O Sobrado
Estava diante daquela casa velha, enorme. Nunca tinha visto uma tão grande. Só em histórias. Na verdade, não acreditava que pudessem existir casas daquele tamanho. Mas ali, diante de mim, erguia-se uma que superava todas as que já vira em livros. Ali seria meu novo lar pelos próximos — quem sabe — quantos anos.
Meu pai havia sido transferido de cidade no meio do ano, por questões de trabalho. Veio antes, com minha mãe, para ajeitar as coisas, e só depois veio me buscar. Durante esse tempo, fiquei com meus avós e continuei os estudos. Os professores foram compreensivos e permitiram que eu adiantasse as atividades. Agora, podia enfim reunir-me com a família. Estava com saudades. Três meses de ausência pesam.
Desci da velha Rural que me trouxe, carregando uma pequena mala com meus pertences, cheia de expectativas por um novo recomeço.
Era uma manhã fria. Eu tremia, mesmo de casaco. Com os dentes trincando, segurei firme minha mala e encarei o portão enorme. Ninguém à vista. O senhor que me trouxe foi avisar meu pai da minha chegada. Isso já estava combinado. Respirei fundo e empurrei o portão. Não foi fácil movê-lo — o metal estava enferrujado, pesado. Anotei mentalmente: azeitar aquelas dobradiças. Empurrei até conseguir abrir espaço suficiente para passar.
Do lado de dentro, um vasto jardim separava o portão da entrada principal do sobrado. Uma trilha de pedras levava a um chafariz central e continuava até as escadarias da entrada. Passei curioso pelo chafariz. Anjos de pedra seguravam jarros que vertiam um filete contínuo de água. Ao redor, um pequeno lago com peixes coloridos. Bancos de madeira surgiam sob as árvores. Perto das escadas, flores — muitas — em ambos os lados. Mamãe deve ter amado isso. Ela adora flores.
Subi os degraus de mármore, contando mentalmente: oito. No topo, virei para olhar o jardim. Era imenso. A casa dos meus avós caberia ali inteira, com folga. Árvores impediam a visão do final da propriedade, dando ao lugar um ar de mistério e imponência. Eu mal podia esperar para explorá-lo.
Voltei-me para a porta. Era gigantesca, dupla, com uma argola de bronze ao centro. Bati. Uma, duas, três vezes. Nada. Encostei o ouvido — silêncio absoluto. Sentei num banco ao lado da entrada. O tempo passou sem que eu notasse. Fui desperto pelo ranger lento da porta.
— Menino! Você está aí desde quando? Por que não bateu?
Me levantei, surpreso. — Bati, sim, senhora. Mas ninguém respondeu...
— Você é o José, filho da patroa? Entre, entre! Estávamos esperando.
A senhora — simpática e sorridente — me abriu passagem.
— Sou Lurdes. Pode me chamar assim. Antônio! Ô menino, venha cá! O José chegou! — voltou-se para mim. — Antônio é um garoto que crio. Anda por aí limpando o jardim. Devia estar por perto.
— Não se preocupe, dona Lurdes. Eu levo minhas coisas.
— Deixe disso, vamos juntos. Se esperarmos por Antônio, escurece. Ele é distraído, mas você vai gostar dele.
Acompanhei-a pela casa. Era imensa. À esquerda, uma sala e, mais ao fundo, um escritório. À direita, mais cômodos e uma segunda sala. À frente, uma escada larga conduzia ao andar superior. Subimos. Contei: vinte e dois degraus. No alto, uma curva suave para a esquerda revelava mais quartos, salas e banheiros. Impressionava a quantidade de cômodos.
Paramos diante de uma porta. Dona Lurdes abriu. — Esse é seu quarto. A varanda dá vista para o quintal. Você vai gostar. Vou preparar um lanche. Depois me encontre na cozinha. Para chegar lá tem uma escada lateral. Você não precisa descer por onde veio. Da varanda do seu quarto você vai conseguir vê-la.
Fiquei sozinho. O quarto era acolhedor. Cama, escrivaninha, armário. A porta da varanda dava vista para o fundo da propriedade: árvores frutíferas, pés de café, uma cisterna, e, ao longe, um telhado escondido. Parecia uma floresta. Fascinante. Fiquei perdido em pensamentos ate que o meu estomago avisou. Hora de come alguma coisa. Busquei com o olhar a referida escada que dona Lurdes tinha mencionado.
Na verdade, não era bem uma escada. Parecia mais uma trilha. Desci pela trilha lateral até a cozinha. Esta, ficava no fim de um corredor, era uma sala ampla, com mesa de madeira ao centro. Fogão a lenha, despensa, moringa, pilão. Quartos menores ao fundo para os empregados. Uma escada estreita levava a uma área proibida. Fiquei sabendo ao perguntar e o acesso amplo ao quintal. Sobre a área proibida dona Lurdes foi taxativa:
— Aqui você não entra — advertiu Lurdes. — Era o porão dos escravos. Agora está lacrado. Ninguém mexe ali.
Aquilo aguçou minha curiosidade. O que se escondia naquele porão? A proibição me chamava a atenção. Queimava de curiosidade. E sem perceber, já maquinava um jeito de explorar. Sentei à mesa, e aguardei o lanche ser servido.
Após o lanche, fui explorar o quintal. Quintal não, floresta isso sim. Antônio apareceu logo depois, com os pés descalços e um sorriso fácil.
— Você é o José? — perguntou.
— Sou sim. E você é o Antônio, né?
— O próprio! Quer ver os bichos?
Seguimos pelos fundos da casa, passando pelos galinheiros, cocheiras vazias, uma pequena horta e o pomar. Antônio falava pelos cotovelos, apontando tudo como um guia experiente.
— Aqui, ó, foi onde caiu um raio e rachou a jabuticabeira. Mas ela voltou a dar fruta. Meu avô dizia que quando a árvore não morre com o raio, é porque tem segredo guardado nela.
— E tem?
— Vai saber. A gente pode cavar um dia desses.
Rimos. A conversa com Antônio era leve, mas cheia de pistas. Ele parecia conhecer cada canto da propriedade. Tinha uma ligação quase mágica com o lugar.
Chegamos perto da mata que começava nos fundos. Havia ali uma sensação diferente. Um silêncio mais espesso, como se as árvores guardassem mais do que sombra.
— Nunca entrou aí? — perguntei.
— Já. Mas é melhor ir só de dia. À noite, a gente escuta uns sons que não são de bicho. Vó Bá fala que é o tempo falando.
— O tempo?
— É. Tipo quando a casa respira. Ela diz que lugar antigo tem lembrança.
Achei bonito. E intrigante. Voltamos em silêncio, cada um com seus pensamentos. Na varanda, Lurdes nos chamou para dentro. Já era fim de tarde. Fomos convidados a ir tomar banho e passar pela inspeção de dona Lurdes.
Até aquele momento, eu não tinha noção de que a convivência com Antônio seria muito mais que especial. Ele não seria apenas um amigo. Ele seria o elo com algo que eu nem imaginava estar por vir.
A noite caiu rápida naquele dia. A casa, tão cheia de vida durante o dia, parecia recolher-se em si quando o sol se punha. Os corredores ficavam mais longos, os estalos nas tábuas do chão mais nítidos, e as sombras... mais espessas. Me impressionou tanto silencio. A penas uma velha coruja dava o ar da graça.
Deitei-me cedo, mas demorei a adormecer. O som do vento batendo nas janelas, o ranger do telhado e um leve farfalhar vindo da mata me mantinham em alerta. Quando finalmente peguei no sono, sonhei com uma escada que descia sem fim, escura, cercada por paredes de pedra. Ao fundo, ouvia uma voz. Uma voz grave, serena, que me chamava por um nome que eu não reconhecia — mas que soava familiar.
Acordei antes do nascer do sol, ainda com a sensação do chamado ressoando nos ouvidos. Levantei e fui até a varanda. O quintal ainda dormia, envolto em névoa leve. Observei a copa das árvores e a cisterna ao longe. Tive a impressão de ver uma luz acesa em meio à mata, mas quando pisquei, já não havia nada.
No café da manhã, comentei sobre o sonho com Antônio.
— Já sonhei com escadas também — disse ele, sem parecer surpreso. — Tem coisa ali embaixo, na parte que Lurdes disse pra não mexer.
— Você já entrou lá?
— Nunca. Mas tem um alçapão no depósito do fundo. Tá trancado. Só que eu achei uma chave uma vez. Guardei. Talvez sirva. Sozinho não quero ir la. Mas com você as coisas são diferentes. Agente espera pelo período da tarde. todos se ocupam la na cozinha ou vão tirar um cochilo. Essa é a hora. Descemos para ver de perto. Se você quiser é claro.
A revelação me pegou de surpresa. Antônio correu até o quarto dele e voltou com uma chave grande, antiga, com o cabo trabalhado. Antônio encontrou a muito tempo atrás. Estava toda suja. Segundo relato foi depois de muitos dias de chuvas. Ate arvores foram arrancadas com os ventos naqueles dias. Em um desses dias, foi ver os estragos causados quando encontro a chave.
— Estava enterrada perto da figueira. Quase chutei sem querer. Achei bonita e guardei.
— E se for a chave do porão?
— Só tem um jeito de descobrir.
Naquela tarde, enquanto os adultos cochilavam ou estavam ocupados, fomos até o depósito. Era um cômodo úmido, cheio de ferramentas, sacos de ração e caixas empilhadas. No canto, quase invisível sob um tapete velho, estava o alçapão.
Puxamos com esforço. As dobradiças rangiam alto, mas cederam. A fechadura era grossa. Antônio encaixou a chave. Girou para um lado, para o outro, com muita dificuldade, até que, em dado momento um clique seco se ouviu e ai, abriu. Nos olhamos com os corações na boca. A testa de Antônio estava suada. E eu, tremulo de expectativa.
Descemos alguns degraus de madeira. O ar era pesado, frio e úmido. Um cheiro antigo, de terra e pedra molhada, tomou conta do ambiente e invadiu nossos sentidos. O espaço era estreito, mas percorrível. Com a luz de uma lamparina velha, vimos nas paredes inscrições feitas à mão. Nomes, datas, símbolos. Bem desgastadas, mas, ainda visíveis.
Antônio passou os dedos sobre um nome: Jafari.
— É ele — disse ele, quase num sussurro.
No fundo do corredor, uma porta de ferro trancada. Acima dela, a palavra “Socorro” gravada na pedra. A mesma palavra que aparecia, depois descobriríamos, na inscrição de uma chave que ainda surgiria.
Saímos de lá sem dizer muito. Estávamos agitados, assustados, fascinados.
Aquilo era mais do que uma passagem escondida. Era o início de algo muito maior. Decidimos ser o nosso segredo. O resto da tarde não houve novidades. A noite chegou rápida e mais uma vez, depois da janta, subi para o quarto alegando estar me adaptando.
Deitei e nem vi a hora que dormi. Estava cansado, mas não só fisicamente. Havia algo dentro de mim, uma inquietação que crescia. O porão, os nomes nas paredes, a inscrição misteriosa... tudo parecia se costurar com os meus sonhos, como se o que acontecia durante o sono e o que vivíamos durante o dia estivessem ligados por fios invisíveis.
Naquela noite, sonhei outra vez. Eu caminhava por um campo escuro, envolto em neblina. A cada passo, vozes sussurravam palavras que não compreendia. Ao fundo, uma figura surgiu entre a bruma: um homem negro, de traços fortes, segurando um bastão entalhado. Seus olhos me encaravam com firmeza e ternura.
— José — disse ele. — O caminho está à sua frente. Não temas. Escute.
Acordei com o coração acelerado. Eram quase três da manhã. Sentei na cama, respirei fundo e fui até a varanda. E lá estava: a luz na mata. Fraca, mas firme. Como uma lamparina tremeluzente entre as árvores. Ara minha sorte, o Antônio dormia próximo. Em um dos quartos próximos à cozinha. Chamei Antônio com um assobio curto, nosso sinal. Havíamos combinado para eventuais necessidades, um sinal que não despertasse a curiosidade dos demais.
Minutos depois, ele apareceu com a mesma expressão de quem já esperava por isso.
— Você viu também, né? A luz...
— Vi — respondi. — E sonhei com ele de novo.
— Com Jafari? Perguntou Antônio curioso.
Assenti.
Pegamos uma lamparina próxima, nos calçamos com pressa e saímos pelos fundos, atravessando o jardim até alcançar a trilha da mata. A luz se movia devagar, como se nos esperasse. Quanto mais nos aproximávamos, mais claro o caminho ficava, como se a própria floresta abrisse passagem.
Chegamos a uma clareira onde uma figueira imensa crescia solitária. No chão, entre raízes expostas, um grande buraco havia se aberto e, de dentro, algo brilhava. Cavamos com as mãos para alarga-lo e logo encontramos uma corrente presa a uma argola de ferro. Puxamos com cuidado. A corrente vinha presa a uma pequena caixa de metal — velha, mas resistente. Abrimos sem muitas dificuldades.
Dentro, uma chave.
Mas não era uma chave comum. Era de prata, com entalhes delicados em espiral e a palavra “Socorro” gravada na base. Antônio ficou em silêncio, olhando para ela como se estivesse diante de algo sagrado.
— É a mesma palavra do porão.
— A mesma dos sonhos — completei.
Era o nosso grande segredo. E também, o ponto sem retorno. A misteriosa luz, também havia sumido. Aquilo nos provocava arrepios.
O sobrado falava. E nós, enfim, começávamos a escutá-lo. Retornamos para os nossos quartos em silencio.
No outro dia, após o café da manhã, voltamos ao depósito. A chave de prata parecia queimar em minha mão, como se pulsasse com vontade própria. Antônio estava ainda mais calado do que de costume. Talvez soubesse, no fundo, que aquilo tudo era maior do que nós.
Descemos com cautela. A madeira da escada rangeu como se protestasse. No fim do corredor, a porta de ferro nos esperava. A mesma inscrição: “Socorro”. A chave tremia levemente quando me aproximei da fechadura. Era como se estivesse ansiosa para cumprir seu destino.
Girei com cuidado. O mecanismo cedeu com um estalo metálico, seco. A porta se abriu lentamente, revelando um novo espaço: um salão estreito, de paredes de pedra, com marcas de fuligem e restos de lamparinas antigas. Era como entrar numa cápsula do tempo.
No chão, uma trilha de pegadas apagadas seguia até uma parede ao fundo. Havia ali uma pequena estante com livros danificados pela umidade e uma caixa de madeira com dobradiças corroídas. Antônio abriu a tampa com um pedaço de ferro. Dentro, papéis enrolados, pedaços de tecido e... cartas.
Peguei uma delas. A tinta estava esmaecida, mas ainda legível:
“A noite se aproxima. A lua cheia será o nosso guia. Jafari liderará os primeiros. Se não voltarmos, que essa carta sirva de memória. Que alguém, um dia, leia e compreenda.”
Assinava: Pablo.
Outras cartas traziam nomes, rotas, datas. Eram registros de fugas, de resistências, de alianças silenciosas. Havia até desenhos do sobrado e do túnel — e anotações em outra caligrafia, mais firme, talvez de Jafari.
— Eles estavam organizando tudo — sussurrou Antônio. — Tinham um plano.
— E foi deixado para trás — respondi. — Ou talvez, deixado para ser reencontrado.
Voltamos para a superfície com os papéis guardados numa mochila velha. A casa parecia respirar diferente naquele dia. Como se tivesse liberado um segredo e estivesse, agora, aliviada.
À noite, sonhei outra vez. Mas dessa vez, não era um chamado. Era uma despedida. Jafari me olhava nos olhos e dizia apenas:
— Agora, é com você.
No dia seguinte, um domingo morno e sem vento, pedi permissão para visitar o pequeno cemitério da fazenda. Mãe Bá me olhou com olhos fundos e disse apenas:
— Vá com respeito.
Fui com Antônio. O cemitério ficava nos fundos da mata, escondido por entre árvores altas e cipós. Era um campo irregular, cercado por um muro de pedras empilhadas, coberto de musgo. Os túmulos eram simples, muitos sem nome, apenas pedras lisas fincadas no chão. Outros, mais antigos, tinham cruzes tortas ou placas corroídas pelo tempo.
Caminhamos em silêncio. Antônio me mostrou uma lápide em especial. Nela se lia: Fátima – guardiã da memória. Ao lado, uma cruz menor de Adélia, sua ajudante e confidente, com a inscrição “Socorro – que a sua liberdade alcance os filhos do amanhã”.
— Aqui estão os nomes das cartas — sussurrei.
— Estão todos aqui — respondeu Antônio. — E talvez ainda falem.
Ficamos um tempo ali, sentados em frente às sepulturas, como se aguardássemos algo. E, de certo modo, recebemos.
Um vento frio soprou de repente, agitando as folhas. Um som leve, como se alguém passasse os dedos sobre as pedras. E então ouvimos. Era sutil, quase inaudível, mas nítido o bastante para nos arrepiar: um canto. Um lamento melódico vindo da mata, ou talvez de dentro da terra.
Não era assustador. Era triste. Era belo. Era um eco do passado pedindo que não fosse esquecido. .
Voltamos ao sobrado com os olhos cheios e o coração apertado. Aquilo não era só história. Era dor. Era fé. Era resistência.
Naquela noite, revisamos as cartas encontradas com mais cuidado. Muitas delas estavam endereçadas a familiares. Outras eram instruções, conselhos, promessas. Descobrimos que Pablo não apenas ajudava nas fugas — ele registrava tudo, numa tentativa de deixar um legado escrito. Um testemunho de que o sofrimento vivido ali não seria em vão.
E o mais incrível: em uma das cartas, ele se dirigia a um descendente futuro.
“Se estas palavras encontrarem teus olhos, saiba que herdaste não uma casa, mas uma missão. Que tua vida seja ponte entre o silêncio e a verdade.”
— Ele sabia — murmurei. — Sabia que alguém da linhagem dele voltaria um dia.
Antônio apenas assentiu. E juntos, decidimos que era hora de descer ainda mais fundo.
O sobrado nos preparava para algo maior. E nós, finalmente, estávamos prontos.
Ali, o mistério do sobrado nos engoliria por completo. Voltamos ao ponto de partida.
Descemos com o cuidado de quem pisa num segredo antigo. A escada, de madeira gasta, gemia a cada passo, como se resistisse a nos conduzir. O ar era mais frio ali embaixo, carregado de mofo e silêncio. Antônio ia à frente com o candeeiro. Eu vinha logo atrás, tentando não pensar nos ecos que se multiplicavam em cada parede.
Ao final da escada, encontramos um cômodo pequeno, abafado, forrado de prateleiras com objetos antigos: livros embolorados, molduras quebradas, caixas fechadas. Era como um porão da memória — uma cápsula do tempo. E no centro, coberta por um lençol empoeirado, havia uma arca de madeira escura, com trancas já corroídas.
Puxamos com esforço. Ao erguer a tampa, um som seco cortou o ar. Lá dentro, cartas. Muitas outras cartas. Todas assinadas por Pablo. Nomes familiares apareciam nos papéis: Fátima, Socorro, Jafari. Meu coração acelerou. Eu já ouvira esses nomes... nos sonhos. E agora, ali estavam, registrados em caligrafia firme, como se quisessem ser lembrados.
Antônio abriu uma carta ao acaso. Lemos em silêncio. Era um desabafo. Pablo narrava a angústia de ver os trabalhadores da fazenda sendo maltratados. Citava o pai com rancor, e Jafari com afeição. Em outro trecho, havia planos: “O túnel está quase pronto. Quando a lua cheia iluminar o vale, partiremos.”
Um túnel? Olhei para as paredes. Seria possível que houvesse mesmo uma passagem subterrânea? Examinamos o chão e os rodapés. No canto oposto, atrás de um armário tombado, encontramos uma grade de ferro solta, cobrindo uma abertura no chão. Baixa, mas acessível.
A chama do candeeiro tremulava. Trocamos um olhar. Sabíamos que não estávamos apenas investigando uma casa antiga. Estávamos tocando em uma ferida — e talvez reescrevendo uma história que, até então, permanecera enterrada.
Guardamos as cartas na mochila junto as outras. Decidimos não entrar no túnel naquela noite. Precisávamos nos preparar. Mapear o que sabíamos, reunir informações e, talvez, buscar ajuda — sem levantar suspeitas. O sobrado estava revelando seus segredos, mas também nos testava. A chave abrira mais do que uma porta: abrira o passado.
Subimos, silenciosos, e trancamos tudo como encontramos. A casa parecia ouvir. Ou talvez, pela primeira vez em muito tempo, estivesse contando sua própria história.
Na noite seguinte, voltamos. Tínhamos cordas, uma lamparina antiga e o mesmo espírito inquieto. Antônio desceu primeiro. Eu o segui. O túnel era estreito, escavado em barro cru e pedras, com trechos reforçados por madeiras envelhecidas. O cheiro de terra úmida e história antiga era forte. O silêncio era quase sagrado.
Caminhamos por minutos que pareciam horas. À medida que avançávamos, víamos marcas nas paredes — desenhos simples, talvez feitos por crianças, ou mensagens deixadas por quem passou por ali. Símbolos, nomes riscados com carvão, frases incompletas: “A liberdade está...”, “Para Socorro...”, “Jafari vive...”.
Chegamos a uma bifurcação. À esquerda, o túnel parecia desmoronado. À direita, continuava. Escolhemos seguir.
No fim do caminho, havia uma câmara maior, iluminada pela luz fraca que passava por uma rachadura no teto. No centro, um altar rudimentar com objetos deixados ali: um rosário, um livro de orações, uma fita vermelha desbotada e, encostado numa das paredes, um bastão esculpido com símbolos africanos.
Pendurado em um gancho de ferro, um pequeno retrato oval: Pablo e Jafari lado a lado. Estavam sorrindo. A imagem, em tom sépia, desafiava o tempo. Era como se nos olhassem de volta.
Antônio ajoelhou-se. Ficamos em silêncio. Havia ali uma paz estranha, como se estivéssemos interrompendo algo sagrado. Peguei o bastão. Era pesado. Senti um arrepio. Não sabíamos o que fazer com aquilo, mas algo dizia que havíamos chegado ao coração do mistério.
Naquele instante, uma corrente de ar soprou pelas frestas. A chama do candeeiro oscilou. E com ela, uma sensação: de que não estávamos sozinhos. Olhando mais atentamente no recinto outra caixa se fazia presente, em um dos cantos, quase que imperceptível. Sobre uma pequena saliência de pedra, que fazia o papel de uma pequena cômoda, uma chave.
Com as mãos trêmulas, peguei a chave e encaixei na fechadura da caixa. Um clique seco e a tampa se abriu lentamente, como se despertasse de um sono antigo. Dentro, havia um caderno de couro envelhecido, com a palavra “Testemunho” gravada à mão. Ao lado dele, um embrulho de linho desgastado pelo tempo e um pequeno baú de madeira clara, menor e com fechadura já rompida.
Abrimos o caderno primeiro. Era um diário. A caligrafia era de Pablo. As primeiras páginas descreviam o cotidiano na fazenda: as tensões com o pai, os castigos dados aos escravizados, os planos de fuga, a dor de ver o sofrimento diário daqueles com quem ele convivia. Com o passar das páginas, os relatos tornavam-se mais íntimos. Revelavam um plano ousado: libertar um grupo de trabalhadores em uma noite de lua cheia, usando o túnel secreto que ele e Jafari um amigo de infância, escavaram em segredo.
— Ele sabia que seria arriscado — disse Antônio, lendo por cima do meu ombro. — Mas preferiu arriscar tudo pela liberdade dos outros.
Na parte final do diário, Pablo descrevia com emoção o nascimento de um menino, fruto do amor com uma mulher livre de nome Adélia, de origem africana, protegida por dona Fátima, sua mãe. O nome da criança era José. Um nome que ele dizia carregar em si o significado de renascimento e esperança.
Minhas mãos suavam. Aquela história não era mais só do sobrado. Era minha.
No embrulho de linho, encontramos um pano bordado com símbolos africanos e uma pequena escultura em madeira, representando dois homens de mãos dadas diante de uma plantação de café. Jafari e Pablo. Juntos até o fim.
A última caixa continha apenas uma folha de papel, já amarelada, com carimbo oficial: era o atestado de libertação de uma mulher chamada Adélia, concedido por ordem de Pablo, dias antes de sua morte. No rodapé, uma assinatura familiar. Adélia era a mulher que criou José meu trisavô.
Antônio colocou a mão no meu ombro. Estávamos em silêncio, mas havia uma tempestade dentro de mim. Aquela terra, aquele sobrado, aquele túnel… tudo fazia parte da minha história. A história de um menino que sonhava com o passado porque era chamado por ele. Que tinha o mesmo nome de seu ancestral.
Voltamos à casa com reverência. Enterramos novamente a caixa, mas levamos o diário e um medalhão que encontramos no baú conosco. Naquela noite, na varanda, sob a luz suave da lamparina, contamos tudo que havíamos descoberto. Houve espanto, reclamações, lágrimas, abraços. Mas acima de tudo, houve compreensão.
No dia seguinte, com a permissão da direção da empresa, reunimos novamente todos da casa. Mãe Bá, dona Lurdes, Luanda que auxiliava dona Bá, seu Lourenço historiador da cidade, meus pais que haviam chegado e até alguns vizinhos da vila. Antônio ao meu lado, segurando o diário. Contamos a história mais uma vez. Não como lenda, mas como verdade. Ali ficamos sabendo que há muitos anos atrás uma rebelião de escravos ocorrera na propriedade, liderada pelo filho do dono da propriedade. Nas lutas, o próprio pai feriu de morte o filho Pablo. Este, por sua vez morreu nas mãos do melhor amigo de Pablo, o Jafari. Dona Fatima enlouquecera morrendo em seguida e sendo enterrada no cemitério na propriedade. Dizem que ela sabia das fugas e do que o filho fazia. A propriedade ficou nas mãos de um administrador nomeado pela família. Ao termino das narrativas, descemos ao porão, e lá deixamos o medalhão que era o brasão da família, e que estava sumido desde a revolta dos escravos e o diário no altar, junto ao retrato, como homenagem.
O sobrado não era só uma casa antiga. Era um monumento vivo de resistência, coragem e memória. E agora, com o passado enfim revelado, era também um novo começo.
Fiquei ali, olhando o altar, o retrato, e pensei: algumas histórias nos escolhem antes mesmo de nascermos. E cabe a nós escutá-las.