Noite de Natal
Há muito tempo, quando mui, mui pequenos, e ainda não chegaram novas de Papá Noel ou de Santa Klaus, nem de bolas e fitas de cores em árvores reluzentes, ou de carros empurrados por veados cheios de presentes que caíam pela chaminé, naquela casa pressentia-se que se achegava o Natal porque por então a mãe não tomava sua sesta de sempre após o jantar, os meninos já não pelejavam, e lá não se ouvia mais que o eco surdo de uma agulha contra a outra quando naqueles dias se passava todo o dia a calcetar.
Mas aquele ano algo mudara, os choros intermitentes de um novo irmão no berço entanto outro, doente, está na sua alcova às escuras com sarampo. Do tecto, pendurando, uma luz vermelha de papel de celofane. Durante todo o ano, o menino estivera a aguardar tão impaciente, e ansioso, aquele Natal, que lhe fizera prometer a sua mãe que, se melhorava um pouco, o levaria com ela à casa do avô. Pois ali ao lado fora onde o ano anterior lhe ajudaram ao homem da tia a adornar o Belém, quando os mandara fora por musgo, nas pedras dos muros da horta, no celeiro, ou nas árvores dos jardins, para pôr entre a areia e as figuras de barro, ao redor dos pastores e os reis, bordejando o papel de prata dos chocolates, que eram rios onde se lavavam e peitavam meninos e mulheres, e bebiam peixes e ovelhas, aqueles rios baixo as pontes que atravessavam, seguindo a estrela polar, os Magos em caminho para o deus menino que ia nascer. Mas agora estava doente, e não poderia ir.
Com toda aquela ansiedade nos olhos, lembrou-lhe à mãe a promessa feita havia uns dias somente, insistindo em que todos menos ele iam estar lá. Soube que chegara o tempo, quando de pronto se escutaram no eco do rádio as vozes dos meninos cantando os números mais os prémios da lotaria com a que todos os anos começava oficialmente o Natal, com o conseguinte mau humor do avô que devera perder muito outra vez, e o rumor ao fundo de aquelas agulhas que indicavam que alguém que não se devia nomear ia faltar uma vez mais. Dous dias mais tarde, na noite de Natal já, a mãe levantava-o da cama, punha-lhe o jaquetão, o cachecol cobrindo o pescoço e a face, as luvas de lã, os sapatões e, ao saírem, a capucha sobre os olhos, indo de mãos dadas escadas abaixo os dous apurando os breves passos que os separavam da casa do avô.
Uma vez chegado, o primeiro a fazer era procurar o tio, que estava com a filha nos braços, a cativa da mesma idade que seu novo irmão. Quando se achegou, puxando-lhe do casaco, perguntara se já fizeram o Belém. Então, sorrindo-lhe, depois de dar-lhe sua única prima à mãe, aquele homem, de bigode tão negro ainda e cabelo encanecido, que o chamava de outra maneira porque, dizia, lhe resultava mais engraçada para o cativo que sempre o fazia rir, aquele homem que um dia ia desaparecer sem que ninguém lhe dissesse nada, colheu-o da mão, levou-o ao comedor, ao mesmo recanto onde tinham montado o nascimento o ano anterior. Ali estavam os rios de chocolate, a estrela de purpurina, o boi mais a mula, o estábulo do menino deus, aquele pesebre de ilusões, os camelos e os três reis sem carruagens, junto com os pastores e as ovelhas, meninos lavando-se no rio, mulheres a se peitarem no espelho de prata de aquelas águas mágicas, tudo aquilo estava lá, tudo, incluída a areia, mas o musgo não.
Foi por isso que o menino perguntou, e o musgo, onde vai? Então, pondo-lhe o dedo índice nos lábios, ssssss, sem mais nada a dizer, o tio com a mão na sua cabeça levou-o através do corredor escuro para a cozinha, onde apanhou uma cadeira, pondo-a diante da porta que dava ao balcão da parte de atrás. De pronto, no tempo de um suspiro, ergueu-o para o alto, e sobre aquela cadeira, encarando-o para os cristais, apagou a luz.
Tudo se fez branco então, o balcão branco, a figueira branca, brancos os telhados das cortes, brancos os muros, a horta branca, branco o celeiro, a terraço branco, mesmo brancas as árvores dos jardins de em frente. Por isso, e porque não estavas, não há, disse. E o menino, sem entender ainda, com os olhos em branco também, arregalados, porque acabava de vê-la pela primeira vez...