O Batismo
O pequeno Inácio despertou no meio da madrugada, às 02:40 da manhã, com olhos pesados e sonolentos, viu parcialmente as beliches dos irmãos com quem dividia o quarto, conferiu-as na esperança de encontrar algum acordado, no entanto todos dormiam tranquilamente naquela confortável penumbra. Levantou-se a contragosto, mas era necessário, enquanto procurava as sandálias, o menino de 06 anos lembrou da promessa feita por sua mãe “Se mijar na cama novamente, vai levar uma surra!”, mamãe sempre cumpre o que diz, pensou e se apressou. Saiu do quarto em pontá de pé, não queria acordar ninguém, seguiu a luz dourada e bruxuleante do candieiro da cozinha em meio a esfregadas de olhos e bocejos, praticamente dormia em pé, ao chegar no banheiro, tratou logo de aliviar-se, felizmente não era dessa vez que o cinto ia castigar seu couro. A sonolência o deixou em um estado letárgico, porém seus ouvidos atentavam-se a melodia advinda da mata que cercava sua humilde casa, o estridular dos grilos, o canto das aves noturnas, o farfalhar da copa das árvores, a noite envolvia o sítio em seus braços mais uma vez, entretanto, algo lhe chamou a atenção, o que fez a mente do pequeno Inácio ficar alerta. O menino ouvia a certa distância, um som que destoava completamente dos ruídos da mata, um som que capturou completamente a atenção dos seus sentidos, alguns segundos depois, percebeu do que se tratava, seu coração respondeu de forma repentina, acelerando, o menino ficou bastante apreensivo, pois ouvia no meio daquela madrugada o choro inconfudível de um bebê. De volta ao quarto, evitou pensar sobre o que tinha acontecido, dizia para si mesmo que era sua imaginação pregando alguma peça, afinal de contas o que um bebê estaria fazendo no meio da mata naquela hora, deitou-se de forma apressada e cobriu-se, queria retornar rapidamente ao doce mundo dos sonhos, acordar com dia claro e brincar com seus irmãos por todo sítio.
Estava quase adormecido quando o choro estridente e distante anunciou-se nas colunas da noite, Inácio agora tinha certeza de que não estava imaginando coisas, o que levou o menino, de forma instintiva, cobrir a cabeça com o lençol, para proteger-se de qualquer ameaça. O fato de todos da casa dormirem, fez com que o pequeno Inácio, caísse de vez nas garras do medo, sentindo-se solitário, não resistiu e começou a chorar baixinho embaixo de seu lençol, queria ir até os quartos dos pais, ficar com sua mãe, mas não encontrava coragem para sair dali. Tobias, o irmão mais velho e de sono leve, murmurou algo inaudível ao remexer-se em sua cama, Inácio aproveitou a oportunidade e o chamou em sussurros "Tobias, acorda... Tobias... Acorda, por favor...", depois de muita insistência seu irmão despertou contrariado e impaciente, perguntando o que estava acontecendo. Tobias mostrou-se totalmente indiferente a estória que ouviu de seu irmão, mandando-o deixar de brincadeira e que voltasse a dormir, pois ele não ouvia nenhum bebê chorar ou algo parecido, Inácio insistia, implorava ao seu irmão para que fizesse algo, pois ele continuava a ouvir aquele pranto lá fora, Tobias vendo que a brincadeira de seu irmão estava indo longe demais, começou a chamar pela mãe, ou Inácio deixava de brincar ou levaria uma boa surra, pensou contrariado. A discussão vinda do quarto das crianças, não só acordou Dona Francilina, como também acordou Seu Beneval, homem que não tolerava desrespeito embaixo de seu teto, muito menos que o tirassem de seu sono precioso, do seu quarto gritou, com voz grave, anunciando que iria até eles. A luz do candieiro iluminou o quarto das crianças, diante dela os meninos viram os pais, Seu Beneval com cinto em mãos e seu semblante tradicionalmente carrancudo, ao lado de Dona Francilina, que segurava o candieiro, enquanto ameaçava os meninos com o olhar. Seu Beneval, sem rodeios, quis saber o que acontecia, Tobias foi o primeiro a falar, acusava o irmão de estar o importunando aquela hora com bobagens, atrapalhando seu sono, porém Inácio em sua defesa contou a situação miserável em que se encontrava, que não conseguia dormir, pois havia um bebê chorando insistentemente lá na mata. Sobre a luz fraca e bruxuleante, os meninos viram o semblante do seu pai passar de um estado zangado para hesitante em questão de segundos, viu também sua mãe a repetir o sinal da cruz, evocando a proteção dos santos em que acreditava, houve um silêncio inesperado no quarto, Dona Francilina prontamente foi até o pequeno Inácio, segurou em seu pulso e o puxou para que a acompanhasse.
Seus pais o levaram até a cozinha, Dona Francilina foi até a pia encher uma vasilha com água, enquanto rezava o pai nosso fervorosamente, Seu Beneval revirava os armários a procura de algo, Inácio não entendia o que estava acontecendo, mas sabia que havia algo muito errado. Dona Francilina trouxe para o filho a vasilha com água, segurou em seus ombros e pediu que o menino ouvisse com atenção o que ela ia dizer, Inácio estava assustado, mas atento, ouviu com temor o que sua mãe dizia, "meu filho esse choro que você está escutando é de um anjinho pagão, quando um bebê morre sem ser batizado sua alma não vai para o céu, fica vagando na terra até que alguém lhe dê a benção do batismo, o anjinho é quem escolhe o seu padrinho, e o escolhido tem a obrigação de atender o chamado. Quem ouve o choro do pagãozinho e não o batiza até o amanhecer, morre em três dias". Inácio ao ouvir aquelas palavras se desatinou a chorar, sentiu mais medo ainda do que antes, abraçou sua mãe, não queria fazer aquilo, mas Dona Francilina explicava a gravidade da situação e o que tinha que ser feito para resolver, enquanto falava consolava cuidadosamente o filho, era tudo que podia fazer naquele momento. Seu Beneval com um pacote de velas em mão, retirou uma e acendeu na chama do candieiro, entregando-a ao pequeno Inácio, a voz grave e firme se atenuou ao ressaltar a importância de se batizar o pagãozinho o mais rápido possível, como o filho foi escolhido, infelizmente tinha que ir sozinho até lá, Inácio implorava para que os pais fossem juntos, mas eles não podiam ajudar o filho naquela apavorante tarefa.
A porta da casa se abriu, uma porta holandesa azul desgastada pelo tempo, o relógio marcava 03:15 da manhã, Inácio pôs os pés no alpendre, o menino ficou espantado com o quanto a noite estava escura, até o branco vivo das paredes caiadas de sua casa estava apagado, mal dava para enxergar o que havia além da cerca, no céu a lua pairava encoberta por nuvens, o menino olhou a mata que costumava brincar durante o dia e sentiu arrepios, ela tinha se tornado uma visão sombria naquela escuridão, fazendo-o travar de medo. Os outros irmãos tinham acordado e juntaram-se aos pais atrás da porta, perguntando o que Inácio fazia, Dona Francilina continuava com suas preces cheias de fé, enquanto Seu Beneval incentivava o filho, dizia que ele era homem e homem não tem medo dessas coisas, o pequeno Inácio foi avançando aos poucos diante daquele mar de olhos pesarosos, desceu o alpendre com cuidado para não derramar a água da vasilha, seguiu pelo terreiro de barro, repleto de pedrinhas e mato, estava angustiado, aflito, com lágrimas a descer pelo rosto, o menino erguia a vela para iluminar melhor o caminho irregular em que passava, ao chegar na porteira, na divisa da estrada com sua casa, olhou para trás, e viu apenas as silhuetas de sua família sob a luz frágil e dourada do candieiro.
O choro do bebê ficou mais perceptível onde Inácio se encontrava, o menino desnorteado, tentava localizar a direção exata daquele pranto sobrenatural, olhou para um lado e para o outro, depois de alguns segundos, chegou a conclusão que vinha de sua esquerda. Tudo estava escuro ao seu redor, o som vindo da noite mexia com sua mente, com seus sentidos, o farfalhar das folhas das árvores lhe pareciam sussurros, vozes do além a chamar seu nome, o que trouxe terror ao pequeno, fazendo-o a rezar baixinho pela estrada. O cheiro do mato misturava-se com o da vela a queimar, Inácio com o coração aflito e pensamentos desordenados, seguiu cuidadosamente o pranto do pagãozinho, sua casa havia ficado para trás, sua família não podia protegê-lo, agora estava sozinho naquela estrada de barro. As árvores formavam um corredor negro e sombrio, com seus galhos a balançar como longos braços, o menino seguia em seu pânico solitário, por um instante teve a impressão de ter visto um vulto atravessar a estrada e esconder-se por trás do tronco de um pé de jaca, árvore esta, famosa por sua fama de mal assombrada nos relatos da região. Inácio era apenas medo, lágrimas, aflição, dor, o corpo do menino tremia por completo, o choro do pagãozinho o guiava pela noite, ficava cada vez mais evidente, mais ressoante, o lamento fantasmagórico já estava a pouco metros de distância, entretanto o menino não aguentava mais, agora era ele que chorava em voz alta, chamava por seus pais, implorava para que tudo aquilo parasse, suas lágrimas eram iluminadas pela chama da vela, uma luz tão fraca que mal iluminou a clareira que o menino encontrava-se, o choro estava intenso, bem próximo, o menino andou um pouco e chegou até uma bifurcação de estradas, havia um arbusto no meio delas, era dali que o pranto lamentoso emergia.
O céu estava sem a vivacidade da lua naquela noite, tornando a mata uma sombra viva a observar Inácio, o menino quis sair correndo, mas não teve forças suficiente, seu corpo estava paralisado de medo, seus pés não se mexiam, as lágrimas nublava sua visão, Inácio fechou os olhos, pois temia que algo pior apareceria em sua frente, enquanto os galhos das árvores balançavam com o vento, teve a impressão de ter ouvido uma gargalhada atrás de uma delas, seu coração entrou em palpitação, batimentos fortes e intensos, tudo aquilo era demais para ele. Apesar do desespero e do desvanecer de suas forças, o menino queria apenas que aquele sofrimento acabasse, mesmo chorando, se concentrou, precisava lembrar das instruções que seus pais passaram, afastou o medo de sua mente, dos seus sentidos, sabia o que tinha que fazer. Foi até o arbusto que chorava como uma criança e ficou em frente a ele, o arbusto balançava com o vento, como se tivesse vivo, o choro ouvia-se abaixo de suas raízes, Inácio abaixou-se e fez a oração que sua mãe ensinou, ditou cada palavra que havia escutado, abençoando aquela alma perdida que precisava de conforto e luz, depois jogou a água aos pés do arbusto e rezou o pai nosso, nisso o choro que ele não parara de ouvir cessou naquele instante, a mata também silenciou por um segundo, o pagãozinho havia encontrado a paz em seu batismo, o silêncio daquele momento trouxe um certo alívio ao pequeno Inácio, ele foi acalmando-se aos poucos, lágrimas não caíam mais pela face, sabia que estava livre de vez daquele pranto do além, sabia que não ia mais morrer em três dias, sabia que agora podia voltar para casa.
Seguindo de volta para casa a impressão era a mesma, apesar do choro ter cessado, ainda sentia calafrios com a mata escura que o envolvia, Inácio seguia tenso e aflito pela estreita estrada de barro, apressando os passos dessa vez, a cera caía em seus dedos, mesmo assim não se importava, era a única luz que tinha, teve novamente a impressão de ouvir uma gargalhada na direção do arbusto chorão, o que fez um arrepio descer-lhe pelas costas e suas pernas iniciar uma corrida desmedida. O menino corria com todas as suas forças, porém tomava cuidado para a chama não se apagar, pensava apenas em sua casa, em sua família, precisava chegar logo, queria voltar a dormir, no entanto ao chegar ao pé de jaca, Inácio viu surgir por trás do tronco o vulto de mulher de branco, segurando um bebê em seus braços, o vulto parou na beira da estrada, em silêncio, Inácio não podia parar, fechou seus olhos e passou em disparada pelo vulto, o menino ainda teve a impressão de ter ouvido o sussurro da palavra obrigado.