Dançando com o Diabo – A lenda do Clube Floresta
Dançando com o Diabo – A lenda do Clube Floresta
(Baseado em uma lenda urbana local)
Se, uma vez obedecidos os preceitos cristãos, o período da Quaresma deveria ser dedicado à reflexão e à penitência. Isso significaria deixar de lado os prazeres mundanos e pensar no sofrimento de um homem chamado Jesus Cristo, um messias que teria estado entre nós com a missão de nos salvar de nossos próprios pecados. Hábitos como alimentar-se de carne são, nesse período, geralmente evitados. Festas também são deixadas de lado. Mas é claro que, mesmo entre os católicos, há muita gente que não dá importância a tais ritos e tradições.
O Clube Floresta era um daqueles poucos, nessa pequena cidade do interior, que não interrompia as suas atividades durante a Quaresma. Possuía uma clientela assídua e seus bailes costumavam ser bastante agitados. Alegria, brigas, namoros... Elementos naturais de um clube popular. Convém lembrar a sua localização atípica: Enquanto outros clubes ficavam próximos ao centro da cidade, o Clube Floresta funcionava em um prédio às beiras do Rio Iguaçu, quase embaixo da antiga ponte férrea, que dava acesso ao Bairro São Cristóvão. Em seu entorno, apenas a vegetação das margens do rio e algumas poucas casas.
Era sexta-feira. O dia tinha sido frio e cinzento, com nuvens pesadas no céu. Mas nada disso tirava o ímpeto dos frequentadores de seus agitados bailes. A noite seguia animada. Havia quem se excedesse na bebida, assim como quem procurasse por um par romântico. Havia, também, quem somente quisesse dançar e se divertir. Tudo dentro da normalidade a que todos estavam muito e bem acostumados.
Não se é possível precisar exatamente que horas seriam quando ele chegou. O fato é que, assim que entrou, chamou a atenção dos frequentadores do baile, principalmente do público feminino. Todos que lá estavam e o viram dizem que seria um homem muito bonito, com uma estatura altiva, imperativa. O rosto, traços marcantes e olhos profundos. Olhos azuis. Um nariz caprichosamente desenhado e cabelos loiros que emolduravam o belo rosto. Além da beleza física, vestia-se elegantemente. Sobretudo, sapatos, chapéu. Camisa de seda. Até gravata. Tudo preto. Lembrava as charmosas personagens vividas por Clark Gable no cinema. Bastante óbvio que acabou atraindo os olhares das mulheres. Mas atraiu, também, a inveja dos homens. Não demorou muito para que a primeira dama com ele fosse dançar. O casal rodopiava pelo salão. Ele não era apenas aparência. Tinha também o conhecimento da arte da dança. O frenesi causado pela sua presença podia ser visto nos rostos de todos naquela noite, assim como pode ser lembrado até os dias de hoje, como nesse texto, por exemplo.
Testemunhas sempre disseram que houve fila de mulheres para com ele dançar. Uma, duas, três. Logo, o belo jovem dançava com a sétima garota, enquanto os homens presentes sentiam total desconforto pela, digamos, concorrência bastante desigual.
Enquanto o casal rodopia pelo salão, sendo alvo de olhares de admiração, desejo e inveja, a garota olha, preocupada, para o relógio. Como no conto de fadas, havia recebido a ordem de voltar para casa à meia-noite. Já considerava um grande feito ter convencido os pais, religiosos, a ir ao baile em plena Quaresma. Ter o limite de tempo era uma condição que aceitara sem pestanejar. Os ponteiros indicavam o momento de partir. Deveria, naquele momento, retirar-se... Era o combinado. Mas como se, naquele instante, era o centro das atenções, dançando com o cobiçado estranho? Decidiu ignorar o acordo e prosseguir. O belo homem dançava maravilhosamente enquanto a fitava com seus olhos profundos e sedutores. Subitamente, ao colocar a mão em sua cintura, mais às costas, ela sente algo estranho, algo que não deveria lá estar. Mesmo com a confusão causada pelos característicos jogos de luzes, logo ela percebe haver, sob suas finas vestes, algo que se assemelhava a uma cauda de animal. Quando tem certeza do que vê, recua dois ou três passos, e grita, histérica. Talvez seu grito tenha sido ouvido por poucos, visto a música alta que embalava os casais pelo salão. Mas o seu movimento fora percebido e chamou a atenção dos demais presentes.
O inusitado dançarino, então, mostra-se confuso com a reação da sua parceira de dança, e deixa cair o chapéu. Estupefatas, as pessoas mais próximas conseguem ver, em sua cabeça, dois chifres. Exatamente como seriam os chifres de demônios, retratados em tantas imagens bíblicas que, muitas daquelas pessoas, bem conheciam.
O pânico se instaura. Gritos e correria. Todos tentam afastar-se da bizarra figura que, naquele momento, exibe chifres e uma cauda. Com a confusão, o som é interrompido e os gritos se tornam audíveis. Histeria coletiva. O diabo teria visitado o clube e dançava com algumas garotas, até ser denunciado pela sua cauda diabólica e seus chifres. Ninguém se atrevia a investir contra a criatura. Muitos ali talvez até tenham pensado em tratar-se de alguma brincadeira, mas o fato é que, antes do estranho retirar-se do salão, várias pessoas conseguiram ainda ver que, onde antes havia elegantes sapatos, agora mostravam-se um par de cascos, como de um cavalo, ou outro animal com as mesmas características.
O grande grupo ruma em direção à saída de emergência, mesma saída, aliás, tomada pelo estranho mas, quando se há visão do ambiente externo ao clube, tudo o que pode ser visto são as árvores que margeiam o rio, em meio à espessa neblina. Alguns cães latem ao longe. Do outro lado da rua, uma luz é acesa e alguém, da janela, berra imprecações na esperança de que, com isso, pudesse ter algum sossego e um pouco de sono tranquilo.
Hoje, o prédio em que o Clube Floresta tantos bailes promoveu cede seu amplo espaço a uma igreja evangélica. Ironias do destino? Ninguém sabe. O clube ainda funcionou por mais algum tempo, porém encerrou atividades. É sabido de todos que nunca mais fora o mesmo desde que o diabo resolveu, naquela quaresma, sair para dançar. O fato é que onde, naquela sexta-feira, o diabo compareceu para divertir-se e seduzir garotas, hoje promovem-se orações e fé.
As neblinas das margens iguaçuanas escondem mistérios. A lenda do diabo do Clube Floresta, contada há cerca de trinta anos, é um deles. Uma Cinderella às avessas. É claro que muitos se mantêm céticos, colocando sobre um povo supersticioso a responsabilidade pelo nascimento de tal lenda urbana. Mas é fato que, ali, algo acontecera naquela noite. O pânico experimentado por tantas pessoas indica que não se trata tão e puramente de uma invenção. Não se trata de uma ou duas pessoas contando a mesma versão de uma história de horror. São dezenas delas.