A DESPEDIDA DE PEDRO PIOTRAVIN
Primeiro Ato
Quando o orgulho enfrenta a crença, só o tempo traz razão,
Pois da morte nasce a ofensa, mas da fé, a salvação.
Sangue e honra entrelaçados fazem o destino humano,
E em Cracóvia, pelos prados, forja-se o ledo engano.
Anno Domini 1072
Estanislau atravessou o pórtico e pôs-se a andar apressado pelos corredores do palacete. Sua respiração era pesada: a atmosfera encerrava um aroma de morte. Logo estava à porta do quarto do senhorio, no qual criados e parentes do enfermo se avolumavam, aguardando a chegada do prelado. O Bispo de Cracóvia, então, afastou-os e teve com Pedro Piotravin em seu leito.
O Duque Piotravin, nos últimos tempos, padecera de inexplicáveis moléstias. Embora tivessem fortalecido seu espírito, debilitaram de tal modo sua saúde que, naquele momento, tinha uma aparência cadavérica. Seus olhos eram tristes, perdidos em divagações; quando vislumbraram o sacerdote, porém, um arremedo de vida atravessou-os.
– Como ele está? – Perguntou o Bispo.
– Nada bem... – Respondeu uma voz feminina. Era Anna, filha do Duque, que murmurava chorosa em um canto.
Nesse momento, o enfermo levantou um dos braços, um graveto ressequido que apontava para Estanislau. Percebendo suas intenções, o prelado ajoelhou-se junto ao leito e tomou as mãos do doente.
– Pedro, estou aqui.
A resposta veio na forma de um grunhido baixo, seguido de palavras saídas do antro da doença:
– Não me resta muito tempo... Faz o que precisa ser feito. Mas, antes, um último desejo.
– Estou ouvindo.
– Santo Padre... – Sua voz estava embargada e distante, como que sufocada por uma força irresistível.
– Meu caro, estás muito abatido. Toma um pouco de água.
Foi oferecido um cálice, mas o Duque afastou-o num gesto que parecia extrair-lhe a alma. Era evidente a urgência com que queria transmitir o desejo derradeiro. Reunindo todas as energias que ainda lhe restavam, o pobre Piotravin enfim proferiu as seguintes palavras, numa cadência das mais lentas:
– Entrego à Igreja... todo o meu feudo... pela remissão dos pecados de minha família!
O Bispo franziu o cenho e, depois, balançou a cabeça.
– Pedro, que é isso? Não posso aceitar. Não quero contenda com teus filhos! – Repreendeu.
– Meu filho Tomaz... realmente não entenderá... tem paciência...
A réplica do nobre foi interrompida por uma grave tosse. Expectorava sangue. Com dificuldade, ele continuou:
– Por favor, é meu último pedido. E pedido de moribundo não se nega... Anna e meus criados são testemunhas da doação. Faz valer essa dádiva, em nome de Jesus Cristo!
– Pedro, se estás com a ideia pecaminosa de querer comprar um lugar no Céu, não posso aceitar tal pedido!
– Não! Jamais! O Senhor quis que eu desse um sinal de fé, para que os demais seguissem... por favor, aceita!
Estanislau hesitou, mas, se era para cumprimento da vontade do Senhor, não mais ofereceu resistência. Finalmente, vendo o estertor do Duque, solicitou aos presentes uma lamparina, de onde extraiu óleo. Benzendo-o, proferiu uma oração e fez o sinal da Santa Cruz na fronte do doente. Em arremate, disse:
– Por esta Santa Unção e pela sua infinita misericórdia, o Senhor venha em teu auxílio com a graça do Espírito Santo, para que, liberto dos teus pecados, Ele te salve e, na sua misericórdia, alivie os teus sofrimentos.
Após tais palavras, Pedro Piotravin entrou no reduto eterno do Espírito.
Os Filhos
Marchando pelos verdes campos de Lublin, os soldados cantarolavam com os pássaros, embriagados que estavam pela vitória conquistada dias antes. O altivo Conde Tomaz Piotravin liderava as fileiras com seu grande e imponente corcel. Sagrou-se campeão de Kiev, massacrando os conspiradores que ameaçavam o domínio do Rei da Polônia, Casimiro I, seu suserano.
O oceano verde e imaculado estendia-se até o infinito, acobertado pelo firmamento cerúleo, como se o próprio Éden tivesse sido construído na Terra. Quem vislumbrasse aquelas colunas caminhando alegres pelo paraíso nunca saberia que, pouco tempo antes, estiveram em combates renhidos numa terra longínqua. A tropa estava cansada, é verdade, mas ninguém se importava. A vitória havia sido esmagadora; as baixas, mínimas. Os soldados, satisfeitos com o triunfo, mas ainda receosos pelo porvir, esperavam o recebimento do soldo prometido em seu retorno à Polônia.
Enquanto avançavam pelos prados, um pequeno ponto obscuro adentrou a paisagem, como se um mosquito tivesse invadido a vista de um quadro bucólico.
Tomaz foi o primeiro a vislumbrá-lo. Ele crescia em sua visão, e logo o mosquito tomou a forma de um cavaleiro que vinha rápido a seu encontro. Tinha um aspecto sinistro: ostentava vestes negras e montava um potro cor de piche. Carregava a insígnia real por sobre os trajes sombrios. A nefasta visão trouxe um arrepio à tropa, já pressentindo notícia das mais agourentas, pois todos reconheceram quem era: o emissário da Coroa, conhecido como “O Corvo”.
Com um gesto, Tomaz ordenou que os companheiros interrompessem a marcha. Instou o irmão caçula, Pavel, para que comparecesse. Este veio do fim das hostes, cavalgando apressadamente.
– Pavel, veja!
O cavaleiro negro se aproximava como uma nuvem escura cobrindo os campos, de tal modo que, quando teve com o exército, os soldados baixaram os olhares em temor. Ele diminuiu o passo, e, cautelosamente, prestou uma reverência aos nobres que lideravam a fileira. Disse-lhes:
– Venho em nome do Rei Casimiro! Falo com os Condes Tomaz e Pavel da Casa de Piotravin?
– Sim. – Respondeu Tomaz. – A que veio tratar conosco?
– Trago uma mensagem urgente do Rei. Vossos soldados estão liberados e receberão o pagamento no devido tempo. Vós, porém, devei me acompanhar até Cracóvia, onde Casimiro vos espera.
– Não compreendo. O que Vossa Majestade quereis de nós?
– O Rei tratará convosco pessoalmente. Contudo, já adianto que vosso pai, o Duque Pedro Piotravin, jaz morto. Apresento-vos minhas condolências, em nome da Coroa.
Pavel arregalou os olhos, boquiaberto, e derramou-se em um patético pranto. Subitamente, a paisagem verdejante parecia assumir os tons acinzentados de um túmulo. Embora já tivesse participado de batalhas cruentas e presenciado a morte de perto, realmente sentiu-a em outro nível, como um fardo pesado que se impunha sobre si. Afinal, o pai havia sido um modelo, uma luz que o guiava pela travessia obscura da vida. Falecido, sua principal referência se perdia. Será que estava preparado para conduzir-se sem ele? Restavam apenas os ensinamentos daquele homem que considerava no mais alto grau e a quem desejava seguir o exemplo: um grande patriarca, justo a seu modo, sempre temente a Deus.
Incontinenti, lembrou-se de um fato antigo de sua infância: a figura paterna sentada em uma poltrona do salão de Piotravin, uma câmara de pedra decorada unicamente por um crucifixo e alguns assentos rústicos. Na época, ainda uma criança, ouvia a admoestação que o genitor fazia contra seu irmão.
– Tomaz, ouve teu pai, pois muito me desagradou tua atitude: desrespeitaste o filho da criada porque o consideras teu inferior. Não é este o nosso costume. Todos são iguais perante nosso Senhor e, à sua imagem, tratemo-los como iguais. Vai até ele e pede perdão.
– Mas pai...
– Não há justificativa. Faz como pedi, que é para o teu bem perante Deus.
O menino, então, assentiu e deixou a sala cabisbaixo. Era o hábito de Pedro: justo e enérgico, mas sem que se notasse indício de ira. Uma rocha que sorria, e assim Pavel o viu durante toda a vida.
Com efeito, quando a porta do aposento se fechou, o patriarca voltou-se ao caçula com uma feição amena: o leve sorriso habitual que denunciava sua paz de espírito e convicção firme. Disse-lhe:
– Pavel, trata de guardar teu irmão. Ele é o mais velho, mas tu és o mais sábio, desde sempre. Cuida dele e ele cuidará de ti.
Aquela cena reverberou pelo tempo e agora retornava naquele momento funesto, talvez sugerida pela impassibilidade do primogênito. Tomaz não esboçara qualquer reação com a morte do pai. As feições se mantiveram inabaladas e frias como o gelo do Ártico. Com um golpe no capacete de Pavel, acordou-o de suas reminiscências:
– Vamos.
Depois, o mais velho repuxou as rédeas de sua montaria, chamando os escudeiros.
– Venham, seus trastes! Temos trabalho a fazer!
Já se preparava para a árdua viagem, o semblante como ardósia que se chocava contra os demais. O caçula, em meio ao continuado pranto, murmurava: “Trata de guardar teu irmão...”.
Não havia luto, pelo menos da parte de Tomaz, e essa atitude suscitou rumores entre os soldados, que se perguntavam qual teria sido o teor da conversa com o Corvo. Vendo os serviçais carregando bagagens, logo entenderam que os nobres não mais ficariam ali.
– Os Condes estão nos deixando! O que aconteceu?! Onde está o pagamento?!
Percebendo a inquietação vinda da tropa, Tomaz não hesitou. Chamou alguns cavaleiros e tomou para si ambos os estandartes, o real e o de Piotravin, afixando-os em sua sela. A seguir, desembainhou a espada e elevou-a aos céus, cavalgando pelas fileiras. Em um brado, direcionou-lhes a palavra:
– Meus camaradas! Quando foi que vos abandonei? Lutamos juntos nesta guerra! Estive ao vosso lado diante dos inimigos! Portanto, saibam disto: nunca vos abandonarei!
A desconfiança parecia arrefecer. Alguns já erguiam os punhos fechados em aprovação.
– Meu pai encontrou sua sina e agora aguarda-nos no outro mundo! Que o sangue derramado lhe seja agradável! Que a Polônia triunfe, pelo bem de todos e de suas famílias! Sejamos um com o Rei e com Piotravin!
O nome final pareceu ecoar pelos campos como uma revoada de rouxinóis, os quais elevaram definitivamente o ânimo dos soldados até os astros. Enquanto isso, batedores montados passavam, distribuindo moedas de ouro sacadas do inventário dos próprios Condes.
Nesse momento, todos responderam com urros entusiasmados e golpes em seus escudos, gritando em uníssono “Piotravin! Piotravin! Piotravin!”. Tomaz, satisfeito, retornava à dianteira, onde o Corvo e Pavel aguardavam com uma mula carregada de mantimentos.
– Espero o devido ressarcimento pela Coroa! – Ele disse, mirando o emissário com fúria.
– Seu gesto não será esquecido. – O Corvo retribuiu sem emoção.
Pavel continuava seu pranto, desconsolado, e repetia: “Trata de guardar teu irmão...”. Tomaz não notou, passando por ele frenético, pois emitia ordens aos serviçais. O arauto real, contudo, fitou-o com o canto dos olhos.
– Teu irmão tem a atitude de um monarca. Por que não segue o mesmo caminho?
– Porque meu pai nunca aceitaria ser presenteado com sangue e matanças!
A Jornada
O sol estava no zênite quando o grupo finalizou os preparativos. Tomaz selecionara os melhores veteranos para acompanhá-los até Cracóvia, um pelotão de homens endurecidos pelas guerras. Assemelhavam-se a estátuas de metal montadas em monstros armados, os pesados corcéis de batalha, verdadeiras fortalezas ambulantes trajadas com as insígnias da Polônia. Uma visão encorajadora para os aliados, mas aterradora aos adversários. Embora aquele reino não fosse dos mais poderosos à época, seus cavaleiros eram temidos nas pradarias do Leste, somente subjugados séculos depois pelas hordas mongóis.
Quando prontos, os nobres e seus companheiros, enfim, despediram-se da tropa com um urro e seguiram o galope rápido do Corvo em direção sudoeste. Uma massa reluzente acompanhando o borrão negro que obscurecia os campos com sua tintura peculiar.
A viagem até Cracóvia duraria três dias pelos vastos gramados da Silésia, de onde viam-se, ao longe, os Montes Cárpatos. A paisagem era deslumbrante e ensolarada, suficiente para animar até mesmo Pavel, bastante abalado pela morte do pai.
No entanto, seu alento duraria pouco.
O crepúsculo denunciava uma noite austera, um manto negro que viera cobrir quaisquer esperanças de sarar as feridas. Os soldados, aturdidos pelos ferimentos da guerra e pelo frio, retiraram as armaduras e levantaram acampamento, ajuntando-se ao redor de uma grande fogueira em busca de descanso. Conversavam alto sobre estórias de batalhas e pilhagens, uma algazarra contrastante com o feitio soturno dos irmãos Piotravin, recolhidos numa tenda adjacente.
A luz da fogueira trespassava as frestas da abertura em feixes, quando o reposteiro abaulava-se delicadamente pelo vento. Pavel rezava ajoelhado diante de um pequeno oratório. A penumbra de dentro da cabana não permitia divisar seus detalhes, mas isso bastava ao devoto, compenetrado em suas reflexões. De seu turno, Tomaz observava desinteressado aquela cena enquanto mastigava um naco de carne.
Satisfeito depois de alimentar-se, o primogênito esfregou as mãos, fazendo um barulho como de areia sendo friccionada por pesados coturnos. Aquilo atraiu a atenção do caçula, que interrompeu a oração e mirou a face obscurecida do outro, ainda um tanto perdido em suas lamentações. Mesmo na escuridão, ele percebeu a aparência austera de Tomaz: o olhar frio e direto, os lábios como uma linha fina. Conhecia aquela expressão, a de um animal enjaulado pronto para ser liberto e lançar sua fúria. De fato, quando a fera abriu o focinho, foi como uma geada que se precipitou, a frieza calculista das palavras do irmão descendo feito navalhas.
– Pavel, o velho faleceu. Já era hora, estava muito doente. Este é o momento de pensarmos no nosso quinhão.
– Dá-me descanso, sim?! Não vês como estou consternado com essa notícia?
– Já tiveste descanso o suficiente. Vamos aos negócios.
– A mim, parece que a morte de nosso pai nada significou para ti.
– Não me enroles com tuas palavras! Pavel, toma apenas isto em consideração: as terras de Piotravin serão divididas entre mim, ti e Anna, sob o beneplácito de Casimiro. Asseguremo-nos logo essa vantagem, antes que alguém reclame a herança. Fica do meu lado nesta questão.
Pavel, pensativo, não respondeu de imediato. Embora detestasse a indiferença do irmão, no fundo concordava com ele: naquela época, a Polônia era assolada por invasores, sejam do norte escandinavo, sejam das grandes estepes mais a Leste. Dentro mesmo do reino, tramavam-se conspirações várias. Portanto, assegurar o feudo de Piotravin era a mais importante das tarefas.
– Não te oporei nessas questões mundanas, exceto se contrariarem o desejo de nosso pai. – Pavel enfim retrucou. – Peço respeito a ele, que merece uma boa jornada até a mansão celestial. Rezarei para que encontre o Senhor em toda a sua glória!
– Amém! – Disse Tomaz, jocoso. – Nosso pai, aquele carola, já está no Céu. Agora, tratemos dos negócios desta Terra, por favor.
– Irmão, tua indiferença para com as coisas do espírito muito me entristece. Desde sempre, isso me consterna.
– Ora, e eu te retribuo o sentimento! Tudo o que pensas é sobre o além-túmulo! Esquece-te do trato para com teus semelhantes, como se pudesses separar-te das coisas deste mundo. É por isso que nunca estarás entre os grandes!
– Embora não almeje glórias passageiras, não me esqueço de meus irmãos. Por isso, estarei presente para orientar-te, de modo a não te perderes, como nosso pai sempre alertou.
– Ah! Eu passo! – Cansado daquela discussão, Tomaz recolheu um manto, cobriu-se e decididamente fechou os olhos, logo ingressando nos domínios do sono.
Pavel deteve-se um pouco, inquieto. O luto e a indiferença do irmão o oprimiam, a tenda passou a sufocá-lo. Voltou a mirar o oratório em busca de conforto, dirigindo preces ao Senhor. A luminosidade débil que vinha de fora permitia breves relances da imagem do crucificado. Por um momento, pensou que o tivesse visto chorar. Um choro de sangue, lágrimas rubras escorrendo pelo corpo cravejado de ferimentos.
Com aquela visão, o nobre levantou-se num pulo. Recuou alguns passos, incrédulo, a face e as mãos direcionadas ao teto da tenda, como se pedisse orientações. Demorou até conseguir sustentar o olhar novamente para o ícone; quando o fez, as lágrimas sanguinolentas tinham sumido.
– Senhor, perdoa nossos pecados! – Sussurrou, persignando-se estático enquanto observava a figura. Assim permaneceu por alguns minutos, até que, recompondo-se, decidiu deixar a cabana. Queria juntar-se aos soldados e espairecer. A ocasião mortuária estava subindo-lhe à cabeça, pensou. Mas a pândega ruidosa de mais cedo minguava e eles se encontravam sonolentos. Muitos recolhiam-se em sonhos cansados.
Pavel caminhou entre os napeiros, cuidando de desviar daqueles mais irrequietos. Até que tomou para si um toco incandescente da fogueira e, na companhia das estrelas, retirou-se do acampamento, ainda trajando armas. Foi se guiando pela relva, os prados como um grande lençol branco margeado por uma cerca de árvores mais além.
Perdido em meditações, repassava episódios antigos de sua juventude em Piotravin. Rememorou certa ocasião em que conversava com o religioso Estanislau, à época o pároco do feudo e seu professor. Estavam na capela diante do altar e de seu crucifixo. A missa havia terminado, as pessoas deixavam o recinto, mas, de repente, o padre puxou o braço da criança:
– Menino, não te esqueças de uma coisa: tu és responsável por tua família. Pedro deposita em ti grande consideração. Portanto, não o decepcione!
– Por que estás a falar dessas coisas?
– Porque Cristo o selecionou para guiar a vida de muitos que estão perdidos!
Aqueles dizeres retornavam a seu ser, sobretudo agora. Quem era ele? Até o momento, vivera à sombra do pai e do irmão. Por que fora escolhido por Jesus como Estanislau dissera? Esta não seria uma pretensão muito grande?
Realmente, não fazia sentido. Pensava que era mais um no meio de muitos. Mais um pecador. O pai, sim, era um santo. Mas ele, Pavel? Há poucos dias, matara alguns homens em batalha. Uma guerra motivada por poder e intrigas, feita em nome de um rei que mal conhecia. Ganância, orgulho e propriedades. Era tudo que parecia motivar as almas perdidas deste mundo, e ele, enredado por essa trama, não conseguia se soltar.
Por que ele? Por que deveria ser o anunciador da boa nova? O irmão parecia não se importar com essas coisas. Estava bem em sua ignorância e logo assumiria um dos mais importantes feudos da Polônia. Por que Pavel deveria se importar também?
Em meio a essas elucubrações, o nobre ouviu um som, como um sussurro. A princípio, pensou que fosse o assovio da ventania noturna. Mas logo discerniu... palavras? Até que escutou um chamado...
– Pavel!
Imediatamente, sacou a espada e direcionou a tocha para o ponto de onde pensava emanar a voz.
– Quem está aí?!
Pensou em voltar ao acampamento e acordar os demais, mas, antes que pudesse fazê-lo, o sussurro veio novamente:
– Pavel!
Ele então o perseguiu, afastando rudemente o relvado alto, comovido por aquele estranho chamado.
– Apareça, quem quer que seja!
Mas os sussurros continuavam, e ninguém surgiu. Vinham como que carregados pelo vento. As copas das árvores balançavam ao longe e para lá ele se direcionou, tomado por uma súbita intuição, até alcançar a orla da floresta. Pensou em abandonar a empreitada, pensou que estivesse enlouquecendo. Contudo, novamente ouviu o chamado:
– Venha!
E ele foi. Embrenhou-se na mata, a parca luz quase não permitia divisar a densa vegetação. Era primavera, as árvores já tinham florescido e vestido a capa densa de folhagem, abandonando a nudez do inverno. Por isso, ele prosseguiu com dificuldade, mas não demorou muito até que alcançasse uma clareira. As copas se abriram em um círculo que permitia ver o firmamento preenchido de pontos brancos. A galáxia fulgurava com tamanha intensidade que a tocha era quase desnecessária ali, local em que se situavam umas pálidas ruínas desconhecidas.
Ele se sobressaltou com aquela visão. Os braços abriram-se. De um lado, a espada; de outro, o toco incandescente. Queria receber a placidez daquele lugar, pois uma estranha sensação de paz provinha das ruínas. De fato, não poderia ignorar a paisagem descortinada: um círculo ancestral em meio à floresta caducifólia, uma verdadeira edificação cujas lâmpadas eram as próprias estrelas que cintilavam acima, como se estivessem conversando entre si e com ele. A edificação não passava de um amontoado de escombros, mas eles suscitavam uma sabedoria antiga, o que rememorava o pai. De tais escombros, destacava-se apenas uma única estrutura com forma: uma alta cruz de pedra, desgastada, mas imponente. Nesse momento, quando já se encontrava em êxtase com tudo aquilo, ouviu o chamado mais uma vez:
– Pavel, sê forte! Tenha fé! – O sussurro parecia vir do crucifixo, mas logo dissipou-se tal qual a brisa noturna.
O rapaz, perplexo pelo acontecimento, ajoelhou-se, orando e levando as mãos aos céus. Buscava entender aqueles dizeres: uma advertência que parecia vir... de um anjo? De seu pai?
– Meu Deus, não sou digno de tamanha graça!
Ele se derramou em mais um pranto, amparado pela espada fincada ao solo. Não compreendia aquela mensagem. Estava deveras aturdido. No entanto, quando sua fé vacilara, justamente quando ele, cambaleante, decidira questionar seus princípios, fora enviado até as ruínas falantes e cintilantes para manter-se firme.
– Sou fraco! Por favor, tem piedade de mim!
Mas os sussurros não retornaram. O silêncio foi a resposta, eventualmente interrompido pelos próprios soluços.
O choro compulsivo deu lugar ao medo, pois, depois de alguns minutos, ouviu-se um farfalhar dos arbustos próximos. Pavel imediatamente direcionou-lhes o fogo: gelando, percebeu que uma grande treva provinha da floresta, drenando o parco fulgor da tocha.
Uma emboscada? Vários homens bloqueando a luz das estrelas, pensou. Por um breve momento, concebeu a ideia de que alguém, ciente da morte do pai, cobiçava a herança de Piotravin e tramava contra os herdeiros. Se isso fosse verdade, talvez estivesse diante da face da morte. O que ele viera fazer ali, sozinho? Que alucinação fora aquela? Que dera em sua cabeça, meu Deus?! As palavras do irmão pareciam mais reais do que nunca agora!
A espada já se impunha à frente, trêmula, quando uma figura despontou, os braços erguidos e as mãos espalmadas. Era o Corvo.
– Pavel, baixa a arma. O que estás fazendo? – Disse o emissário. Naquele breu, era apenas uma grande sombra com vaga forma humana; mesmo assim, o nobre percebeu que ele não se deteve ante as ruínas impressionantes.
– Por Deus! Que alívio! – Pavel gritou de satisfação.
– Observei quando deixaste o acampamento. És louco por andar sozinho pela madrugada! Estavas a perseguir alguém?
– Não sei... Ouviste os sussurros?!
– Sim, ouvi teus murmúrios às sombras! – Respondeu o Corvo, suas palavras agora carregavam uma ironia maléfica. – Pavel, reconheço e respeito o teu luto. Mas vê bem: não te percas em bobagens! Em breve, conhecerás a verdade e é bom que estejas do nosso lado!
O tom de voz daquele homem era sinistro e o significado daquelas palavras, mais ainda. Pavel não respondeu, assombrado por tudo aquilo. Retornando ao acampamento, não conseguiu dormir naquela noite.
Sob o peso da promessa, nasce o fardo a se cumprir,
Mesmo a alma que confessa não consegue redimir.
Quando a fé encontra a espada, surge a sombra da traição,
E o destino, ali, se guarda entre a dúvida e a missão.
Continua...
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Nota do autor: primeiro ato de quatro. Obra baseada na biografia de Santo Estanislau da Cracóvia (1030-1079) e no milagre que lhe é atribuído. Originalmente prevista para ser uma noveleta desenvolvida em dois atos, agora foi expandida para quatro.