A DESPEDIDA DE PEDRO PIOTRAVIN

 

 

 

Quarto Ato

 

 

 

Sob o céu a voz ressoa, anunciando a decisão,

enquanto o tempo ecoa o milagre em criação.

Quando a luz vence o abismo, a justiça se revela.

Cessa o despotismo, a verdade se faz bela.

 

 

 

O Testemunho

 

 

 

Na manhã derradeira, nuvens sombrias assomavam-se sobre a colina de Wawel, como uma gigantesca cortina de algodão negro. Saindo da treva nebulosa, curiosos vinham do burgo em ondas e aglomeravam-se defronte aos portões do Grande Salão, todos aguardando as badaladas dos sinos que anunciariam a reabertura do Tribunal. Era um acontecimento que poucas vezes se vira naquelas bandas: a humilhação de um Bispo, a destruição de um Duque. Ressoavam conversas ansiosas entre os grupos. Os mais afoitos celebravam a ruína com gargalhadas cruéis e apostas debochadas.

 

O cenário era aterrador, mas, dentre os presentes, estava Pavel; embora as olheiras denunciassem a noite caótica, os lábios continham uma satisfação oculta que ninguém ali decifrava. O bardo o tinha em seu encalço, indefectível com sua viola. Desta feita, compunha canções que o vulgo escutava com ouvidos moucos, pois também não as entendia:

 

Esperam o pior,

mas desprezam os sinais.

Saibam que o Ser Maior

já preparou os finais!

 

Até que chegou Tomaz. Imediatamente, o irmão foi ter com ele, os braços estendidos em euforia.

 

– Irmão, não acreditarás no que aconteceu!

 

Contudo, tal qual uma porta que se fecha abruptamente, a recepção foi gélida. Tomaz mirou-o com uma sobrancelha arqueada, a voz rude:

 

– Afasta-te! Escolheste teu lado!

 

Pavel já esperava por essa reação e não se abalou. Mas conseguiu divisar um rastro de dúvida na expressão de Tomaz e sua esperança avivou por um breve instante, logo dissipada pela volta do Corvo, que trazia uma aura nublada em torno de si. Com os dentes podres aparecendo entre os lábios, ele tocou os ombros do primogênito e disse:

 

– Vem, Tomaz. Está na hora de finalizarmos este imbróglio...

 

Enquanto sinetas tocavam sua música de aviso, eles passaram pelo portal aberto, não sem que Tomaz direcionasse uma olhadela curiosa em direção ao irmão sereno.

 

Nesse instante, Estanislau também chegou, mas estava acompanhado de um estranho indivíduo: um homem vestido de uma grossa túnica escura, à moda dos monges, e cuja face estava encoberta pelo capuz. Olhares indiscretos voltavam-se à figura, e um muxoxo percorreu a turba. Quem era ele? Será que o Bispo tinha uma carta na manga? Os populares remexiam-se inquietos e logo se acotovelaram por um bom lugar nas arquibancadas.

 

Pavel não se surpreendeu com o encapuzado e os três adentraram o Salão juntos, os braços ao redor dos ombros e os passos firmes desafiando os oponentes. De fato, do alto de seu palanque, cresceram as vistas do Rei e do Corvo, um tanto surpresos com aquela apresentação e com a figura desconhecida, a qual se assemelhava a um arauto da morte. Tomaz, de seu turno, parecia perdido em pensamentos e sequer elevou o olhar.

 

Quando todos já estavam em seus lugares e a plateia cerrava os lábios em expectativa, o Juiz declarou:

 

– Reinauguro os trabalhos desta Corte! Quais serão as alegações finais?

 

O Corvo se antecipou:

 

– Meritíssimo, está claro que Estanislau não provou o ato de doação! Passemos, pois, à sentença, sem maiores delongas!

 

Quando o Magistrado já estava inclinado a golpear o malhete, o Bispo ergueu-se brusco, o braço direito elevado e o indicador em riste:

 

– Permitam-me uma última testemunha!

 

Olhares inquietos passaram do Bispo até o estranho encapuzado. Todos queriam saber quem ele era. O Juiz, talvez por clemência, talvez por um súbito afã de curiosidade, acenou com a cabeça.

 

– Muito bem, Bispo, que essa testemunha se apresente.

 

Devagar, Estanislau se voltou ao encapuzado e, com um aceno, pediu para que ele fosse até o púlpito. A figura se arrastou até lá sob olhares e sussurros inquietos da plebe. A atmosfera denunciava que algo extraordinário estava para acontecer: uma forte fragrância de margaridas tomou conta do ambiente, e um raio de luz atravessou os vitrais iluminando a tribuna, agora ocupada pelo excêntrico elemento. Lá, ele tomou o feitio de uma escultura, estática e intransponível. Até que retirou sua capa.

 

Oh! – Um grito uníssono atravessou a multidão. Pois, para o horror de todos, quem se apresentou foi...

 

O Duque Pedro Piotravin!

 

– Não é possível! – Gemeram da plateia.

 

Berros de surpresa e exaltação ecoaram. Um rumor passou pelo Salão como se uma batalha entre exércitos estivesse acontecendo. A algazarra era generalizada.

 

Pedro os observava de forma espectral, dotado de uma pálida luminosidade. Nada obstante, seus contornos eram familiares e a maioria o reconheceu.

 

O Rei e o Corvo imediatamente se levantaram e berraram:

 

– É uma fraude! Uma farsa! Tirem esse homem daí!

 

Pavel permaneceu em silêncio, mas seus olhos brilhavam com um misto de alívio e admiração. Ele passava a vista de Pedro para Estanislau, como se tivesse encontrado neles a confirmação de tudo o que acreditava. O religioso, de seu turno, estava sereno; segurava um pingente em forma de cruz e murmurava alguma oração.

 

Tomaz, por sua vez, mantinha-se como um bloco de granito, os olhos alargados feito dois globos de vidro. Permanecia imóvel encarando Pedro, como se fosse esmagado pelo peso do acontecido. Seus punhos cerrados tremiam, e ele evita o olhar de Pavel. “Será mesmo um milagre... ou apenas um truque bem arquitetado?", pensou. Mas ele sabia, no fundo, que algo além da compreensão humana acontecera. E torcia para que fosse verdade.

 

Casimiro observava Pedro com o rosto pálido como neve. Ele tentava falar algo além daquelas invectivas, mas sua boca se movia sem emitir som, até que, esgotado, desabou no trono. Revolvia compulsivamente o seu indefectível pingente de diamante, para lembrá-lo de que ainda era Rei.

 

O povo reunido na Corte, incluindo Anna e alguns antigos conhecidos do Duque, continuava o alvoroço. Nem todos estavam convencidos. Um homem sussurrou para outro: "Será mesmo um milagre? Ou apenas uma encenação?". Os murmúrios de ceticismo se misturaram ao fervor religioso. Algumas pessoas começaram a chorar e rezar em voz alta. Uma mulher gritou: "Santo Pedro! O Senhor falou por você!" Outros seguiram, transformando o Tribunal em um coro de louvores.

 

– Que o Tribunal ouça Pedro! – Clamavam em urros descontrolados.

 

O Juiz, com o rosto pálido, aceitou o pedido:

 

– Se és mesmo quem afirmam ser, testemunhe perante este Tribunal! – Disse ele, instável. Mas o tumulto continuava.

 

“Pá, pá, pá!”

 

Pedro aguardou o fim do rebuliço, que só feneceu após as batidas agudas do martelo do Juiz. Quando o silêncio cavernoso de expectativa acobertou a Corte, ele mirou a plateia e, depois, a tribuna. Os olhos eram perscrutadores, como se examinassem o espírito de cada um dos presentes. Após sua inquirição silenciosa, o Duque proclamou:

 

– Eu, Pedro Piotravin, confirmo a doação que fiz à Santa Igreja Católica. Em meu leito de morte, consciente de meus atos e do destino de minha alma, entreguei minhas terras pela salvação de minha família.

 

Os olhares se voltaram ao Corvo, que gaguejava, tentando formular uma resposta. Trêmulo, proferiu um último argumento:

 

– Como ousas vir a esta Corte sob tamanho disfarce?! Claramente se trata de uma fraude!

 

Quando Pedro voltou a falar, sua voz tinha um tom gutural, quase inumano, carregado de autoridade:

 

– Não retornei do fogo do Purgatório para trocar palavras com vermes! Vai para longe de meus filhos, imundo! Destila teu veneno nos ouvidos de outrem!

 

A força do discurso ressoou fundo naquelas almas, mudas pelo assombro e cegas pelo súbito clarão de esperança. O Corvo, que até então estivera inclinado para frente em afronta, desapareceu nas sombras, como se fosse parte delas. Quando tornaram a olhar para onde ele estava, não havia sinal de sua presença.

 

Imperturbável, o Duque continuou:

 

– Em sinal de boa-fé, solicito permissão ao Meritíssimo para que o Tribunal seja reinstalado na câmara mortuária, a fim de que não mais questionem a minha idoneidade.

 

O Magistrado balbuciou alguns sons que quase se assemelhavam a palavras:

 

– Si... Sim... é claro!

 

Pedro, então, desceu do palco e tomou o rumo da saída, sob o remanso tumular do anfiteatro. Em breve, todos o seguiam pelos arcos da glória, em uma procissão sepulcral. O boato da ressureição do Duque logo queimava os ouvidos de centenas de pessoas, como relva seca que acolhe as investidas do fogo, e a cidade subiu as colinas nortistas com ele. A multidão atropelava-se para ver e tocar o ressuscitado. Muitos diziam que era o juízo final, sob a alegação de que Jesus estava ali entre eles.

 

O Tribunal inteiro acompanhou: os escrivães atabalhoados com seus pergaminhos; os conhecidos do Duque com seus sorrisos repentinos; e o Rei, seguido de seu séquito, com os olhares abatidos e incrédulos. Finalmente, Estanislau e os da casa de Piotravin completaram a fileira. Nenhum deles ousou proferir palavra que fosse.

 

Tomaz, porém, lançou um olhar furtivo para os demais, que o observavam compassivos. Por um instante, sua expressão endurecida parecia suavizar ante a estranha placidez dos familiares, e, ao passarem pela Catedral, ele foi incapaz de mirar a cruz. Mas a dúvida ainda lhe corria as veias. Pavel, sabendo disso, tocou-lhe o ombro e quebrou o silêncio:

 

– Irmão, já é hora. Abandona a dúvida. Vem para perto de nós!

 

– Ou estamos diante de um grande milagre ou tu arquitetaste bem este plano! – Tomaz resmungou, trêmulo. Pavel apenas voltou o olhar ao solo, sorrindo timidamente.

 

Enquanto a multidão movia-se descontrolada pelas ruas, o menestrel seguia junto, cantarolando:

 

Chega a hora derradeira,

vem o peso da sentença!

Todo homem, na fronteira,

acolhe a presença!

 

Horas decorreram até que a vaga alcançou as colinas, que pareciam tocar o céu, pois as nuvens baixas ainda estavam a obscurecer a paisagem. A gruta se lançava austera sobre eles, mas, na medida em que se aproximavam, todos percebiam, com espanto, que o pedregulho havia sido removido! A fenda estava exposta!

 

– Deixem-me passar! – O Rei rugia, enquanto os seus soldados abriam espaço pela massa infrene. Quando viu a abertura, tentou adentrá-la, mas, desta vez, tudo o que conseguiu foi entremear a adiposidade entre as pedras, num esforço inútil e burlesco, entalando-se. Uma força parecia repeli-lo.

 

– Não! Não há nada aqui! O túmulo está intacto! – Ele gritava patético. Mas, naquele ponto, ninguém mais o ouvia. Os próprios militares retiraram o obeso Monarca da greta, abrindo alas ao Magistrado, o qual, tendo conferido o interior da caverna, retornou lívido, os olhos fixos na figura encapuzada que, agora, observava tudo do alto de uma rocha.

 

A multidão esperava com semblantes perplexos. Até que o Juiz, limpando a fronte do suor, declarou em alto e bom tom:

 

– A lápide foi retirada! Nada resta dentro do jazigo!

 

Novamente, um sonoro “Oh!” proveio da plebe. O frêmito emanou das hostes em ondas, e a Corte, situada no topo do monte, reverberou-as. Todos voltaram-se a Pedro Piotravin, assomado naquele relevo, como se um novo Sermão da Montanha estivesse para acontecer. Ele se punha meditativo, os braços enfiados nas mangas e a fisionomia séria, mas compassiva. Para Pavel, era novamente a rocha que sorria. Ela havia retornado.

 

Passando os olhos de uma face a outra, Pedro mirou a plebe por minutos, antes que sua voz ressoasse limpa para que todos pudessem ouvi-la:

 

– Meus caros, foi me concedida a graça da ressureição, a exemplo de Nosso Senhor Jesus Cristo! Mas quem sou eu para comparar-me ao Altíssimo?! Cumpro minha minúscula empresa, que é a de alertar-vos para a conversão! Abandonai a vida de pecado enquanto ainda é tempo! Já dizia Moisés: “Nossos dias passam como um suspiro”. Sim! Quanto menos esperardes, estareis numa alcova como esta e não haverá mais tempo para penitência! Guiai vossas vidas com retidão que sereis recompensados!

 

Algumas pessoas começaram a subir o rochedo, ajoelhando-se em oração diante do ressuscitado; outras tocavam-lhe os pés. Um homem murmurou: "Este é o lugar onde testemunhamos o impossível. Que nunca esqueçamos deste dia."

 

O Duque continuou, apontando para o Bispo:

 

– Observai a santidade de Estanislau! Não esqueçais de seus ensinamentos! Não vos ressintais por suas advertências! É ele um santo do Senhor e só estou aqui graças à sua fé!

 

Em seguida, virou-se para Tomaz e o Rei:

 

– Acusastes injustamente este santo homem, o Bispo Estanislau! Arrependei-vos! Não há maior pecado do que assassinar vossos irmãos com mentiras! Lembrai-vos do ensinamento: “Amai-vos uns aos outros”!

 

Tomaz, pálido, estendeu os braços com as mãos abertas e a cabeça abaixada, enfim aceitando o milagre e a culpa por suas ações. Casimiro, contudo, estava rubro de cólera, pois não admitia a derrota, algo que nunca sentira em seus anos de governo.

 

– Estão todos tomados pela loucura! Não aceitarei esse logro! Só aquiesço se o próprio Deus descer dos Céus! – Esbravejou. As palavras que saíam de si eram como os rosnados de um grande lobo e insuflaram os ânimos, não só da Corte, mas também dos populares. A arrogância do tirano cumulava ali, um último escárnio, agora não só contra a plebe, mas contra o próprio Deus, e o ódio acumulado de anos ebulia.

 

– Quem é este Rei que blasfema? Abaixo Casimiro, o déspota aliado do demônio! – Alguém gritou, e muitas vozes se elevaram em aprovação.

 

Tomaz, que estava rente ao Monarca, também foi inflamado pelo discurso:

 

– Aceita ou morre, se não pelos murros da plebe, então pela minha espada!

 

O Rei mirou-o furioso. Alguns de seus correligionários se aproximaram, todos com as mãos nas empunhaduras das adagas.

 

Pedro, então, desceu de seu rochedo, plácido, alheio ao mal que despontava. A parede de gente se afastava a cada passo, alguns se persignando, e ele caminhou até onde estavam os homens encolerizados, como cães raivosos numa rinha. Disse-lhes com autoridade:

 

– Não vos irriteis por causa dos maus. Segui vosso caminho com Deus. 

 

Aquelas palavras desceram como chuva a debelar o fogo. O incêndio arrefecia: Tomaz desviou a mirada do Rei e sua fúria foi ao chão. A guarda de Casimiro, ao vislumbrar o ressuscitado, prostrou-se em reverência. O teimoso Monarca, porém, fulminou o Duque e depois o Juiz, o qual a tudo assistia atônito. Pedro também o fitava e indagou:

 

– Então, qual o teu veredicto?

 

O Magistrado tremia, passando os olhos frenéticos entre Pedro e Casimiro. Um pingo de suor desceu-lhe a têmpora e segundos apreensivos transcorreram, a gigantesca plateia a observá-lo com olhos esgazeados. Ele suspirou e inflou o peito para proferir sua sentença. Contudo, como um raio que corta os céus, alguém gritou:

 

– Vede! O que é aquilo?!

 

A turba girou para trás, os olhares junto. Um ponto negro aparecia ao longe, feito uma lança a cortar o cortinado da neblina. Ele foi crescendo, crescendo, até tomar a forma de um pássaro escuro: um gigantesco corvo! A visão agourenta suscitou o terceiro “Oh!” da massa, que agora gemia logo abaixo, abandonando a mudez taciturna de antes.

 

– Que é isso?! É um demônio!

 

A figura era assombrosa, uma ave infernal que descia rápido feito uma seta, as penas esvoaçando e um odor de morte invadindo o ar. A assembleia que estava no alto da colina fitou-o assombrada e estática, incapaz de reagir ante àquela visão sinistra. O Juiz estava com as feições caídas, a boca aberta, de onde não saía palavra alguma, como se tivesse sido subitamente amordaçado.

 

Eis que o pássaro continuou sua investida, baixando justamente sobre o Magistrado, num arremate veloz e irresistível. De repente, antevendo o impacto, o homem elevou as mãos em defesa, mas o bicho hediondo veio com suas garras em forma de faca e iniciou uma contenda frenética, esmigalhando não só os membros em riste, mas também sua face.

 

– Argh... sai... daqui!

 

Ele urrava descontroladamente enquanto o pássaro grasnava e rasgava mãos, nariz e olhos. Por fim, numa agilidade impressionante, fisgou sua língua com o bico, arrancando-a num gesto horripilante. Um frisson nunca visto tomava conta da multidão, que gritava horrorizada. Dos que estavam ao lado do Juiz, alguns corriam em pavor.

 

Mas não Tomaz.

 

Eis que, tendo deixado o breve instante de aversão, sacou sua grande espada e desferiu um golpe em arco, atingindo a ave com precisão mortal. O corpo do bicho caiu em duas fatias, uma carne podre revelando-se por debaixo das penas. O Magistrado também veio ao solo, desfalecido em apavorantes tremores. Quando os demais se aproximaram com os olhos arregalados, viram que ele jazia morto.

 

O coração de Tomaz estava acelerado e a respiração, ofegante. Ele observava atônito a cena macabra, e em especial os restos da ave, que pareciam se decompor aceleradamente. Os outros também volveram sua atenção ao estranho fenômeno, mas logo uma voz proveio do cadáver avicular, o bico se mexendo em trepidações macabras:

 

– Nunca podereis me matar! Estarei convosco até a morte! Sereis levados ao inferno!

 

Uma risada grotesca ecoou pelos ares e todos perceberam horrorizados de quem era. Muitos abandonavam a colina em desespero, como se o demônio tivesse subido de seu antro e agora caminhasse entre eles. De fato, era o que ocorria.

 

Odores pútridos emanavam do cadáver e ninguém ousava responder àquela provocação, exceto Estanislau, que tomou a frente, levantando intrépido seu crucifixo de prata por sobre a figura, dizendo:

 

Crux Sacra Sit Mihi Lux

Non Draco Sit Mihi Dux

 

– Não! Nãããoo!

 

Vade Retro Satana

Nunquam Suade Mihi Vana

 

– Velho imbecil! Pare!

 

Sunt Mala Quae Libas

Ipse Venena Bibas

 

– Aaaarrrgh!!!

 

Um grito de morte percorreu os céus em desafio, mas logo desvaneceu porque o sacerdote continuava a oração de exorcismo, acompanhado agora por Pavel e Pedro. Em uníssono, com as mãos entrelaçadas, eles entoavam a prece. As nuvens se abriam, a luz solar tomava o ambiente, afastando a bruma densa que cobria as colinas. Em breve, o cadáver da ave era tragado pela terra e a maldição sublimava ao esquecimento.  

 

– Amém!

 

A atmosfera tornou-se leve. A plebe percebeu que o mal havia sido extirpado, de modo que uma saraivada de aplausos correu as hostes, embora a maioria não compreendesse plenamente aquilo tudo, surpresos que estavam pela sucessão de acontecimentos extraordinários. Muitos enviavam louvores às alturas, as mãos estendidas aos céus em agradecimento. A contenda com o demônio estava finalizada, a ordem das coisas se manteve.

 

Mas ainda faltava o assunto mundano da doação.

 

Soldados recolheram aterrorizados o corpo do Juiz, os outros cobriam as vistas em horror. Enquanto isso, o Rei, assim como todos no alto do monte, recompunham-se depois daquele episódio bizarro. Então, voltando-se a Tomaz, o Monarca disse com um leve contentamento:

 

– Creio que, agora, deverá ser indicado um novo árbitro...

 

A resposta foi imediata:

 

– Não será necessário! Eu retiro minha demanda e aceito integralmente a vontade de meu pai! As terras de Piotravin pertencem à Igreja! – O primogênito declarou em alto e bom tom.

 

Casimiro, ao ouvir isso, bufou, os olhos injetados de ódio. Por breve momento, seus dedos se fecharam sobre uma faca que mantinha na cintura, e sua mente verteu em pensamentos homicidas. Queria massacrar aquela família Piotravin, que se impunha altiva ante os seus desejos. Mas, à visão da grande adaga empunhada de Tomaz, que ria de si espumando sangue, demoveu-se de qualquer investida.

 

Depois de minutos, a adrenalina baixou, e o Rei desviou a mirada. Com um aceno da cabeça dirigiu-se à sua escolta, um punhado de homens austeros: “Vamos embora daqui!”. Eles imediatamente puseram-se colina abaixo, abrindo espaço entre o populacho, que agora voltava às invectivas.

 

– O Rei aliado do demônio! Vai embora!

 

Contudo, mal Casimiro dera os primeiros passos, sentiu um repuxão no peito. Tomaz segurava o cordão contendo o pingente de diamante e disse:

 

– Pode ir, mas antes quero que pague o soldo! – E arrancou a joia da guita. Os poucos cavaleiros que acompanhavam o Rei, veteranos de Kiev, lembraram-se do gesto do Conde em Lublin e não reagiram. Tampouco o Rei que, extenuado, suspirou e desceu as colinas quase que rolando por entre a multidão incrédula, a qual continuava os insultos e olhares raivosos. Mas os rebeldes logo abandonaram as invectivas, muitos ajoelhando-se diante da visão de Pedro e de Estanislau no topo do monte, para alívio de Casimiro e dos seus, que se viam rodeados. Mesmo assim, não se percebia na alma do Rei um grão de arrependimento, de modo que ele continuou sua marcha maldita até deixar as colinas, uma bolota carnosa extirpada para fora do corpo social.

 

Impávido, o Duque permaneceu como um monumento no topo da elevação, onde também estavam seus filhos e os demais da Corte. Centrando-se em Pavel, seus olhares se encontraram e fixaram-se um no outro, os lábios contorcidos de alegria.

 

– Estou orgulhoso de ti, meu filho. Tua fé te salvou.

 

Pavel sorriu, um largo sorriso. As lágrimas correndo por seu rosto enquanto murmurava uma oração. Ele ergueu o olhar para Pedro e sussurrou: "Pai... foi tua doação, tua entrega que nos salvou", a voz abafada pelo sentimento.

 

A seguir, o Duque tomou as mãos de Anna, Tomaz e Pavel e juntou-as num redemoinho de dedos.

 

– Prometei-me uma coisa: nunca vos separeis uns dos outros. Recusai as sugestões do demônio. O lar deve permanecer unido.

 

Pavel e Anna se entreolharam satisfeitos, as feições brilhando em reflexo à luz que agora se manifestava no local: as nuvens tempestuosas tornaram-se rarefeitas e o sol da manhã perfurava a camada que cobria as colinas. Alguns apontaram para o fenômeno e disseram: "Vede, até o céu parece diferente!”.

 

Tomaz, contudo, se mantinha um tanto cabisbaixo, talvez em divagações sobre o seu destino e dos demais. Permaneceu alguns passos atrás, mirando o solo sem saber como reagir. Seus ombros estavam curvados, e ele segurava uma pedra, como se tentasse se ancorar à realidade. "Por que sinto esse vazio...?", ele sussurrava para si mesmo.

 

Estanislau, muito atento aos sinais, recolheu o crucifixo que carregava no peito, retirando o cordão do pescoço. A seguir, teve com Tomaz. O rapaz elevou a face, momento em que o religioso tratou de passar o colar por sua cabeça. O pingente em cruz caiu sobre o peito do nobre, um bonito ornamento de metal lustrado que refletia a luz renovada do ambiente. Tomaz observava aquilo confuso, as mãos abertas como que para receber uma explicação. O Bispo, diante disso, manifestou-se:

 

– Pedro, se permitires, gostaria que o feudo ficasse em usufruto de teus filhos!

 

O Duque, agora com os braços nos ombros do primogênito, disse-lhes:

 

– Uma justa proposta, que acato integralmente! Desde que, é claro, eles jurem seguir os passos de Nosso Senhor!

 

– Nós juramos! – Gritaram Anna e Pavel, sem pestanejar.

 

Tomaz, de seu turno, tomou o crucifixo e olhou-o, as pontas a formar uma espécie de chaga nas palmas de suas mãos. Com aquilo, ele ajoelhou-se na frente do pai, agarrou seu antebraço e chorou. As lágrimas desceram pelos dedos do patriarca, que também sentiu os olhos umedecerem-se. A voz do filho saiu em soluços:

 

– Pai... não sou digno de fazer esse juramento! Perdoa minhas falhas!

 

Sob olhares emocionados dos demais, Pedro segurou Tomaz pelos ombros e levantou-o. Os dois miraram-se fundo, um na alma do outro. E então o patriarca disse:

 

– Levanta-te! Sempre serás o líder do grupo! Utiliza tua bravura para o bem e colherás os frutos!

 

Em meio ao pranto, Tomaz hesitou.

 

– Então... jura? – Mais uma vez, Pedro inquiriu.

 

Desta feita, o filhou mirou-o com fúria. Elevando o braço direito acima da cabeça, a mão fechada sobre o crucifixo, vociferou:

 

– Juro! Sim, por Deus, juro!

 

– Agora posso descansar em paz! – E eles se abraçaram, comovidos.

 

– És um soldado de Cristo desde sempre, só não sabias ainda! – Exclamou Estanislau.

 

Vendo aquela cena, mais aplausos atravessaram a multidão. As lágrimas escorriam por muitas faces, incluídas aí a dos presentes no topo da colina. Mas, agora, havia uma apreensão no ar. Que seria de Pedro? O santo ficaria na Terra? Ouviam-se suspiros e gemidos indagadores. O Duque compreendia o que passava nos corações da plebe. Virando-se para o agrupamento quase infinito de gente, o qual percorria a colina como um grande véu de noiva, disse-lhes com compaixão:

 

– Conheço vosso desejo: quereis que eu fique para ensinar o caminho. Mas o caminho já foi ensinado por Nosso Senhor Jesus Cristo!

 

Após breve pausa, em que observou os olhares inquietos do povo, continuou:

 

– Embora Ele tenha me concedido a graça de ressuscitar-me, chama-me ao Purgatório para continuar minha purificação, o que prefiro a esta malfadada vida terrestre... Lembrai-vos do que eu disse! Espero-vos junto a Deus Pai!

 

Pedro permaneceu imóvel por um instante, o olhar sereno como se contemplasse algo além da compreensão humana. Então, ergueu a mão, mas, para o horror de todos, era um aceno arenoso, pois seu corpo começou a desfigurar-se, levado por uma ventania que percorria os morros. Os membros se desfaziam ante o toque da brisa, e as partículas eram carregadas para sempre. Todos testemunharam assombrados enquanto a alma do falecido retornava à sua alcova eterna, e, em pouco tempo, desaparecia de vista.

 

Não houve palavras, apenas o silêncio profundo, como se o mundo se prostrasse ante o milagre.

 

Mas, após o breve instante contemplativo, o sol decidiu agir e sua luz atravessou definitivamente as nuvens, banhando o monte com um brilho dourado. Ao redor, pássaros iniciaram o canto, trazendo sua melodia benévola. Os presentes inalaram a brisa revigorada e descobriram poder seguir os passos de Pedro.

 

Por fim, os irmãos se voltaram ao caminho que os levaria de volta a Cracóvia. A ventania cessou entre as árvores, levando consigo as últimas palavras não ditas. Havia paz. E, acima de tudo, havia a certeza de que um ciclo havia se encerrado.

 

Pedro Piotravin, o santo, não estava mais entre os homens. Mas seu legado, gravado na fé, permaneceria por gerações.

 

 

 

Ao santo fizeram altar, ao rei fizeram esquecimento,

mas quem viu pode contar que a fé vence o tormento.

Do sangue brotou a lenda, do orgulho restou o pó,

e assim termina a contenda: o homem nunca está só!

 

 

 

Epílogo

 

 

 

Tão grande é a arrogância dos homens que, mesmo diante de milagres, não se rendem, preferindo comparar-se ao próprio diabo. Eis que o Rei continuou seu assédio contra a Igreja e os costumes, encarnados na pessoa do Bispo Estanislau. Por isso, o prelado foi obrigado a excomungá-lo no ano de 1079 de Nosso Senhor, o que lhe custou a vida. Durante uma missa, o próprio Monarca sacou a espada e o degolou. Ato contínuo, esquartejou o corpo e espalhou seus membros por Cracóvia. Os fiéis, contudo, recompuseram-no, pois, para eles, Estanislau já era um santo. A canonização oficial viria apenas em 1253, pelas mãos do Papa Inocêncio IV, e ele se tornou o padroeiro da Polônia, enquanto o Rei era esquecido nas brumas da história...

 

 

 

Fim

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 13/01/2025
Reeditado em 24/05/2025
Código do texto: T8240730
Classificação de conteúdo: seguro
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