ESCAPANDO DA MORTE
Scaramouche, aos 81 anos, é a encarnação viva do que significa desafiar a própria mortalidade. Ele olha para trás e vê uma vida repleta de aventuras e adversidades que não só testaram seu corpo, mas também moldaram sua alma. Alguns momentos, em particular, destacam-se como as vezes em que a vida tentou ceifar sua chama, mas Scaramouche, resiliente como o vento que curva as árvores sem quebrá-las, sobreviveu.
O primeiro desafio veio em um dia que começou como qualquer outro. O Rio Guaíba estava sereno, suas águas tranquilas refletindo o céu azul, enquanto Scaramouche velejava com a confiança de quem conhece bem os segredos do vento e da água. No entanto, o clima mudou de repente. Um grande temporal surgiu no horizonte, trazendo ventos ferozes e ondas que pareciam muralhas líquidas. A leveza do barco foi subjugada; o mastro, de seis metros, partiu-se ao meio como um graveto. O barco virou, deixando o casco para cima, e Scaramouche, agarrado desesperadamente com as mãos por baixo do casco, enfrentou ondas que passavam por cima dele, cada uma ameaçando levá-lo para o fundo. Mas ele resistiu. Seu corpo tremia, mas sua mente se recusava a ceder. Quando finalmente foi resgatado, a lição estava clara: a vida é tão frágil quanto o fio que a sustenta, mas é a vontade de viver que a mantém firme.
Anos depois, em 1970, Scaramouche estava em Lima, no Peru, lutando. Naquela noite, cansado, repousava em um hotel modesto. Foi o balanço da cama que o acordou, um movimento que inicialmente julgou ser um sonho. Mas então, o abalo intensificou-se. O prédio gemeu e estremeceu como uma criatura viva. "Terremoto!" foi a palavra que ecoou em sua mente. Ele correu pelas escadas, a adrenalina guiando seus passos, e saiu para a rua, onde a devastação já começava a se revelar. Paredes desabaram, gritos ecoaram e o caos reinou. Mais de 50.000 vidas foram perdidas naquele desastre, mas Scaramouche, de alguma forma, emergiu ileso, com a certeza de que seu destino ainda não havia sido cumprido.
Quando tinha 68 anos Scaramouche sofreu um AVC, hospitalizado por dez dias, ficou durante um ano falando com dificuldades, mas a parte física melhorou em quinze dias sem sequelas. Com 70 anos voltou aos esportes e conseguiu ficar melhor em competições, pós AVC. Mais uma sobrevivência, com louros.
Em Maio de 2024, saiu de casa com sua esposa com agua de um metro e meio, na maior enchente acontecida no RS de todos os tempos. Foi um grande prejuízo financeiro, mas a vida que é o bem maior foi poupada.
Cada um desses momentos foi um lembrete brutal da transitoriedade da existência. Scaramouche, porém, jamais permitiu que o medo do fim ofuscasse a beleza do presente. Em vez disso, carregou consigo uma gratidão profunda, vivendo cada dia como se fosse o último, com a coragem de quem já olhou para a morte nos olhos e sorriu.
Neri Satter – Dezembro de 2024 CONTOS DO SCARAMOUCHE