CONTO | Necrotério

O chamado à consciência foi como um pesadelo: ele afastou a coberta e viu a enorme escolopendra que tinha as suas presas cravadas na carne do homem, à altura do rim esquerdo. À visão do artrópode o sujeito fez um ligeiro movimento instintivo, mas só conseguiu despertar a mulher. “O que houve?”, perguntou ela, “Você está atrasado, querido?”. Em resposta, o homem passou as mãos sobre o rosto, afastou de vez a coberta, sentou-se na cama, calçou os chinelos e ficou algum tempo olhando para o ecrã do celular, sobre o criado-mudo, como se pressentisse que o despertador fosse soar em instantes. Mas isso não aconteceu.

— “Lau?”.

— “Estou com dor!”.

— “Onde, querido, é intensa?”.

— “Não”.

Porém, bastou pôr-se de pé para que ele se visse tentado à autocontradição: a dor que sentia no lado era aguda. Desse modo, com a mão direita sobre o lado esquerdo do abdômen, o sujeito caminhou, ligeiramente curvado, até a poltrona, na sala. A mulher veio logo atrás:

— “Lau, você não está bem!”.

— “Besteira! É só uma dorzinha”.

— “Onde, deixa eu ver?”.

— “É aqui no lado esquerdo, mas não aperta”.

— “Ainda é cedo, mas é melhor você não ir trabalhar hoje, meu bem”.

— “Ai!”.

— “Desculpe”.

— “Eu falei p’ra você não apertar. E outra coisa, olha: eu não posso faltar hoje, tenho de aplicar prova”.

— “Não, Lau! Vou ver se nós temos algum analgésico”.

Na universidade na qual lecionava, no Paraná, o professor Lau de Oliveira Lopez ocupava a cátedra de Literatura Portuguesa. Homem vocacionado. A propósito, seu amor às letras fora o que, efetivamente, levara-o, na juventude, a passar longos períodos em Portugal. Seu sonho era ingressar para o curso de Letras em Coimbra; no entanto, sua fase lusitana terminou como empregado na livraria Lello, na cidade do Porto. Não durou, contudo, seus tempos de atendente de livraria: o patrão não aceitou seus pedidos de desculpas. Pudera. O jovem Lau, inexperiente e maravilhado com as seções de História e de Autores Portugueses, furtou um par de livros. Hoje, entrar na Lello, nem como turista.

No dia derradeiro, à saída da livraria – n.º 144 da Rua das Carmelitas, centro histórico do Porto –, o recém-demitido brasileiro sofreu outra humilhação: chovia, mas não fora o chão molhado que o fizera cair; fora o peso da vergonha. Como se quisesse chutar para longe alguma recriminação moral, num movimento desengonçado — e impensado –, eis que Lau trupicou um pé no outro. Sua queda foi feia; nem um pouco heroica. Ele deu com o lado esquerdo do corpo na quina do pilar anti-estacionamento.

— “Ai!”.

— “O que foi, querido, a dor aumentou?”.

— “Foi só uma fisgada aqui no lado esquerdo”.

— “Lau, estou preocupada com você; não é melhor irmos ao médico?”.

— “Não se preocupe, já está passando, querida; você sabe que eu odeio médicos”.

— “Olha, nós temos Dipirona, Paracetamol e Buscopan”.

— “Manda qualquer um!”.

Enquanto bebericava doses amargas de Dipirona, Lau mantinha seus olhos rútilos fixos na reprodução do quadro “O Corpo Morto de Christo”, de Hans Holbein. Na cabeça, um pensamento fixo: “Quanto mais amargo, melhor o remédio”.

Seu apartamento não era amplo, de maneira que, sentado na poltrona, na sala, era possível ver a silhueta do celular sobre o criado-mudo, no quarto. “Quando despertar, só precisarei vestir a calça, a camisa e a jaqueta. Pretendo usar os mesmos sapatos de ontem, quando fui à Missa”. Lau perdia-se em pensamentos como esse, quando sua mulher se aproximou:

— “Meu bem?”.

— “Hã?”.

— “Não é melhor voltar para a cama?”.

— “Não. Aqui me sinto mais confortável. Tenho certeza de que vou melhorar”.

— “Também tenho certeza disso, querido”.

Ela tentou massagear-lhe a região dolorosa, mas o homem, por mais que tenha se esforçado, não conseguiu disfarçar o incômodo — o horror: seu lado esquerdo pulsava sob o mínimo toque, como um músculo que se contorce antes de relaxar. A bem da verdade, o professor era muito mais forte do que se pensava.

— “É melhor parar”.

— “Tudo bem. Você parece que está com febre”.

— “Acho que sim”.

— “Agora esqueça, você não vai trabalhar”.

— “Eu não entendo. Ontem, na Igreja, eu estava tão bem”.

— “Deve ter sido aquele pastel”.

— “Duvido. Estava delicioso!”.

Tentar rir ou, pior, entregar-se a uma gargalhada incipiente produzia o mesmo efeito da massagem.

— “Vamos parar, que você precisa descansar”.

— “Vou dormir aqui, ao seu lado”.

Ela foi ao quarto, apanhou o necessário: o travesseiro e o cobertor. Voltou, jogou tudo sobre o sofá adjacente e, ato contínuo, sentou-se sobre a trouxa, encarando o marido:

— “Falou com ele?”.

— “O padre João estava ocupado, falarei com ele na terça-feira; deixei avisado na secretaria”.

— “Não se preocupe, meu bem; eu já sei o que dizer”.

— “É uma confissão geral, Lau; e você está se preparando para isso há 3 meses”.

— “Não se preocupe, meu amor, eu já sei o que devo dizer. Já sei. Já sei”.

— “Para com isso”.

— “Com o quê?”.

— “Com esse sorriso. Para, Lau!”.

— “Eu amo você. Já decidi: nas férias de verão vamos tomar vinho do Porto no Porto. O que acha?”.

— “Eu acho que, primeiro, você tem de melhorar, homem”.

O despertador soou às 6 horas daquela manhã. Ao se levantar do sofá, Lau percebeu que sua mulher não estava. Entrou no quarto a fim de desligar o alarme e descobrir se acertara ao intuir que ela estaria na cama: porém, antes de clicar na aba do aplicativo Despertador, na tela do smartfone, o sistema entrou em modo soneca, que duraria 15 minutos. Ato contínuo: “Ué!, a cama está vazia”. Põe a mão no lado esquerdo do abdômen: sem dor, a crise dera uma trégua. “Ana! Ana!”. Caminha até a cozinha, onde encontra sua esposa caída sobre o tapete de vinil, ao pé da máquina de lavar louças. Ao lado de sua cabeça, havia uma poça de vômito; e ela estava banhada em suor. No quarto, o despertador dispara novamente.

No hospital, Lau e sua mulher ficaram em alas distintas: Lau foi submetido a uma cirurgia para retirar as pedras nos rins; e Ana, a uma angioplastia de emergência — mas sem sucesso. Naquela tarde, mesmo em resguardo, Lau confessou-se com o padre João, ele parecia recuperar-se rapidamente. No momento em que o sacerdote, despedindo-se, abria a porta do quarto, Lau pôde ver, de relance, o enfermeiro que empurrava uma maca. O professor não sabia, mas aquele corpo incógnito sobre a maca era o de Ana, a caminho do necrotério.

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