Noite Boa...
Havia já um pedaço que Brito dera pola incomodidade da pequena. Aquele jeitinho dela de andar, como às patadas com o ar, mesmo parecia que lhe custasse respirar, fungava mais ela que a cavalaria que carregava com o sal, a caminho da aldeia. Brito aguentou sem perguntar, à espera de que a pequena madurecesse as suas preocupações antes de as falar. Dana, a mais velha dos filhos de Brito, era quase uma mulherzinha, andava já nos nove anos, e ela se oferecera a baixar com o pai para ir na procura do sal que precisavam para a celebração que, como cada ano por esta época, estava prestes a chegar. E com ela chegava a noite mais longa de todas as noites, a noite mãe de todas, e mãe também dos dias mais curtos, os frios dias da Invernia.
A Brito preocupava-o ver como no assentamento da beira da lagoa de Lim, que a cada dia se ia fazendo mais grande e que alguns já só conheciam polo nome de Civitas Limicorum, as cousas já não eram o que foram; e agora eram bem diferentes das da montanha, onde tudo se seguia a fazer como sempre se tinha feito. Na vila até havia gente que só estava de passo, gente que antes de se irem embora deixava os seus costumes, e com isso os costumes das gentes de Lim já não eram o que sempre foram...
Brito não gostava daquela deserção dos velhos costumes por parte de seus parentes, mas ele era homem respeitoso dos outros homens e não dizia nada quando, como hoje, os visitava. Ora, o certo é que a cada vez lhe pareciam menos seus parentes, e mais uns desconhecidos, até polo jeito de se vestirem, e de lhe falarem aos filhos... Os filhos de seu primo, que eram do mesmo tempo, mais ou menos, da sua filha Dana, eram bem diferentes dos filhos de Brito, e ele mesmo não saberia dizer por que... Brito pergunta-se se isso será o que faz ir a sua pequena mastigando o seu silêncio enquanto não encontra as palavras que precisa para falar...
Na cabeça da filha as imagens, misturadas com as conversas que teve com os sus primos, enquanto seu pai se dedicara a fazer os trocos para conseguir o sal para os festejos da invernia, andam às voltas como num sonho, e não faz mais do que perguntar-se a si própria o como podia ser que os seus primos acreditassem naquelas cousas nas que eles diziam acreditar... E seguia a lembrar uma e outra vez as cenas vividas:
- Dana, os das montanhas estais atrasados!
- Atrasados? –Dana não percebia o que Flavius, nome que ela não acertava a pronunciar, como lhe acontecia com muitas das palavras que os seus primos falavam entre eles, o que também lhes dava motivo para se burlarem dela, queria dizer com aquilo de “atrasados”. Todo o mundo sabe que a gente das montanhas é madrugadora e nunca se atrasa.
- Sim atrasados, acreditais em cousas estanhas... como que Deus pode ser uma montanha, um bosque, ou uma pedra, até –botaram todos a rir-
- E vós pensais que esse meninho de madeira que fez o carpinteiro forasteiro, esse que passou por aqui, é um Deus?
- Esse bonequinho é uma representação do Deus verdadeiro que está no Céu...
- Está onde? –Os olhos de Dana dirigiram-se para acima de jeito instintivo buscando ver como era esse Deus do que eles falavam...
- Não se pode ver! –diz Flavius, e foi secundado com acenos de cabeça do resto de miúdos e miúdas que lá se juntaram hoje- Deus é invisível, e o meninho de madeira é para celebrar o dia do seu nascimento...
- E vós rides de mim porque acredito no Deus da Montanha, e na Deusa Návia, e muitos Outros que vós nem conheceis, e depois vós dizeis que acreditais num Deus que não se vê, e ainda para mais só tendes um... !!
- Bah! Não lhe conteis nada –dissera Flavius- que ela não pode entender, é das montanhas... lá nem sabem o que é o Natal!
Quando chegaram ao outeiro d’A Ranha, logo de subirem o vale da Fonte-Cova, os dous, pai e filha, pararam a um tempo para espreitarem o ladrar dos cães e o farejar das gentes e as fazendas retornando das veigas para a aldeia. Lá nos outeiros e nas ladeiras do monte seguia a neve a curtir as terras; as fraldas dos penedos da Rainha Loba continuavam cobertas com aquela mesma cor branca que tinham de manhã, mas que agora por mor do resplandor da lua que vinha do Leste para nascer por onde de manhã nascera o Sol, o branco era mais prateado, ou mesmo azulado. A noite vinha-se achegando, a primeira estrelinha piscou lá no alto do céu, e Dana, que parecia já mais calma, perguntou finalmente:
- Pai, como podemos estar certos de que os nossos Deuses são os verdadeiros...? –parecia que a pequena ia continuar a falar mas parou aí; fechou a sua boca, e cravou no pai os seus olhos cor de mar, que agora pareciam mais pequenos que quando olhara a estrela piscar. O pai ficou calado um bocado, olhando para dentro, e só depois disse:
- Vejamos filha... como era a pergunta? –Dana apequenou os olhos, mas depois que compreendeu a artimanha do pai, sorriu e seus olhos se fizeram mais grandes... Ela já o conhecia, e sabia bem que entendera a pergunta de primeiras... Então o que era que ele queria dela? Dana repetiu para si a pergunta no seu interior sem dizer nada ao pai... “Como podemos estar certos de que os nossos Deuses são os verdadeiros...?” E só depois foi que respondeu...
- Ó pai, não se preocupe lá com a pergunta, que já passou...
- Passou? e posso eu saber como foi que passou? –Dana sorri, gosta de que o seu pai lhe pergunte, e assim ela aprender o que sabe...
- Ó pai, você quer saber muitas cousas, mas verá... Olhe, eu penso que o que importa não é se os Deuses são verdadeiros ou não...
- Ah não? Então o que importa filha? –o pai perecia genuinamente surpreendido, e Dana adorava quando aquilo sucedia...
- Não pai, o que importa, o que realmente importa é que sejam “Os Nossos” –disse ela com tom solene, que lhe imprimiu autoridade à sua voz...
- Que sábia é esta minha pequena! –sorriu Brito enquanto botava já a andar de novo para chegar a aldeia onde logo iam começar os festejos...
Os olhos do pai foram-se pousar no horizonte distante, recortando as formas do Grande Laroc, que hoje também vestia de branco; os de Dana acompanhavam os dele, e os dous o sabiam sem precisar de o dizer. A pequena então, com uma mão apegada no lado esquerdo da carga, fechou os seus olhos e por um instante deixou-se guiar enquanto ia imaginando a grande fogueira que hoje irá atestar o céu de muxicas, até lhe pareceu sentir já o recendo da carne assada, com o sabor das areias do sal gordo que hoje mesmo foram procurar, e o som das gaitas e as danças... que o corpo já mesmo pressente... Noite boa... Ao se aproximar da poça, que hoje leva uma cheia que tem de deitar pola borda, sentindo-se o grande barulho do cantar das águas, Dana abriu os olhos, deixou-os correr um bocado polo rego fora, dançando com as ervas que a corrente bambeia, depois ergueu-os e eles voaram de novo até o grande Laroc; ela sentia-se afortunada por ter uns Deuses que ficavam próximos dela, e não andavam a brincar às escondedelas como o Deus de madeira, no que acreditam os coitados dos seus primos...
FIM