Capítulo 1
"MILAGRE NA HORA ZERO"

     Sem blusa, com as calças ainda na coxa e o cinto desafivelado, Carlos observava a tela do seu computador enquanto roía as unhas. Estava se arrumando quando resolveu se sentar sobre sua cadeira giratória. Olhou rapidamente para o relógio no canto direito inferior do monitor, eram onze da noite.
     Aos poucos, e sem tirar os olhos da tela, ele foi subindo a calça e se arrumando melhor. Estava aéreo. O quarto vazio e desarrumado lhe trazia lembranças desagradáveis. A casa estava silenciosa, os cômodos escuros. Parecia que estava sozinho em casa, mesmo não estando.
     Pegou o relógio sobre a cômoda e sua blusa pólo branca, de malha de algodão e a vestiu. Feito isso, rapidamente voltou para o computador. Novamente levou os olhos para o relógio na tela, havia se passado apenas três minutos. A espera o estava irritando. Queria olhar mais vezes para o relógio, mas sentia vergonha de si mesmo. Tentava olhar de soslaio, mas sentia-se ridículo e voltava os olhos para o centro da tela.
     O barulho do chão de madeira rangendo o fez olhar para a porta do quarto. Pôde ver uma sombra se aproximar. Enquanto esperava a silhueta tomar forma de gente, reparou que algumas fotos antes penduradas no quadro de cortiça, presas por tachinhas de metal, haviam sumido. Estranhou, mas sabia o que tinha acontecido. Seu pai surgiu na porta com uma aparência cansada. Olhos fundos, cabelos desgrenhados, uma fisionomia que nada combinava com o terno preto e alinhado que vestia.  Nas mãos carregava um pequeno embrulho amarrado com um enorme laço vermelho. O laço era duas vezes maior do que a pequena caixa do tamanho de um cd.
     Carlos girou a cadeira e postou-se de frente para a porta aonde seu pai o observava calado.
     -E aí? Não vai mesmo?- perguntou com sua voz cansada, o homem chamado Ricardo.
     -Não dá, pai. Já marquei com os moleques. Vai ter festa lá na casa da Bianca, e eu já paguei pela entrada.
     -Natal, geralmente, a gente passa com a família. Onde quer que ela esteja... - respondeu entrando no cômodo e se incomodando com a bagunça.
     Seu Ricardo se aproximou do filho, parou de pé ao seu lado, retirou uma blusa amassada de cima de cama e sentou-se devagar devido as suas dores na coluna.
     -Os natais nunca mais serão os mesmo. Nunca mais serão os mesmos. Você lembra como ela ficava? O desespero para deixar tudo pronto até a meia noite? Ela não deixava a gente beliscar nada na geladei...
     -Pai. – interrompeu Carlos, virando-se de volta para o computador. –Não tem mais motivo para nos lembrarmos disso. Já faz um ano. Se a gente ficar resgatando esse tipo de coisa, nós nunca iremos aceitar que ela não volta mais.
     Ricardo respirou decepcionado. Sempre se empolgava com as lembranças boas daquela casa. Era de se impressionar a diferença que se estabelecera entre ele e seu filho único. Os dois não conversavam mais, não brincavam, não corriam na Quinta da Boa Vista como faziam todos os domingos pela manhã. Simplesmente pareciam estranhos morando debaixo do mesmo teto.
     -Tem razão. Eu preciso me desprender desse espírito de nostalgia. Mas sabe como é... – disse com um sorriso forçado que não camuflava a tristeza evidente em seus olhos.- ...O natal mexe com a gente.
     Carlos não respondeu. Apenas olhava para a tela do seu computador friamente. Conseguia ver o reflexo de seu pai, e no fundo sentia pena da situação em que ele se encontrava. Pôde vê-lo alisar os cabelos ralos e mais brancos do que no ano anterior. Em doze meses, ele parecia ter envelhecido uns cinco anos.
     -Vai chegar tarde, Carlos?
     -Não sei, pai. Provavelmente devo chegar de manhã. A festa vai estar muito cheia, e devo ficar pra ajudar a arrumar a casa.
     -Que horas você vai? Já são onze de meia quase.
     -Tô esperando o Havaiano me ligar. Vamos andando até lá.
     Havaiano era o apelido de João Guilherme. Melhor amigo de Carlos. Era um rapaz metido a gostoso só por conta de seus olhos verdes e cabelos loiros queimados de sol que lhe davam uma aparência de surfista.
     Ricardo pensou em abraçar o filho, mas não se sentia mais à vontade para fazer aquilo. Apenas o benzeu mentalmente, e saiu do quarto. Carlos esfregou as mãos no rosto e respirou fundo. Aquele clima dentro de casa estava se tornando insuportável. Pensava em como tudo mudou desde que sua mãe se fora.
     As lembranças foram interrompidas pelo toque insistente do telefone. Imediatamente o rapaz pulou da cadeira giratória e se jogou na cama, aonde se encontrava seu celular. Olhou rapidamente no visor para confirmar quem estava lhe ligando.
     -Fala tu, Havaiano? Já são quase meia-noite, cadê você?
     Dez minutos depois o rapaz metido à galã estava na porta da casa. Carlos abriu a porta devagar e sentiu um baque ao ser empurrado para dentro. Seu amigo tinha essa mania de brincadeiras estúpidas. Certa vez, brincando de lutinha, Carlos tivera seu dedo mindinho quebrado em dois lugares, devido a um golpe que Havaiano havia assistido num filme e quis tentar por em prática, treinando no amigo.
     -Cara, eu liguei pro Gilmar, e ele disse que a casa da Bianca tá lotada! Muita mulher, cumpadi! Muita mulher! - Havaiano parecia desesperado.
     -Cara, te falar, tô sem vontade nenhuma de ir. Tava esperando você entrar no MSN só pra tentar te fazer me dá ânimo!
     -Caramba, e o que eu fiz agora? Cara, eu disse que a festa tá cheia de mulher! Todas bebendo! Depois da meia noite elas vão estar fáceis, fáceis! Animou agora? Entendeu a onda do negócio? – explicou o loiro com uma empolgação bem contagiante. – Vai estar todo mundo lá!... Quer dizer, menos o Romário que tá preso. Mas o resto...
     Carlos saiu de casa e fechou a porta. Olhou rapidamente para a sua rua. A maioria das casas pareciam cheias de gente. Famílias reunidas na única noite do ano em que os problemas são temporariamente esquecidos. A única noite em que o perdão se estabelece entre inimigos e desafetos. A noite de natal. Aquilo aumentou seu desânimo. Queria desabafar com seu amigo o que realmente acontecia. Mas seu melhor amigo não era lá o perfil de melhor amigo. Talvez tivesse esse rótulo pela quantidade de tempo que passavam juntos, muito mais do que por atos que o fizesse merecer tal status.
     -Que desânimo é esse, cara? A Bia vai estar lá! A mina que você gosta é a dona da casa! Ela vai ser o seu presente! E você vai ser o Papai Noel dela! Dá pra ela seu saco de brinquedo...
     -Eu me impressiono com suas analogias sexuais, sabia? Queria saber de onde você tira isso!
     -Google. - respondeu de imediato.
     -Imaginei. Mas Havaiano, vê se entende, é meu primeiro natal...
     -Carlinhos, sou teu amigo, sei que é difícil, que você era ligado à sua mãe. Mas ela se foi, cara! Morreu. Por mais que você sofra, nada vai mudar. Reze por ela. Pela alma dela, sei lá... Faça como os padres falam. Mas não deixa isso te abalar. É natal!
     -Por isso mesmo, Cara. É natal! Meu pai hoje veio inventar de lembrar como era o natal quando ela estava viva. Era foda! A gente tinha muita comida, ficávamos vendo filme, ouvindo música...
     -Uau! Que divertido! – disse em tom sarcástico, enquanto conferia as horas em seu celular, o debochado Havaiano.
     -Você fala isso, pois sua família sempre viaja pra Iguaba e te deixam sozinho aqui. É costume, Michael. É costume. Eu estava acostumado aos natais reunidos. Sempre nós três aqui em casa. Hoje em dia, eu nem falo direito com meu pai. Acho que ele tem raiva de mim, sabia?
     -Carlos, sérinho, sem querer cortar seu momento drama, foda, diga-se de passagem, eu acho melhor a gente se adiantar. Se chegarmos depois da meia noite, todas as minas já vão estar com seus parceiros, e vamos ficar chupando dedo. Reza pela sua mãe. E pronto! E sem contar que passar final de ano em Iguaba, isso sim é deprimente. Conheço um maluco que quase se matou no natal de 1986. Eu nem tinha nascido, meu pai que contou.
     Carlos respirou fundo. Queria desabafar. Queria falar toda a verdade. Mas não conseguia. Sentia vergonha duas vezes. Resolveu acompanhar o amigo, mas pensando em como estaria seu pai naquele instante.
 ••••••
 
     Andando sozinho pelas ruas desertas, Seu Ricardo caminhava lentamente pelas ruas do bairro. Estava próximo de onde queria chegar, mas as ruas lhe traziam boas lembranças. Era engraçado como bairro havia mudado. As casas cresceram, os conhecidos e amigos diminuíram. A morte e oportunidades melhores levaram todos os que mais gostavam.  Passou pela pracinha aonde levava Carlos aos domingos. Parecia ver tudo acontecer ali, diante dos seus olhos. O pequeno Carlinho caindo à toa e sempre chorão. Sempre querendo colo e manhoso. Sua esposa sempre correndo para abraçá-lo. Sempre preocupada com o bem estar de sua família. Sempre trabalhando para que os dois fossem felizes.
     -A Neuza... – suspirou com os olhos marejados e apertando o embrulho com um pouco de força.- ... A falta que você faz.
     Continuou andando. Estava chegando. Sua cabeça estava no encontro que teria e em como estaria Carlos. Não entendia como ele podia trocar tudo aquilo por uma festa que lhe traria somente uma ressaca na manhã seguinte. Tentava compreender que os tempos haviam mudado. Mas não conseguia. Era definitivamente impossível entender como os jovens trocavam a companhia de sua família pela de amigos beberrões. No seu tempo, pelo menos até depois de meia noite e meia, todos estavam em casa. Depois, iam para as ruas comemorar e farrear. Mas nos tempos atuais, o que mais importava era a farra. Era o número de pessoas que beijaria. Isso o deixava ainda mais decepcionado. Ainda mais por seu filho ter se tornado um jovem parecido com os demais.
•••••••
 
     A casa de Bianca estava lotada. Todos da escola e do bairro estavam lá. Ao chegarem, Carlos e Havaiano foram recebidos pela anfitriã. Muito bela, a morena de dezoito anos vestia um vestido curto lilás e usava um gorro de Papai Noel.
     -Pensei que as duas não viessem! A cerveja já estava acabando, Havaiano.
     Michael se aproximou da moça, a beijou na face, e disfarçadamente deslizou as mãos pelas nádegas dela, achando que não tivesse sido percebido. Enquanto fazia isso, fazia caretas para seu amigo, vangloriando-se da situação.
     -Acabou aí, Havaiano? Já alisou? Se quiser eu espero você gozar. –disse a menina sorrindo, porém deixando o esperto constrangido.
     Carlos se aproximou desanimado e abraçou-a também. Ela notou seu desânimo.
     -Ô, Carlinhos. Eu sei que você deve estar mal com esse lance da sua mãe, né? Poxa, não imagino...
     -Não vamos falar sobre isso, Bia. – pediu tentando mostra-se animado. – Onde tem cerveja, hein?- perguntou entrando na casa e deixando os dois na porta.
     -Ele está arrasado ainda, né?- perguntou Bianca se aproximando de Michael.
     -O Carlos é estranho. Às vezes ele age como se nada tivesse acontecido. Parece que sei lá, não caiu a ficha que a mãe dele morreu, sabe? Ele quase não comenta. Não entra em detalhes, não diz a causa... Sei lá.
     -Porra, Havaiano! E você acha que deve ser fácil perder a mãe? Se eu chorei perdendo minha poodle Judith, imagina perdendo minha mãe!
     -Você comparou a mãe do moleque com aquela pulguenta mesmo? Bianca, se você não fosse tão bonita, e eu não quisesse te pegar até o final do ano, juro que dava na tua cara agora.- confessou Havaino caindo na gargalhada logo depois e abraçando a menina, novamente com segundas intenções.
     -Dá pra tirar a mão da minha bunda?
     Ele tirou e foi atrás do amigo dentro da casa.
•••••••
 
     Carlos estava encostado na copa da cozinha. Seu olhar estava fixado em seu celular.
     -Esperando alguma ligação, rapaz?- perguntou Yago, um gordinho que não tinha muitos amigos, mas por ter dinheiro, sempre era convidado para as festas.
     -Não, não Yago. Na verdade tô pensando em ligar.
     -Eu também faço isso. Sempre à meia noite eu ligo pra todo mundo, ou então mando torpedo igual pra todo mundo do celular.
     Ao ouvir isso, era impossível entender como aquele rapaz não tinha amigos. Carlos chegou a pensar em como nunca tentou se aproximar de Yago. Sempre notara seu bom coração, mas as palavras e atitudes de Havaiano o tornavam mais interessante.
     -É o primeiro natal sem sua mãe, né? Putz! Deve ser horrí...
     -Yago, sério, não vamos falar sobre isso!
     -Mas ela morreu de quê?
     -Yago, eu não quero falar sobre isso. Vim pra festa pra tentar esquecer isso. Me deixa quieto.
     O gordinho então se afastou e fora puxar assunto com uma menina gordinha que assistia sozinha, televisão na sala.
     Os olhos de Carlos voltaram para o celular. Seus dedos pareciam coçar para digitar os números. Foi então que uma música tocou ao fundo. Imediatamente Bianca surgiu no meio da sala.
     -Galera, faltam dois minutos para a meia noite!- gritou enquanto tentava subir na mesa de centro.
     Os jovens começaram a gritar e a comemorar. Carlos observava aquilo tentando escutar melhor a música que tocava ao fundo. Forçou um pouco mais a audição tentando separar a música dos demais ruídos da sala. Foi então que reconheceu. Era “Noite Feliz”, cantada pelo coral de Petrópolis. A música que mais tocava em sua casa nos finais de ano.
     Imediatamente suas memórias viajaram para o ano anterior. Justamente no natal. Lembrou-se de quando chegou em casa e vira sua mãe caída no chão com sangue no nariz e um corte em cada pulso. Pôde sentir novamente todas as sensações que a cena lhe causou. O bolo na garganta, os tremores nas pernas. A cena era chocante e mesmo assim, não conseguia desviar os olhos. A árvore de natal estava tombada e as bolinhas coloridas quebradas.
     -O que houve, pai? Que é que a mamãe tem?- perguntava enquanto jogava as bolsas de comprar de qualquer maneira pela sala.
     -Acorda Neuza! Não faz isso com a gente! Acorda!- gritavas Ricardo enquanto tentava reanimar sua esposa. – Carlos, liga pra ambulância, rápido! Ela está morrendo!... Acorda Neuza, por favor! Neuza, Não faz isso comigo e com o Carlinhos...
     O desespero no rosto de seu pai entrou em contraste com a tristeza dos dias atuais, fazendo com que Carlinhos acordasse do transe que as memórias lhe trouxeram. A contagem regressiva estava começando e Bianca de cima da mesa de centro ditava os segundos.
     -Cinco!... Quatro!... Três!... Dois!... Um! Feliz nataaaal!- gritou ela o quanto pode, tendo sua voz abafada pelo barulho dos fogos na rua.
     Enquanto os jovens se abraçavam, Carlos sentia as lágrimas escorrerem pelo rosto. De longe, Havaiano notou a dor do amigo e se aproximou. Ao sentir que pela primeira vez o amigo parecia sério,  Carlinhos o abraçou e desabou num choro compulsivo. A cena atraiu a atenção dos demais presentes, mas somente Bianca se aproximou dos dois. Os olhos dela se encheram d’água.
     Carlos se afastou do amigo e enxugou o rosto avermelhado e banhado. Sentia que era a hora de desabafar, ou iria enlouquecer. Calmamente o trio saiu da casa e foi para o quintal. Carlos enxugou os olhos mais uma vez e lhes contou sobre sua tristeza.
     -Como assim, Carlos? –perguntou Bianca após escutar toda a história.
     -Eu não acredito que você fez isso. Sou seu amigo, devia ter me contado a verdade!- reclamou Havaiano se levantando do jardim.
     -Eu sei, Michael. Mas... Eu não sei o que me fez levar a diante essa história. Meu pai tá lá, e eu aqui. Eu sou um idiota!
     -Idiota é o que você fez. Mas por quê?
     -Vergonha, Bianca. Eu fiz por vergonha. Você sabe que o pessoal é cruel. Você viu o que falaram da mãe do Thiago quando a viram perto da Vila Mimosa. O cara nunca mais saiu pra rua e tudo por boatos. – explicou Carlinhos desconfortável com a situação.
     -Mas no seu caso, não vem ao caso! Sua mãe é doente! Não se brinca com isso! Pelo menos eu não brincaria! – continuou Havaiano num tom pouco conhecido de voz. – Inventar que ela morreu te faz ser pior que quem inventou o boato sobre a mãe do Thiaguinho. Se você falasse a verdade, eu nem insistiria pra você vir.
     -Ter uma mãe louca, uma suicida, isso seria um prato feito para me zoarem na escola. Eu não ia aturar, ia fazer merda, ia trazer problemas pro meu pai! Era mais fácil dizer que ela morreu! Ninguém mais ia tocar no assunto. E ela descansaria em paz no hospital.
     Bianca estava começando a entender seu amigo.
     -E ela não sai mais? Tipo, vai ficar no hospício pra sempre?
     -Ela tem esquizofrenia. Mas agora, depois que ela tentou se matar, as coisas pioraram. Ela não pode ficar sozinha em casa. Eu e nem meu pai podemos ficar com ela. Por isso colocamos no hospício aqui perto. Para estarmos perto.
     -Mas você nunca foi visita-la?- perguntou Michael ainda irritado.
     -Não... Meu pai está lá agora. Era lá que eu devia estar. Não sei o que seria de mim se ela tivesse morrido naquele dia. Foi mais fácil matá-la na mente, assim eu estaria preparado para o que quer que aconteça realmente.
     Bianca se aproximou de Carlos e o beijou nos lábios. Imediatamente um sorriso enorme surgiu nos lábios de Havaiano, porém lembrou-se do tom sério da situação e fechou a cara novamente.
     -Se eu fosse você, ia lá para o hospital passar a noite com ela e seu pai. Eu vejo seu pai na rua. Nem parece o tio Ricardo. O mesmo que levava a gente pra tomar sorvete no domingo. Que contava histórias de terror na hora de dormir no seu quintal. Ele não merece isso, cara. Ele só tem você, Carlinhos. Só você pode confortá-lo e vice-e-versa. - disse Bianca enquanto fazia carinho nas mãos de Carlos.
     A menina falou coisas que o fez refletir. Num ato de reflexo, o rapaz a puxou para perto de si de novamente, e beijou-a, dessa vez usando a língua. E dessa vez nem mesmo Havaiano se aguentou. Enquanto o beijo acontecia, ele sorria e batia palmas, esperando que mais pessoas o acompanhassem no aplauso, mas ninguém o fez.
     Após o beijo, Carlos saiu à jato da festa indo na direção do hospital ali perto, aonde deveria estar desde antes da meia noite.
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     As mãos de Neuza estavam frias e secas. Havia emagrecido muito, mas seus olhos continuavam encantadores como os de uma criança. Apesar de um pouco catatônica devido à medicação noturna, ela fitava os olhos de Ricardo enquanto esse alisava seus cabelos. Cabelos esses que exibiam os primeiros fios brancos nas pontas, criando um efeito prateado nas madeixas.
     Os olhos do homem se fixaram no relógio de parede do quarto. As horas cheias eram frutas, e o doze era uma enorme melancia fatiada. Queria que o filho estivesse ali, pelo menos no natal. Neuza parecia não se lembrar de Carlos. Desde que se internara, nunca mais falara no nome do filho. Apenas se referia à estrela guia. Sempre dizendo que um dia ela cairia no quarto. Todos encaravam a tal história da estrela como um devaneio. Provavelmente algo relacionado ao nascimento de Jesus, e ainda preso numa parte sã da mente da mulher.
     -A estrela ainda não caiu. - disse balbuciante.
     -Ela cai. Ela cai, meu amor. - respondia enquanto tentava não olhar para as cicatrizes nos pulsos da esposa.
     Como se levasse um susto ao se lembrar, Ricardo levantou-se e tirou do bolso o embrulho. Colocou-o sobre os joelhos dobrados da esposa, apoiado no avental clínico que ela vestia. Desembrulhou e mostrou a ela o porta-retratos. A foto exibia a família reunida no natal de dois anos antes.  Carlos com cara de raiva devido a pressa em abrir os presentes, e o casal se entreolhando apaixonado, sem saber que aquele seria o último natal juntos.
     Neuza pegou o enorme laço e colocou sobre a cabeça. Feito isso, apontou para a frente.
     -A estr.. Estrela.
     -Sim, a estrela vai cair. - respondia Ricardo.
     Ao olhar mais um pouco para a esposa, pôde observar que o indicador dela e até mesmos eu olhar não se depositavam no porta-retratos, e sim além dele. Devagar Ricardo virou a cabeça e não acreditou no que vira.
     Parado na soleira da porta do quarto estava Carlos, com os olhos marejados parecendo muito suado.
     -Você veio, filho?
     Sem ao menos responder ao pai, o jovem se jogou sobre a cama e abraçou sua mãe. O abraço levou sua mente para todos os natais passados. Era como se o cheiro dela o fizesse viajar até sua infância. Sentia-se mal por tê-la negado. Por ter vergonha de sua situação. Com os olhos, pode observar que as fotos então sumidas de seu quarto, enfeitavam agora o criado mudo de sua mãe.
     -A estrela caiu! A estrela caiu!- repetia a mulher, revelando que desde o começo de tudo, nunca havia se esquecido da estrela que guiara sua vida.
     Carlos e Ricardo se entreolharam hesitantes. Após um tempo, se abraçaram.
     -Pai me perdoa. Eu.. eu...
     -Não precisa, Carlinhos. Só de você estar aqui, esse natal já se torna inesquecível. Não acredito que nossa família está junta de novo.
     Neuza observava tudo calada, apenas sorrindo. Parecia entender, e no fundo entendia o que acontecia ali. Tanto entendia que mesmo com a voz fraca, começou a cantar Noite feliz.
     Imediatamente pai e filho se afastaram emocionados. Imediatamente também, sentaram-se ao lado dela e cantaram juntos, fazendo com que uma data especial que parecia esquecia e perdida para eles, renascesse com esperança e alegria, e prometesse continuar sendo especial e mágica para todo o sempre.
     Eles foram felizes. E assim continuaram por muitos dezembros que vieram. Que sempre traziam um milagre diferente assim que o relógio anunciava a miraculosa primeira hora após a meia-noite.

 
FIM

 
 
 
 
 
 
 
Fael Velloso
Enviado por Fael Velloso em 18/12/2011
Reeditado em 18/12/2011
Código do texto: T3395791
Classificação de conteúdo: seguro
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