A DESPEDIDA DE PEDRO PIOTRAVIN

 

 

 

Terceiro Ato

 

 

 

Sob a cruz que tudo observa, segue o tempo a seu compasso,

desde quando saíra Eva, do Éden ao cansaço.

A cada um segundo suas ações, que espere o julgamento final.

Ai de quem for de perdições, pois chega a sorte fatal!

 

 

 

O Julgamento

 

 

 

O tribunal estava montado no Grande Salão de Wawel, aberto ao público por beneplácito régio. A turba compareceu em grande número, estimulada pelos boatos infames que corriam a urbe feito ratos a caçar restos de comida. Diziam que Pedro alucinara em sua morte, que a doença consumira seu cérebro, que nem os santos estavam a salvo neste mundo. Do Bispo, as detrações eram piores. Muitos, ressentidos por seu pulso firme em manter o rebanho cingido, murmuravam que ele não passava de um ladrão. Outros, mais pusilânimes, simplesmente acediam com tais difamações, sobretudo ante a instalação do foro.

 

As pessoas adentravam o Salão como cães em busca de nacos de carne, num atropelo mesquinho por um bom lugar no auditório. Enquanto isso, acomodado nas escadarias da entrada, o menestrel cantarejava sua música:

 

Bispo Estanislau

e Pedro, o Duque.

Crise memorial

quando aparece o truque!

 

O Juiz, velho amigo de Casimiro, sentava-se no alto da tribuna com um semblante severo. Tomaz mantinha-se no estrado real, firme ao lado do gordo monarca. Estanislau exercia o papel de advogado de defesa da Igreja. No palanque adversário, o Corvo Negro funcionaria como acusador. Pavel, de seu turno, não compareceu.

 

A atmosfera estava carregada. Uma tensão palpável.

 

– Este tribunal está reunido para julgar a validade da doação feita por Pedro Piotravin à Igreja Católica, que, por meio de seu episcopado, é acusada de aceitar bens de um homem sem condições de fazer tal oferta. Quais são as alegações iniciais? – Proclamou o Juiz, inaugurando a sessão.

 

O Corvo levantou-se, as vestes negras crescendo a fazer jus à alcunha. Tomaz, ao observá-lo, revestiu-se da túnica opaca do pavor, como nunca o tinha feito. Quando adentrara o tribunal, tivera certo receio que atribuía à diminuta possibilidade de perder a causa. Mas, agora, percebia que não era isso, mas sim a sensação de estar contra seu pai e seu irmão, ao lado de figuras sórdidas como à daquele Corvo. Toda vez que ele se revelava, sentia um arrepio; naquele momento, então, parecia atrair para si toda a treva do recinto, como uma fenda que se alargava para abismos inominados. Em reforço a esse aspecto sinistro, quando abriu a boca, sua voz saiu feito o grasnar de urubus:

 

– Vossa Excelência há de anular a doação, por força da justiça! Estanislau, tomado pela avareza, criou em Pedro a fantasia de que o donativo poderia garantir seu lugar no Paraíso! Tudo para obter vantagem indevida! Um golpe ardiloso do Bispo, que subverte os ensinamentos de sua própria congregação a fim de ludibriar um doente acamado, já em vias da demência! Este que era incapaz de exprimir vontade! Rogo-vos permissão para ir mais além, já escusando-me pelo atrevimento: foi o ato de um covarde aproveitador!

 

O tom aumentou naquela última frase, que pareceu emanar de uma gruta das mais cavernosas, de modo a inflamar os ânimos dos presentes. A grande plateia, ávida pelo conflito, como se assistisse uma contenda entre gladiadores dos antigos coliseus, urrou em resposta: “Ladrão! Aproveitador! Não merece o título!”.

 

Os lábios de Estanislau contorceram-se para o chão; o olhar, idem. Estava abatido, mas não demonstrava raiva. Murmurou a si mesmo: “Dai-me forças, Senhor!”. Ergueu-se de onde estava. Seus trajes alvos brilharam em reflexo à luz que adentrava pelos vitrais, assim como o crucifixo que carregava no peito, num contraste espantoso para o acusador que se mantinha diante de si.

 

O Juiz golpeou a madeira com o malhete, chamando o tribunal à ordem, pois a multidão continuava a insultar o eclesiástico. Quando os guardas foram convocados, sob a promessa de expulsar os delinquentes, finalmente cessaram-se as invectivas. Então, o Bispo pôde manifestar-se:

 

– Vossa Excelência, abstenho-me de responder às provocações do Corvo, preferindo voltar-me ao objeto da demanda: recebi de boa-fé a posse do feudo de Piotravin, garantida por um ato de extrema piedade do Duque. Pedro, um antigo amigo da Igreja, e sobretudo de Nosso Senhor, tinha inclinação à caridade e, por isso, prestou-se a fazer a doação, imbuído que estava pelo Espírito Santo. Se não acreditais nestas coisas, ai de vós! Que o Senhor há de julgar-vos de acordo com as vossas obras. De toda forma, tenho o dever de responder às calúnias e difamações que espalham contra mim e, em última instância, contra a própria Igreja de Jesus Cristo!

 

Ao ouvirem a defesa do Bispo, os presentes mantiveram-se em silêncio, alguns aguçando os ouvidos em extensão de sua consciência. O Corvo, porém, detinha uma expressão sardônica, as maçãs do rosto elevadas, os lábios abertos mostrando os dentes carcomidos. Estanislau não se deteve diante da ameaça que provinha daquele ser. Mirou com firmeza sua face hedionda e continuou:

 

– Assim sendo, o tribunal há de convocar testemunhas que estiveram presentes no ato de doação, a saber: Anna, filha de Pedro, e alguns de seus criados. Todos eles podem provar a verdade de minhas palavras, pelo bem da Santa Igreja e da vontade última do Duque!

 

– Pois venha ao púlpito a filha de Piotravin! – Asseverou o Juiz.

 

Anna estava pronta para testemunhar e já se encaminhava ao palanque. No entanto, o Corvo rapidamente contestou sua participação:

 

– Vossa Excelência deverá abster-se de ouvir tal testemunha, pois ela possui interesse na causa! Ora, claramente visa prejudicar seus irmãos! – Mais uma vez, as palavras daquele homem ressoaram feito um grito pavoroso vindo de alguma falésia abissal.

 

– Hei de refutar essa conclusão, Vossa Excelência! Se ela pretendesse, de fato, prejudicar os irmãos, não o faria extirpando seu próprio patrimônio! É um contrassenso! – Protestou Estanislau.

 

Nesse momento, antes que houvesse resposta do Magistrado, a própria Anna se posicionou em meio ao Tribunal e, fitando o Corvo com fúria, levantou a voz:

 

– O Bispo está certo! Meu pai estava são!  – E, apontando para o acusador, continuou: – Esse homem destila veneno no ouvido de todos, sobretudo nos de meu irmão! Afastai-vos dele, que suas palavras são as do demônio!

 

– Como ousas?! Excelência...

 

“Pá, pá, pá!”

 

Novamente ouviram-se os impactos secos do malhete ecoando pelo salão. O Juiz esbravejou:

 

– Mulher, toma cuidado! Recolhe-te à tua insignificância se quiseres manter-te livre! Não vou admitir tamanho descaramento nesta câmara!

 

Passaram-se breves momentos de hesitação, um silêncio sepulcral a tomar conta do fórum. O Magistrado, agora mais calmo, embora pressionado por olhares fulminantes de Casimiro, decretou:

 

– Anna não poderá testemunhar, pois suas pretensões não são retas, à evidência de seu ataque gratuito ao nobre advogado.

 

O acusador respondeu com um leve aceno de cabeça, satisfeito. Estanislau, de seu turno, desabou na cadeira, enquanto a moça retornava cabisbaixa às arquibancadas. Com a cabeça apoiada nos punhos fechados, o Bispo disse:

 

– Senhor Juiz, pretendo ouvir agora os criados de Piotravin...

 

– Compareçam a este púlpito os criados do Duque! – Ordenou o Magistrado.

 

No entanto, não houve resposta, somente o silêncio. Olhares inquietos devassaram o Salão, sem que alguém se prontificasse a depor. Enquanto isso, os minutos transcorriam como moscas sobre uma carcaça, que, uma a uma, vinham paulatinamente depositar seus ovos de miséria. Estanislau ia de lá para cá, cochichando ao ouvido de uns e outros, mas sem sucesso. Seus assessores, idem. A apatia era generalizada.

 

Ficou claro ao Bispo que os antigos serviçais de Piotroavin não testemunhariam. Ele logo entendeu: foram intimidados ou subornados. Ao perceber a injustiça crescente, encolheu-se em seu assento, meditativo. O Corvo, de sua parte, exprimia um sorriso nefasto.

 

Enfim, após longo período de espera, a impaciência do Juiz aflorava pelo tribunal, e o réu, desesperançoso, manifestou-se pelo recesso: ganharia tempo, mas sua defesa dependeria de um milagre.

 

– Retornaremos amanhã! – Determinou o Magistrado.

 

As pessoas levantaram-se de seus lugares em uníssono, algumas abatidas, mas a maioria carregando um contentamento atroz, traduzido em semblantes irônicos e insultos velados. Quem se regozijava sem pudor era o Corvo, com suas gargalhadas grotescas, tendo a companhia de Casimiro, ambos a lançar olhares sarcásticos ao prelado. Tomaz, porém, tinha as feições taciturnas, embora se mantivesse na presença dos acusadores.

 

Estanislau, quando já se punha à saída do Salão, foi abordado por Anna:

 

– Padre, não esmoreça! Estou contigo em reza!

 

– Deus abençoe, minha filha...

 

Mas ele não tinha o mesmo otimismo. Perdido em meditações, deixou o castelo e caminhou pelas alamedas próximas, os dedos entrecruzados e a fronte voltada ao chão. As risadas do demônio chamado de Corvo retumbavam dentro de si, fustigando sua vontade e debilitando o ânimo. Não pensava em sua reputação, não se importava com o que uns poucos ardilosos queriam. Deus sabia da verdade e, se Ele assim quisesse, sofreria a cruz com Cristo, a cruz da humilhação e da infâmia. Poderia até ser excomungado, mas não se importava. A cruz estava diante de si e ele sofreria como seu amado sofrera, placidamente, aguardando o seu desfecho derradeiro.

 

No entanto, havia algo de incomum naquela situação. Sentia-se vinculado ao último pedido de Pedro, um pedido que, sabia, vinha do próprio Senhor. De algum modo, a doação era, como o amigo bem havia dito, um chamado à fé. Se conseguisse a vitória, pensava, talvez isso servisse à conversão de muitos, de modo que a verve evangelizadora ditava suas esperanças.

 

– Mas não há o que fazer... ninguém testemunhou. Não há como provar a doação. – Ele dizia a si mesmo.

 

Já antevia as celebrações do outro lado, os diabinhos rindo de si e da Igreja. O povo perdendo a fé, cuspindo em sua face, na mais completa ojeriza do Bispo que tanto os aterrorizara com reprimendas por seus pecados. Aquele Bispo que, enquanto com uma mão açoitava os pobres, com a outra surrupiava as posses de doentes indefesos.

 

Mas Estanislau não se entregaria facilmente. Não! O Senhor o chamava.

 

– As portas do inferno não prevalecerão sobre a Igreja! Igreja assentada sobre a Pedra, que é Pedro, agora renomeado Piotravin!

 

Com passadas firmes, o Bispo então se dirigiu até a Catedral de Cracóvia, que ficava na mesma colina de Wawel. Lá, adentrou a passagem arqueada e, entre as gloriosas colunas que se levantavam até os céus, pôs-se em oração: “Senhor, se possível, afastai de mim esse cálice! Contudo, seja feita não a minha, mas a vossa vontade!”.

 

E assim ficou, por minutos, horas. O tempo passava, mas ele não sentia. Estava junto do Eterno, em absoluta contemplação, e eterno se tornava. Do que mais precisava? Nada. Enquanto estivesse ali, não haveria mal que o pudesse atingir. Embora os ventos não fossem favoráveis, ele não mais se importava. Se bebesse do cálice do inimigo, aceitaria o destino funesto no amor de Cristo, e a justiça seria feita no julgamento final dos homens.

 

Só que ele ainda tinha aliados. Aliados deste mundo. Nem todos que vagueiam estão perdidos. Eis que, subitamente, alguém se aproximou, tocando-lhe o ombro:

 

– Posso acompanhar-te?

 

Era Pavel. O Bispo respondeu com um largo sorriso.

 

– Pavel, meu menino! Já faz muito tempo!

 

– Estou aqui, Santo Padre. Embora a dúvida ainda me consuma e minha fé balance, aqui estou.

 

– Não desanimes, filho. O Senhor te acompanha.

 

– Mesmo quando não há mais esperança para mim e minha família? Quando os demônios nos assolam com suas perversidades sem fim?

 

– Sempre há esperança. Confie Nele! Honremo-Lo nesta hora mais escura, pois Ele conhece nossas inquietações.

 

– Vamos!

 

Eles então continuaram as orações em conjunto, sob a vista do crucificado, eis que sua imagem estava por sobre o altar, tão distante e tão próxima ao mesmo tempo. Pavel observou-o. Não havia temor como na cabana. As lágrimas de sangue não voltariam, ele sabia. Estava revestido pelo manto da Paz.

 

Ficaram em vigília pela noite adentro. As trevas invadiam o saguão em uma maré incansável, mas, embora ganhassem terreno, o brilho dos castiçais ainda oferecia refúgio, pois iluminavam parcamente o crucificado e seus dois devotos.

 

O oceano escuro continuava suas insinuações: queria afogá-los; porém, eles permaneciam firmes, como que agarrados às sobras de luz, sua última fortaleza. Aquele mar tomava contornos animalescos, quase evocando criaturas sórdidas de suas profundidades. O fulgor das chamas não passava de uma pálida cintilação, como se alguns vagalumes estivessem perdidos pelos vastos interiores da Basílica. Quando as feras abismais pareciam tocá-los e as labaredas feneciam ante as águas turvas, algo extraordinário aconteceu.

 

Eis que sentiram uma presença e as sombras recuaram.  

 

Pavel percebeu. Ajudou o idoso sacerdote a levantar-se do tablado. Quando o fez, voltaram-se à entrada da Catedral. Lá, a silhueta de um homem se projetava por entre os majestosos arcos. Os companheiros observaram a figura e entreolharam-se confusos, pois não o reconheceram, dada a penumbra que tomava o ambiente.

 

– Quem está aí?

 

Não houve resposta.

 

– Revela-te!

 

Nada.

 

Conversavam com uma estátua imponente e sombria, a qual se mantinha silenciosa, um monumento de escuridão. Enquanto isso, os dois sentiam suas bases tremerem. As pernas falseavam e as mãos, trêmulas, buscavam auxílio na proteção do altar.

 

– Tem piedade de nós!

 

Mas, quando eles já procuravam uma saída, quando já pensavam em disparar como loucos pelos corredores escuros, tamanho o terror que os invadia, uma voz sobreveio. Uma voz que sequer parecia humana:

 

– Chamaram-me e vim em vosso auxílio!

 

– Quem... quem és tu?

 

O ser obscuro ignorou a pergunta e, após breve hesitação, disse:

 

– Vossa fé salvará muitos!

 

Então, a figura revelou-se e o salão encheu-se de sua luz. Os dois companheiros ajoelharam-se estupefatos, persignando-se grosseiramente.

 

– Misericórdia! Misericórdia!

 

 

 

Sob as sombras, vem a luz, plácido fulgor de paz,

E o silêncio se conduz, como o vento que satisfaz.

Todo olhar se volta ao alto, entre a névoa que se afasta,

Pois quem rompe o frio asfalto é a promessa que abasta.

 

 

 

Continua...

 

 

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Nota do autor: terceiro ato de quatro. Obra baseada na biografia de Santo Estanislau da Cracóvia (1030-1079) e no milagre que lhe é atribuído. Originalmente prevista para ser uma noveleta desenvolvida em dois atos, agora foi expandida para quatro.

 

 

LS Boynard
Enviado por LS Boynard em 08/01/2025
Reeditado em 24/05/2025
Código do texto: T8237002
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