O SEGREDO DO BURRO BRANCO
O povoado de São Bentinho do Norte não era dado a grandes acontecimentos, mas todo domingo tinha sua agitação. O dia começava na missa das oito, com os homens bem alinhados de camisa abotoada e as mulheres de saia rodada e lenço na cabeça. Depois do almoço, a animação era no terreiro grande da fazenda de Seu Agostinho, onde acontecia o famoso Desafio do Burro Bravo. Era a hora em que os moços provavam coragem, montando em bestas brabas, enquanto as moças ficavam espiando de banda, procurando um cabra que fosse valente o bastante pra encarar tanto a montaria quanto um futuro casamento.
Só que naquele domingo o desafio vinha diferente. O burro da vez não era qualquer um. Brancoso, chamavam ele. Um bicho de pelo alvo, sem uma única mancha, os olhos amarelados como ouro de aluvião. Ninguém sabia de onde tinha saído, nem quem era o dono. Apareceu na beira do Riacho do Macambira, sem marca no lombo, e sumiu e apareceu tantas vezes que o povo começou a cochichar que não era bicho deste mundo.
Seu Agostinho, que gostava de uma festa, mandou cercar o burro no curral. Mas o vaqueiro que tentou primeiro — Doca Véio, que laçava até vento — foi jogado longe antes de o laço sequer tocar no lombo da besta. Quando os outros foram tentar, a mesma coisa. No outro dia, porém, Brancoso estava parado, quietinho no meio do curral, como se tivesse se entregado por conta própria.
Isso fez o povo resmungar. Bicho que se entrega sozinho, não presta.
O terreiro estava cheio. As raparigas, todas bem vestidas, fingiam que estavam lá só pra ver a disputa, mas era um olho no burro e outro nos rapazes. As velhas comadres, sentadas em tamboretes, faziam o sinal da cruz cada vez que olhavam pro bicho.
No meio da confusão, dois cabras não desgrudavam os olhos um do outro: Tonho do Félix e Zé Crispim. O povo já tava acostumado com as rusgas dos dois, tudo por causa de Anabela, a moça mais bonita da vila, filha de Seu Lico. A menina tinha olhos que brilhavam feito água de cacimba nova e um sorriso que fazia até sabiá perder a cantoria.
Os dois cabras disputavam a atenção dela fazia tempo, mas ela, esperta que só, gostava era da briga. E naquele dia, jogou mais lenha na fogueira:
— Quem montar esse burro e não cair, ganha um beijo meu! — disse, rindo, ajeitando os cabelos.
As moças todas deram gritinhos. O terreiro inteiro parou.
Tonho do Félix cerrou os punhos. Zé Crispim sorriu de canto. A disputa agora era de verdade.
O primeiro a tentar foi Cabo Firmino, homem de mão grossa, pele curtida de sol e um nome que metia respeito. O cabra subiu no lombo, trancou as pernas, segurou firme. Brancoso nem se mexeu.
O povo murmurou. Será que o burro era mansinho, afinal?
Aí o bicho relinchou, jogou o pescoço pra trás, empinou feito cavalo de batalha e disparou numa carreira doida, jogando Firmino longe. O homem caiu dentro do chiqueiro das cabras, que berraram junto com ele.
Vieram outros. Nenhum ficava em cima mais do que cinco segundos.
Até que chegou a vez de Zé Crispim.
Ele cuspiu de lado, ajeitou o chapéu e subiu num pulo só. Brancoso, de novo, não se moveu.
O povo prendeu o fôlego.
Vinte segundos.
Trinta.
Quarenta!
Zé Crispim sorriu pra Anabela, já se achando dono da aposta. Mas foi nesse instante que o olhar do burro mudou.
O bicho retesou o corpo, trincou o pescoço e, num pulo de assombração, disparou direto pra cerca!
Zé Crispim tentou saltar antes do choque, mas não teve tempo. O burro se jogou contra as tábuas de madeira e ele foi lançado feito um saco de farinha.
Silêncio no terreiro.
Seu Agostinho correu até o rapaz.
— Tá vivo? — perguntou Tonho do Félix, com o rosto tenso.
Zé Crispim respirava. Mas quando o povo viu os olhos dele… ficaram gelados.
Tavam brancos como leite.
Foi quando Brancoso relinchou alto, virou-se e saiu num galope fulminante, sumindo no meio da caatinga.
E então… Zé Crispim acordou.
Mas não era mais Zé Crispim.
O povo recuou. O cabra abriu a boca, tentou falar, mas o que saiu foi uma voz que não era dele.
— Onde tô?
O sotaque era outro. O jeito de falar, antigo.
Tonho do Félix franziu a testa.
Padre Benício, que até então só observava, empalideceu.
— Santo Deus… É a voz de João Inácio.
O nome ecoou no terreiro.
João Inácio.
Vaqueiro sumido havia vinte anos. Desapareceu depois de montar num burro branco e nunca mais voltou.
Agora, ali estava Zé Crispim, mas com outra alma dentro, olhando para todos sem reconhecer ninguém.
— Cadê meu cavalo? — perguntou ele, com os olhos esquisitos.
O povo estremeceu.
As mulheres correram pra trás dos homens.
Tonho segurou o braço de Anabela.
Foi então que o grito de uma velha cortou o ar:
— Isso é coisa do outro mundo!
A confusão se instalou. Uns saíram capando o gato, outros se ajoelharam rezando. Seu Agostinho, pálido, murmurou:
— João Inácio voltou.
Naquela noite, ninguém dormiu. O que restou de Zé Crispim vagou pelas ruas, perguntando onde estava seu cavalo. Mas quando o sol raiou… ele sumiu.
Nunca mais foi visto.
E dizem que, em noites sem lua, um burro branco pode ser visto pastando na beira do Riacho do Macambira. Quem escuta bem, no silêncio da noite, ouve um murmúrio vindo do vento:
— Cadê meu cavalo?