Um Caso Tenebroso

Naquela tarde de domingo o calor era insuportável. Estava eu na cozinha preparando um suco bem gelado e de repente escutei um grito vindo do quarto da minha namorada.

- Puta que pariu!

- O que foi Roberta? O que houve? – Perguntei correndo feito louco pelo corredor.

- Venha cá Marcos, veja o que eu descobri.

Naquele dia o pais dela não estavam em casa. Receberam um convite para uma festa de aniversário de um tio e prometeram voltar só no fim da tarde. Foi então que eu pedi para Roberta ficar, que seria legal passarmos o final de semana juntos.

- Dá uma olhada aqui neste vídeo. – Acenou ela com a mão.

- Vai Roberta, coloca o vídeo pra rodar. – Estava eu de braços cruzados e olhos bem atentos. Então foi ai que eu entendi a euforia dela. O conteúdo do vídeo que causou espanto falava de uma criatura da criptozoologia. Esses seres lendários que só aparecem em historias.

- Você me chamou para isso? - Comecei a rir.

- Tenho certeza que é um Nightcrawler. Eles já foram avistados em Fresno e no Parque Yosemite na Califórnia (EUA). – Disse me olhando com a cabeça torta.

A verdade é que ao ver aquele vídeo no youtube, ela acabou se lembrando de uma história de mais ou menos uns vinte anos atrás. A tal criatura de Fresno só poderia ser a mesma que lhe contara, foi por isso que causou tanto espanto e um palavrão. Roberta disse que certa vez, em uma noite, sentada na porta de casa com duas amigas, debatiam sobre certas aparições inexplicáveis. No meio da conversa, uma delas disse acreditar que independente da crença, coisas desse tipo sempre aparecerão para confundir a cabeça das pessoas. Foi ai que a Bióloga Gardênia, uma das amigas, contou que logo depois de se formar, ouviu de um colega de sala, um caso tenebroso que aconteceu em uma pesquisa de campo numa fazenda que ficava uns 20 km da cidade.

- Vamos Carol, chame o pessoal, a van já chegou. – Avisou Fernando entrando no veículo.

- Ô galera, “bora”. – Gritou Carol para o restante do grupo que ainda estava fazendo uma boquinha do outro lado da rua.

Naquela tarde, a van saiu por volta das 14h com um pequeno grupo de cinco estudantes de Ciências Biológicas. Eram eles: Gardênia, Carol, Ronaldo, Emílio e Fernando. Este último, o Fernando, era o destemido, tido como cético por todos. Por volta das 14:30h, como era previsto, o motorista da van deixou-os na beira da pista, na entrada da fazenda, retornando-o para a cidade.

- Olha esse pezão de manga! – Disse Emílio, pegando um fruto das galhas mais baixa de uma das várias mangueiras na entrada da propriedade.

- Vamos pessoal, a sede fica logo ali. – Apontou com o dedo Ronaldo.

- Temos que tomar cuidado com o cão, com certeza ai tem cão. – Indagou Gardênia.

A poucos metros da sede, antes mesmo de passar pela cerca, dois cães, um caramelo e outro de cor preta, apareceram latindo feito doidos. Avisavam seu dono que por ali tinha intrusos. De longe, na casa, avistou-se um senhorzinho, de barba branca e boné surrado, abrindo uma janela, conferindo o grupo de estudantes se aproximando.

- “Queta" bichos! Volta pra dentro. – Gritou num sotaque sertanejo o senhorzinho lá da janela.

- Boa tarde! Somos o pessoal que veio pra ficar o fim de semana, conforme combinado. – Falou Carol, ainda fora do terreiro da sede.

- Assim, o professor de vocês já tinha me dito, quando fui a cidade semana passada. – Confirmou o senhorzinho.

- A gente já pode entrar? Os cachorros num mexem – Disse Emílio.

- Sim, venham pra cá, depois da minha ordem eles não vão mexer. – Confirmou novamente o senhorzinho fazendo gestos com o braço.

O senhorzinho de barba branca e boné surrado é João, vaqueiro e dono da pequena propriedade. Mora apenas com sua esposa e vive do sustento da venda de gado, leite e da agricultura. Por ser de uma família conhecida, o Professor de Biologia da turma, conseguiu através de um parente do fazendeiro, que parte de seus alunos pudessem passar o final de semana em suas terras a fim de realizar um trabalho de conclusão de semestre. O intuito do estudo era catalogar durante a pesquisa, qualquer bicho que eles encontrassem, desenvolvendo assim, uma breve descrição do tais achados.

- Eu tô com medo, tira esse cachorro daí. – Tremendo, Ronaldo ia alertando.

- Calma Ronaldo, fica parado, eles só estão cheirando pra te conhecer. Nem parece um estudante de Biologia – Disse Gardênia convicta da natureza dos cães.

- Eles não vão morder, fiquem tranquilos. Lá em baixo, alguns metros daqui da sede, tem uma casinha que limpei para vocês se hospedarem. Fica bem pertinho do rio. Vocês só vão precisar vir pra cá mais tarde pra jantar. – Explicou João.

Saindo então da sede, passando pelo a porteira de arame liso, os cinco jovens iam em direção a pequena casinha perto do rio. No meio do caminho eles se depararam com um açude, e na beira dele alguns jacarés. Foi ai que Fernando “o destemido” cortou caminho e conseguiu pegar um jacaré. Lógico, um crocodiliano de pequeno porte. Puxou-o para fora do açude e segurando o rabo do animal, brincava sem ter nenhuma preocupação.

- Solta esse bicho, se ele te morder vai fazer um estrago. – Disse Emílio.

- Solta logo cara, deixa de ser cuzão. – Repetiu Carol.

- Tô vendo que o fim de semana vai ser careta mesmo, porque todos vocês são um bando de mariquinhas. – Disse Fernando sacudindo a cabeça.

Então o grupo continuou até a casinha, e durante o caminho, Fernando disse ao seus colegas que o jacaré que encontrara não poderia ficar de fora da resenha do trabalho. Mas Emílio interrompeu dizendo que ele deveria registrar aquele momento com a máquina de tirar fotos. Coisa que ninguém lembrou de fazer. Depois de mais ou menos uns cinco minutos, os estudantes desembarcaram na casinha de madeira perto do rio. Ali eles se alojaram e logo depois sairam pro começo dos trabalhos. Ao redor da casa se via um rio estreito e uma mata mais fechada, lugar propício para se achar novos bichinhos.

- Vejam só o que eu achei aqui enrolado naquelas galhas. – Apontou Carol para uma cobra verde, registrando-a com três fotos.

Mais tarde Gardênia mostrou fotos de formigas encontradas andando pelas folhas secas do chão. Parecia ser do tipo cortadeira. Fernando e Carol encontraram um gambá, a típica mucura com dois filhotinhos plantados no alto de um cajueiro. As mucuras correram quando avistaram a presença humana, mas foi possível registrar os bichos. Ronaldo conseguiu registrar vários periquitos no momento que eles voavam alto por cima da copa da árvores. Em fim, naquela tarde foram alguns registros, entre cobras, pássaros, insetos, mamíferos e até pequenino macaco sagui, todos estes catalogados pra depois serem resenhados.

O certo é que aquela horas foram muito proveitosa, e o fim de tarde estava se aproximando. Enquanto Emílio, Carol e Gardênia preparavam a mochila no alojamento para depois subir até sede, Fernando e Ronaldo estavam do lado de fora admirando o rio. Era quase 18h, e foi ai que Fernando escutou um barulho vindo de uma moita pertinho deles bem na beira da água.

- Escutou Ronaldo? Tem algo ali naquela moita.

- Ah cara, deixa pra lá. Já tá escurecendo, amanhã a gente volta de novo. – Disse Ronaldo com uma aparência cansada.

- Vai lá no alojamento Ronaldo, trás as lanternas...vai lá rápido, eu fico aqui observando.

Então Ronaldo subiu até a casinha de madeira, foi até as mochilas e pegou duas lanternas. Neste momento, Carol perguntou se ele não ia se preparar para o jantar, pois já era tarde e quase todo mundo já estava pronto para ir embora. Ronaldo passou pelo grupo e pediu apenas que eles esperassem só mais um pouquinho, que Fernando e ele estavam terminando o último trabalho.

- Pronto Fernando, pega ai a tua lanterna. – Ronaldo jogou-a para que ele apanhasse.

- Ok. Faz o seguinte Ronaldo...vai pro outro lado da moita enquanto eu fico aqui desse lado. Quando eu contar até três, a gente acende as lanternas ao mesmo tempo. – Explicou Fernando.

Um segundo depois...

- Minha nossa senhora! Tá vendo o que estou vendo Ronaldo?

- Sim..mas que diabos é isso?

Depois de alguns minutinhos, os dois apareceram ao restante do grupo que já esperavam no alojamento prontos para subir até a sede. Ronaldo com seu porte franzino e Fernando o “destemido”. Mas naquele momento algo os deixavam exatamente iguais. O porte físico pouco importava. Os rostos espantados eram evidentes para os demais que ali estavam.

- O que aconteceu? – Perguntou Emílio desconfiado.

- A gente viu um outro jacaré, e esse quase conseguiu fazer um estrago. certo, num foi Ronaldo? – Falou Fernando cutucando o amigo com o braço.

- Sim, sim. Fernando quis pegar o jacaré, mas foi o Lacoste que quase pegou ele. Dessa vez foi sorte, muita sorte. Foi isso galera.

- Ei tô falando, qualquer hora dessas vai dar merda. – Disse Emílio balançando a cabeça negativamente.

No caminho de volta, houve pouca conversa. Apenas Gardênia comentando que o dia seguinte poderia ser mais proveitoso, que seria bom todos se esforçarem um pouco mais. Ao chegarem na sede, escutou-se os cães latindo, mas estes agora mais acostumados com os estudantes. João e sua esposa Eli aguardavam-nos para o jantar que por sinal já estava pronto. No final daquele dia, Ronaldo e Fernando ficavam cada vez mais estranhos. Não comeram, não dormiram direito e no dia seguinte se recusaram a continuar com os trabalhos. Tanto que o grupo decidiu ir mais cedo pra casa.

Um ano se passou, e parte do grupo continuava firme no curso de Ciências Biológicas. Meses depois eles acabaram formando. Apenas Fernando desistiu do curso. E o que mais intrigou foi sua desistência logo após aquele fatídico dia na fazenda do vaqueiro João. Tempos depois, em uma feira de domingo, Gardênia se deparou com Fabrícia, uma irmã de Fernando, numa banquinha de frutas e verduras. A conversa foi rápida entre elas, mas foi o suficiente para que Gardênia anotasse o endereço do seu antigo colega de sala de aula.

Dias depois ela encontrou Fernando trabalhando numa loja dessas de roupas, endereço certo do qual procurava. Fernando era vendedor e reconheceu na hora sua ex-colega de turma que acabara de cumprimentá-lo. Ele a recebeu bem, porém Gardênia não estava ali para lhe comprar roupas. Queria apenas uma resposta do por quê ele, que era tão dedicado, tinha abandonado o curso de Biologia. Depois de alguns sorrisos e abraços, Fernando convidou-a para um lanche, logo após o expediente, para que eles pudessem colocar a conversa em dia.

- E o pessoal da turma, tem visto por ai?

- Estes dias falei com Ronaldo, semana passada. Ele tá morando agora em outro estado. Até onde eu sei ele montou uma pequena clínica veterinária e atende animais de pequeno porte. Mas o resto do pessoal eu não tenho visto – Disse Fernando enchendo um copo de refrigerante.

Depois de algumas horas conversando, Gardênia relembrou o dia em que eles foram até a fazenda do vaqueiro João. Naquele momento houve um minutinho de silêncio entre eles. Fernando abaixou a cabeça parecendo estar incomodado. Então ele olhou firmemente nos olhos dela, e fez um gesto positivo com a cabeça, dando a entender o que ela gostaria de saber.

- Mas e ai, o que aconteceu? Por que você trancou a faculdade?

- Ahh minha amiga Gardênia...se eu te falar você não vai acreditar.

- Mas o que houve? Tem a ver com aquele dia lá na fazenda?

Fernando deu uma pausa, comeu o último pedaço de linguiça do prato, olhou pela janela do barzinho, lá do canto onde eles estavam, e depois de mais uma golada de "refri" ele começou a falar tudo que ele lembrava, esclarecendo de vez o que aconteceu para sua ex-colega de faculdade.

De acordo com o relato de Roberta, Fernando contou a Gardênia que naquele fim de tarde, estava ele e Ronaldo admirando o por do sol na beira do rio. Então Foi ai que eles escutaram algo se mexendo numa pequena e densa moita. Fernando como é muito agitado correu para observar o que era, mas como estava escurecendo, ele pediu para que seu colega fosse buscar as lanternas no alojamento. Quando Ronaldo retornou com as lanternas, eles fizeram um pacto para que cada um levantassem parte das rasteiras da moita ao mesmo tempo, iluminando o que poderia ser. Só que quando as luzes bateram na tal coisa, enxergaram algo que não era compreendido por eles. A tal coisa, que se assemelhava a criatura de Fresno, aparentava ter apenas pernas alongadas e parte do tronco deformado. Não tinha cabeça e nem braços. Tinha uma cor esbranquiçada, e enquanto os dois processavam o que estavam vendo, a coisa saiu correndo por cima das águas do rio. O certo é, que depois daquele dia, Fernando que até então era cético decidiu encerrar o curso de Ciências Biológicas.