Dona Mafalda veste-se com muita sobriedade. Tons de cinza. Preto. Muito preto. Inclusive uns óculos bem escuros, de sol. Diz que é para proteger os olhos da luminosidade. Dir-se-ia que é para se sentir isolada no seu mundo, um mundo que transforma em escuro porque não vê mais ninguém. Tem feitio difícil. Mas é boa gente, esta viúva de oitenta e muitos anos. Vive só. Tem uma energia que se desconhece em muita gente mais nova. Mas vive só. Tem um filho, mas está nos Estados Unidos. Aqui, por perto, só tem os vizinhos. Vai vivendo. Aqui, acolá, nesta vizinha, naquela, uma conversa aqui, uma desconversa ali. Vai vivendo. Diz que poucas vezes está só. Ontem estivemos conversando. Normalíssima. O tempo, a vida, as maleitas. Desejei-lhe uma boa preparação de Natal. E ela, no mesmo jeito despachado mas um pouco mais abatido. É o pior dia do ano. Não quis acreditar no que ouvia. Mesmo para quem não acredita, este é dos maiores dias do ano, dos mais alegres e esperados. Festa, família, presentes, muita cor e alegria. Por isso não arredei pé sem insistir. Por quê? E ela respondeu dizendo que era o dia de todo o ano em que se sentia mais sozinha. Sozinha porque as vizinhas estavam com os seus e não podiam estar para ela. Que era normal. Sozinha porque o seu filho não podia vir. Era normal nele, como para muitos outros filhos de hoje. Sozinha porque todas as pessoas estavam acompanhadas e fazia-se notar mais a sua solidão. Sozinha porque estava mesmo sozinha e nesse dia dava mais conta de estar sozinha. Por isso não fazia ceia. Deitava-se cedo. Para não dar conta durante muito tempo. Falei-lhe da presença de Deus na sua vida. Falei-lhe que Ele nasceu sobretudo para ela. Afaguei-lhe o rosto. Ela afagou o rosto na minha mão. Mas não adiantou muito. Está bem, eu sei. Mas o dia de Natal não deixa de ser o pior dia do ano.