e noivas, todos faziam-se de santos. Mas se só houvesse santos naquele lugarejo, como aquela casa tinha prosperado e sobrevivido durante todos aqueles anos? Todo mundo sabia a resposta, mas preferiam continuar ignorando-a. Assim como todos sabiam o quanto Mme. Gerda pagava de impostos, que geravam benefícios para todos na cidade, e também que ela contribuía generosamente para manter a escolinha local onde estudavam as crianças das famílias ‘de bem’. Todos também sabiam do quanto ela doava, todos os meses, para as obras de caridade de Padre Jonas. Mesmo assim, a Sociedade da Família fazia questão em ser a pedra no sapato de Mme. Gerda. E não arredariam pé nem daquela vez! Um grupo de senhoras decidiu, comunicando-se por telefone, que ficariam de pé na entrada da igreja, e que impediriam a entrada das profanas.
E assim se deu.
Quando as meninas chegaram com seus vestidos curtos e rendados, e com seus decotes generosos, e suas maquiagens escandalosas, as cabeças cobertas por véus negros, foram barradas à porta da igreja. A confusão ia começar, e os homens temeram por elas, mas nada fizeram para defender as mulheres que tantos prazeres lhes davam, e que tantas vezes os ouviam e aconselhavam. Gigi, a mais afoita, de mão na cintura e balançando os quadris, berrou:
-Sai da frente que nós vamos entrar!
Juju se aproximou, dando um passo adiante, e colocando o dedo no nariz de uma das beatas, anunciou:
-Ninguém vai impedir a gente!
A velha senhora fingiu um desmaio, e várias pessoas a acudiram entre “ahs” e “ohs” desesperados. Alguém gritou que aquilo era um sinal, e uma quantidade de bosta de cavalo atingiu Juju bem no meio do rosto. As meninas estavam a ponto de bala e prontas para um confronto, enquanto Padre Jonas tentava acalmar a todas as envolvidas, mas sua voz fininha era abafada pelos gritos das mulheres.
Os homens permaneciam ou dentro da igreja ou olhando a cena de longe, com muita pena das meninas de Mme. Gerda, mas muito mais temerosos pelos seus próprios destinos.
Quando Padre Jonas entrou na igreja tentando incitá-los a irem lá fora e acalmarem suas esposas, eles baixaram as cabeças, dizendo que Deus olharia por elas... e permaneceram onde estavam.
Uma grande briga estava para começar. As meninas arrancavam os véus, as maquiagens borradas pelas lágrimas. As senhoras jogavam nelas o que estava às mãos: pedras, saquinhos plásticos com urina e excrementos de cachorro. As meninas retribuíam com bolsadas e cusparadas. De repente, uma voz de trovão se fez ouvir entre a multidão. Era Mme. Gerda:
-CHEEGA!!!
As meninas foram se calando, e ainda ofegantes e descabeladas, obedeceram sua líder. Juju ainda tentou argumentar:
-Mas Madame, nós temos o direito de entrar!
Mas madame decretou:
-Nós vamos embora.
As meninas falavam todas ao mesmo tempo, algumas com os sapatos nas mãos, prontas para recomeçar a guerra. Mme. Gerda gritou novamente:
-Eu disse CHEGA! Vamos embora. Aqui não é o lugar e nem a hora certa para uma cena dessas.
Lá dentro, os homens suavam frio.
As meninas retiraram-se sem olhar para trás, ao som de uivos e aplausos efusivos. Ninguém viu que caiam-lhe lágrimas dos olhos, e quem ficou para trás pode finalmente entrar na igreja e assistir à Missa do Galo, onde tudo ocorreu como se nada tivesse acontecido.
Mas quando todos foram para casa, Padre Jonas sentiu-se muito mal. Não queria ser covarde e hipócrita como as mulheres locais. Foi então que, após muito pensar – poderia perder alguns de seus paroquianos ou até mesmo ser denunciado à cúria – tomou uma importante decisão.
Na manhã seguinte, dia de Natal, quando todos adentraram a igreja, Padre Jonas fez seu sermão como de costume. Mas antes que todos saíssem, suspirou fundo e começou um discurso que causaria ódio e amor, revolta e vergonha:
-Meus queridos amigos e fiéis, peço que permaneçam e ouçam de coração aberto o que eu tenho a dizer.
Ouviu-se um burburinho entre os fiéis, mas logo fizeram silêncio, e Padre Jonas pode continuar seu discurso:
-Ontem à noite houve um episódio deprimente à porta desta igreja.
Os fiéis se entreolharam, e começaram a conversar alto uns com os outros. Mas padre Jonas não se deu por vencido, e elevando a voz até que todos se calassem, prosseguiu:
-Silêncio por favor! Ouçam o que eu tenho a dizer... todos nós sabemos que se nossos filhos estudam em uma boa escola, em excelentes condições, e dispõe de luxos como computadores com internet, demais recursos tecnológicos, merenda de qualidade e material escolar, devemos isso às contribuições de Mme. Gerda, e não ao governo. Todos também sabemos que com os altos impostos que aquela casa paga, os recursos convertidos à qualidade de vida da população são inúmeros.
Algumas beatas retiraram-se da igreja, pisando duro, mas os demais permaneceram em seus lugares.
-Todos nós sabemos que se hoje temos este templo de Deus reformado, belo, adequado aos nossos serviços religiosos, é também a Mme. Gerda e suas funcionárias que devemos. Além disso, os turistas que vem à cidade a procura dos serviços daquela casa sempre acabam comendo em nossos restaurantes, fazendo compras em nossas lojas e até mesmo hospedando-se em nossos hotéis. E tudo isso gera recursos para a cidade. A senhora mesma, Dona Hermengarda, sabe bem o quanto lucra vendendo as flores que enfeitam os salões daquela casa.
Dona Hermengarda baixou a cabeça e nada disse.
-E o senhor, ‘seu’ Juvenal, fornece a carne e o leite usados nas refeições daquela casa. E o senhor, ‘seu’ Manoel, é quem providencia toda a bebida e demais mantimentos, que são entregues toda quinta-feira à porta daquela casa, pois o senhor não permite a entrada delas em seu mercado... Mesmo que sua entrada por lá nunca tenha sido bloqueada.
Gargalhadas são ouvidas.
- E vocês, senhoras, devem a elas muito mais do que pensam...
Naquele instante, os maridos engoliram em seco e as esposas pigarrearam e baixaram suas cabeças, ou cutucaram seus maridos raivosamente. Padre Jonas achou melhor pular aquela parte.
-Bem, eu proponho que tenhamos um pouco mais de caridade e gratidão do que a que demonstramos na noite passada. Vamos todos hoje à casa de Mme Gerda, onde uma missa especial de Natal será rezada.
Mais algumas beatas retiraram-se, pisando duro e reclamando. Mas a maioria dos fiéis permaneceu na igreja, esperando que alguém entre eles se manifestasse contra ou a favor, para então, segui-lo. E foi justamente a anciã local, Dona Beatriz, quem se manifestou:
-O senhor tem o meu apoio, Padre Jonas. O que aconteceu ontem foi vergonhoso. O senhor tem o meu apoio.
E assim se deu. Todos dirigiram-se até a casa de Mme. Gerda em procissão. Embora preferissem permanecer do lado de fora enquanto Padre Jonas rezava a missa no salão da casa, já tinha sido um progresso.
Quando o serviço religioso terminou e todos se retiraram, as meninas ficaram no salão, conversando sobre tudo o que havia acontecido. Algumas mais sensíveis, choravam. Tinha sido muito importante para elas serem tratadas como gente de verdade pela primeira vez na vida.
De repente, Mme Gerda lembrou-se de uma coisa importante, e retirou-se da sala, voltando com várias caixas embrulhadas para presente. Parou sob o batente da porta, anunciando:
-Mas eu disse que ia ter presente pra todo mundo! E palavra de Mme. Gerda é lei!
As meninas alvoroçadas a abraçaram e comemoraram a ocasião como bem sabiam, e depois puseram-se a abrir seus presentes.
Todas elas receberam a mesma coisa: lindas bonecas vestidas de princesas. Eram presentes muito merecidos e desejados, que finalmente a vida lhes proporcionava através de Mme. Gerda: um pouco de suas infâncias roubadas.