Sapatos molhados
Teresa não consegue lembrar quando, por primeira vez, teve aquela sensação nos pés. Recentemente descobriu que quase sempre aparece acompanhada de um arrepio no corpo, como se o inverno andasse a se pousar em seu pensamento, e uma nuvem negra, mesmo que invisível, a acompanhasse a toda a parte ao se achegar o Natal. Sempre pensou que com o passo do tempo lhe desapareceria, mas acontece que piorou, agora é suficiente com ouvir ou imaginar a palavra ‘Natal’ para que uma humidade inexistente se meta nos seus pés...
Inexistente, sim, ela já comprovou muitas vezes, tirando os sapatos dos pés, que eles estavam secos como cravos, por usar uma expressão de quando era miúda. Muitas vezes já se viu Teresa analisando este problema seu, porque é um problema, e para mais, sendo a sua profissão a de psicoterapeuta, já até se auto diagnosticou como dismorfo-fóbica, que vem sendo quem tem uma perceção real de algo que seu corpo inventa. Desistiu de entender o porquê e agora resume-o apenas numa incomodidade física, mesmo que precisamente física não pode ser.
O corpo fá-las de novo e paga-as de velho, pensa por vezes... Será que está chegando a velha? Não, ela não tem ainda idade para padecer doenças de velhos no corpo, e menos ainda nos pés... Hoje antes de sair de casa espreitou a previsão metereológica no telejornal, não ia chover, isso era bom, antes de desligar o aparelho de televisão apoderou-se dela, apesar das grossas meias de lã que calçara, a sensação de humidade, no noticiário continuavam agora as imagens de crianças do Terceiro Mundo. Desligou e saiu, já aprendeu a que a cabeça pode desobedecer os recados que o corpo lhe envia, especialmente quando sabe que são falsos, mesmo que um instinto a leve amiúde a olhar para o chão para comprovar que não está metida numa poça de água.
Com o passo dos anos esse desagrado que sobe dos pés, mesmo que ela sabe que não sobe, porque nasce na cabeça, mas como quer que seja, parece que demora menos tempo a se passar, e depois também tarda mais em voltar. Hoje até já se esquecera dele quando entrara na galeria Sargadelos para assistir a uma exposição. Foi com a primeira das fotografias que Teresa sentiu como uns olhos de criança se lhe espetavam na alma, a criança mal teria quatro anos de idade, sozinha. O arrepio foi descendo polo seu corpo até se pousar nos pés. Teresa desatendeu a sensação de incomodidade e continuou a ver o resto das fotos, mesmo que na sua cabeça se seguisse a repetir a legenda da primeira, que ela lembrava assim: ‘Se não entendeis o que querem dizer os meus olhos, de nada serve que vos intente falar’. Era uma criança em branco e preto, como o resto das crianças do Terceiro Mundo capturado naquelas imagens. Abandonou a sala com tristeza, desejou que o Natal tivesse já passado, tivesse deixado suas invisíveis prendas para os invisíveis do planeta, como invisível era a dor de todos eles...
Essa noite antes de dormir vieram à sua cabeça lembranças de quando era miúda, de quando ainda morava na infância; ela crescera num mundo alheio a Natais com prendas, um mundo anterior ao dos centros comerciais... Mas mesmo assim a ela um dia também chegara, de não se sabe donde, uma voz a falar desses outros mundos e Natais, e a menininha Teresa quis experimentar. Uma noite, do mês de Natal ou janeiro, não consegue lembrar a data, quando ninguém a viu, saiu ao quintal, descalçou-se e deixou suas chancas, as que cravara o pai em paus da talha 33, trazidos da feira, o material era duns sapatos que ao irmão lhe ficaram pequenos, na biqueira sempre a peça de reforço, eram tempos de jogar à bola... Teresa, às apalpadelas, pousou as chancas ao pé do loureiro no fundo do quintal, e voltou entrar em casa com muito tino para que ninguém reparasse em que ia descalça.
Aquela noite quase nem conseguiu adormecer, a Teresa grande não pode lembrar o que tinha pedido de meninha, mas com certeza que terá sido alguma cousa com que seu pai e sua mãe lhe pudessem tirar a fame a todos em casa, ou talvez pediu encontrar a Cabrita d’Ouro, esse sempre foi seu desejo maior... Hoje seu sorriso ficou banhado polas lágrimas ao lembrar... Ao dia seguinte pegara no sono até que ouviu a voz de sua mãe do outro lado do tabuado que separava o seu leito da cozinha, a chamar. Vestiu a roupa que lhe faltava por vestir, a de fora, a que não dormira no corpo, e saiu tentando que ninguém visse que saia descalça... Correu ao fundo do quintal, as chancas estavam no lugar onde as deixara, deitou uma olhada rápida à volta do loureiro mas não viu nada que lhe permitisse adivinhar se os seus desejos tinham sido ouvidos, mas a preocupação por ser descoberta polo irmão maior fez que se apurasse. Asinha apanhou as chancas, meteu os seus pequenos pezinhos nos esgalochados sapatos e descobriu, para grande surpresa dela, que as chancas estavam cheias de água...