O Rancoroso

A notícia da morte de Glauco espalhou-se muito rapidamente. De repente, todos os seus familiares, amigos, conhecidos, pessoas do passado, membro de igrejas que frequentara, ex-alunos, médicos e enfermeiros, mecânicos, entre outros estavam sabendo da notícia.

O velório foi organizado rapidamente por uma empresa funerária. O funeral foi realizado no dia seguinte ao triste anúncio da morte. O corpo de Glauco foi levado à saleta do cemitério às catorze horas e havia um contingente enorme no local. Muitas pessoas estavam a chorar, a comentar seus feitos e fracassos em vida; outros só estavam ali para certificarem-se de que de fato Glauco morrera.

O caixão foi aberto e muitas pessoas começaram a acercar-se de seu corpo e prantear. Umas conversavam com o defunto; outras, apenas observavam-no em silêncio. Quatro velas acesas rodeavam o esquife em que o corpo estava depositado.

Julia, sua ex-esposa, acercou-se do caixão, com grandes óculos escuros e de roupa negra. Observou-o em silêncio, sem tocá-lo. Em seguida, beijou-o na testa e afastou-se, a chorar copiosamente em um banco.

Mais tarde, Helena – a quem Glauco muito tinha dispendido tempo de sua vida em tentar entendê-la, fez o sinal da cruz e contou-lhe segredos ao ouvido. Contava-lhe coisas que haviam passado, as viagens que fizeram, as brigas que tiveram e tudo o mais.

E, nesse ínterim, várias de suas antigas amantes começaram a brotar no velório: Paula, Lorena, Regina, Isabel, Laura, Stela, entre ouras.

Seus amigos também compareceram ao velório: Túlio parecia muito abatido; Arnaldo não soltara uma lágrima desde que ali chegara; Geraldo não parava de chorar; Rogério estava bastante silente; Sônia lixava as unhas, a prantear um pouco.

Os pais de Glauco chegaram mais tarde. Pareciam bastante impotentes em vê-lo ali, em um esquife, para uma cerimônia final. O clima no cemitério estava bastante pesado. Contudo, Armando parecia satisfeito em ver Glauco ali, inerte, sobre o caixão.

A mãe de Glauco aproximou-se do esquife e tocou a mão do filho, a chorar copiosamente. Súbito, sentiu um calor e uma suadeira oriundos da mão do falecido. Achou estranho e então comentou em voz alta:

- Glauco está quente!

Houve uma comoção geral. As pessoas começaram a se agitar. Comentavam sobre o ocorrido. Alguns frequentadores começaram a passar mal. O café esfriava e os biscoitos já estavam no fim. O padre que faria uma oração atrasou-se. De repente, Glauco levantou-se e sentou-se dentro do esquife. Uma idosa desmaiou ao ver a cena.

- Que bonito – começou ele, com a ironia que sempre lhe permeou a vida. – Todos aqui reunidos, a contemplar a minha derrocada. Eu fico muito feliz em vê-los.

Os sobrolhos de todos estavam arqueados. Helena, que estava de pé, começou a tremer. O pai de Glauco precisou sentar-se, a não acreditar no que estava a ver.

- Eu fico muito feliz que todos se mobilizaram pelo menos na hora da minha morte – bradou ele.

- Você não está morto? – perguntou Geraldo.

- Eu morri em vida, meu caro amigo – redarguiu Glauco. – Eu morri pelo rancor que eu sinto de todos vocês. De todos não, da maioria. Essa era a minha única oportunidade de reunir todos e fazê-los recordar-se do mal que me fizeram em vida. Ou do mal que eu lhes fiz, confesso. Minha querida ex-esposa, Julia, que prazer em revê-la. Pensei que nunca mais me quisesse ver – nem morto! Helena, minha amada Helena, depois que me abandonou para ir ao estrangeiro, casar-se com um ser humano que nem sabe conjugar verbos em língua portuguesa, menosprezou-me quando fui lhe visitar; e você, cara Paula, eu não era novo demais para que pudéssemos ter algo nós dois? Lorena, eu nunca me objetei sobre seus filhos com Valdir. E quanto às demais, eu só lamento. Eu sei o mal que eu fiz a todas, mas nenhuma de vocês me deu uma oportunidade de me despedir.

Ele levantou-se do caixão e começou a caminhar.

- Meus caros amigos... Túlio, meu velho companheiro, teu medo não nos deixou seguirmos à frente com nossos projetos. Sempre temeu a ousadia. Arnaldo, eu sempre sucumbi à vida bacante que você levava e assim caí num limbo existencial; meu amado Geraldo, por que tanta demora em atender às minhas expectativas? Só quando eu desisti de vez, veio me procurar, sabe Deus para quê! Armando, encerrei tua felicidade? Pensou mesmo que eu tinha ido desta para uma melhor? Não, mas eu esperei tua vida ansiosamente.

De repente, ele dirigiu-se a seus pais, que estavam sentados lado a lado na sala do velório:

- Pai, mãe... eu lhes agradeço. Eu lhes agradeço nunca terem me apoiado de fato nas minhas andanças. Eu lhes agradeço sempre terem solapado minhas vontades, minhas conquistas, meus objetivos sempre com um discurso de que eu poderia ter feito mais. Não, lhes afirmo, não poderia. Eu fiz tudo o que pude, enquanto pude e como pude. Não conseguiria fazer mais, pois as vozes na minha cabeça não param mesmo agora!

Havia uma tensão na saleta do cemitério. As pessoas estavam chocadas com o monólogo rancoroso de Glauco. Ele continuava a falar, a vociferar, a bramir em ódio e raiva diante de todos os presentes. Ele que sempre parecera ser uma pessoa tão submissa às opiniões das demais, organizou um cerimonial fúnebre para despejar as mazelas que sentia em relação ao que todos ali presentes lhe incumbiram.

Súbito, o padre chegou com meia hora de atraso. Ficou espantado ao ver o esquife vazio. Perguntou em voz alta:

- Onde está o falecido?

- Sou eu, padre – disse Glauco, a sair de trás de umas pessoas. – Fui eu quem morri para toda essa gente presente.

O padre franziu o cenho e parecia incrédulo com o que estava a ouvir. Porém, de fato, percebeu que Glauco não mentia, pois a foto em uma das coroas de flores era a de Glauco.

- O senhor pode celebrar a missa – concluiu Glauco. – Vou fumar e, ao regressar, quero que prossigam o velório.

E assim foi feito: Glauco pedira um cigarro emprestado a Túlio, saiu para fumar, a observar a natureza que cercava o cemitério. Logo, adentrou o recinto, arrumou o terno, deitou-se no caixão – a segurar uma rosa, entrecruzou os dedos e fechou os olhos para sempre.

Fora enterrado uma hora e meia depois do discurso – em silêncio, sem aplausos.

Guilherme Zelig
Enviado por Guilherme Zelig em 16/11/2024
Código do texto: T8198361
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2024. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.