Beatriz
Casaríamos hoje, em um sábado ensolarado. A Catedral de Passo Fundo estaria pronta para receber-nos. Os convidados chegariam cedo, a dama de honra e o pajem primeiro. O pai da moça, homem grosso e de maneiras campesinas, daria a mão a Beatriz, acompanhando-a até o altar. Eu lhe daria a palavra, pegando a sua mão do ente paterno, e o padre conduziria o evento mais feliz da minha vida.
Ah, como seria bom! Uma vida perfeita ao lado dela! É certo que nos dávamos muito bem, e nossa amizade evoluiu até tornar-se paixão ardente, daquelas que o casal se distancia dos demais para viverem juntos os seus belos dias. Na verdade, eu queria que todo mundo desaparecesse, e que ficássemos sozinhos em nosso mundo mágico. Pensava que nada mais importava. Tínhamos a amizade mais sincera, de Euríalo e Niso; e o amor mais duradouro, de Beren e Lúthien.
Andávamos seguidamente pelas ruas observando a natureza; contávamos piadas, discutíamos filosofia. A mão dela quando segurava a minha me fazia sentir acolhido, a ponto de eu ficar alegre por dias só de tê-la tocado. A sua voz me prendia, de um tom alegre e bem definido. Seus cabelos castanhos; os olhos verdes e claros; os beijos ao pé da cachoeira davam-me a experiência de viver em um paraíso. Ninguém me entedia melhor do que ela. Eu passava semanas sem querer sair de casa, pronto para revê-la. Jogávamos pôquer e assistíamos filmes, combinávamos de ler livros ao mesmo tempo, aprender piano... ou seja, Beatriz era tudo para mim!
Até que algo aconteceu, e foi o fim do meu sonho...
Imaginem só o meu estado ao topar-me com o desastre que ocorrera ontem, na véspera do matrimônio, e que me despedaçou a fronte e congelou meu coração. Até aqui pareço não respirar. Há um buraco em meu peito que jamais será preenchido. Estávamos no clube Campestre, com diversos campos e lagos para as sessões de fotografia. Ela tombou do cavalo durante uma das sessões e, batendo a cabeça — o crioulo assustou-se com um foguete —, veio a sofrer trauma cerebral e expirado alguns minutos depois da queda, antes mesmo do socorro chegar. Quando me dei conta de tal cena, ao me aproximar, penso ter delirado. Não conseguia chorar e todos ao meu redor tornaram-se inaudíveis. Meu peito arrebentava aos poucos; a cabeça dela com o sangue que saía, e depois os funcionários e os paramédicos me faziam desacreditar no que via. Ali estava Beatriz e não podia estar morta! Juro que ela até me olhava e me acompanhava com seus olhos de quartzo ao ser carregada em uma maca até a ambulância. Julgo ter desmaiado em algum instante, e não pude me expressar nem falando nem mesmo olhando para os presentes enquanto tomava consciência dos fatos. Não tive palavras, e só agora escrevo com o sentimento de quem está morto, pois não penso existir mais vida dentro da minha alma.
A angústia em casos assim só pode ser meramente descrita (pois é impossível fazê-lo plenamente) por aqueles que já passaram por tais situações. Com ela morta, ninguém mais me alegra, e jamais serei o mesmo — Se é que não me perderei após este trauma.
Antes dela, nunca me senti bem socialmente, fazia amigos dificilmente e, portanto, não achava graça em conhecer pessoas novas. As mulheres pareciam-me sem originalidade, todas iguais umas às outras. Além disso, sempre tive gostos que podem ser considerados excêntricos para a sociedade atual, como caminhar por horas como um flâneur na cidade, cruzando pontes e cemitérios, observando de longe as junções sociais.
A solidão me corroía e deixava em meu coração um buraco onde um amigo poderia ocupá-lo. Alguém que eu pudesse desabafar e conversar sobre qualquer assunto. Até que Beatriz surgiu inesperadamente, tão parecida comigo que chegou a assustar! Teria alguma entidade que controla o tempo/espaço a posto em minha vida? Seria ela assim tão confortante a ponto de eu perder o interesse em outras pessoas e de ser frio com elas?
Ontem senti que perdi minha alma...
E há ainda um fato esquisito e altamente perturbador na noite de hoje, sábado, a primeira de luto. Sinto que devo registrá-lo para que, se em alguma hora eu perder o juízo — Prevejo que não poderei mais dormir —, alguém esteja ciente através deste relato.
Moro em uma vila nobre da cidade chamada Vergueiro, muito bonita pela jardinagem e presença de árvores. O casarão, projetado por Beatriz, de estilo americano e condizente com o gosto da arquiteta, é singularmente bonito. Ela amava o estilo antigo de edifícios, e o material usado era do melhor. Há um alpendre largo por volta e um pátio de cento e cinquenta metros na parte da frente, murado e sempre iluminado, onde mora o Tony, nosso pastor alemão. O edifício é um sobrado que surge na rua Silva Jardim. O terreno fora-nos herança do meu pai, e a construção fizera parte do projeto de pós graduação de Beatriz. O resultado final e a nota máxima da apresentação fizeram-nos decidir que lá moraríamos. Beatriz tinha vinte e três anos até então (imaginem a sua superior inteligência e disposição), e adquirimos a propriedade com um enorme desconto por ter sido projetada por ela.
Temos duas secretárias que trabalham de segunda a sexta. A primeira chama-se Valídia — apelido Val —, muito próxima; e a segunda Silvia, uma jovem dedicada que estuda farmácia pagando sozinha seus estudos. O meu quarto e de Beatriz fica no segundo andar à direita, subindo a escada do hall de entrada. Nele temos dois banheiros, um quarto de hóspede com dispensa à esquerda; e o quarto de Valídia perto da janela lateral da casa. Val mora ali desde que ficou viúva, e sempre a consideramos parte da família (ela seria madrinha do nosso casamento).
Ontem, já ao entardecer, depois do desastre mencionado e das condolências e rostos pavorosos, fugi de todos e peguei um táxi em direção a um bar do bairro Jardim América. Naqueles bairros perto do setor rural, pouco urbanizados. Passei ali não sei quanto tempo. Havia desmaiado e pessoas estavam preocupadas com a minha saúde. Eu só queria ficar sozinho, quem sabe para não chorar.
Comecei a beber penso que perto das nove da noite. No bar, podia-se ver os campos e as casinhas que circundam a cidade. O clima tornou-se feio, esperava-se chuva.
Depois de tomar não sei quantas garrafas de cerveja e bebido uns cinco copinhos de cachaça, sem falar com ninguém, desabei em lágrimas por baixo do teto lateral. Ninguém podia me enxergar ao canto entre a sombra de árvores e arbustos. Começou a chover forte, e eu tentava procurar Beatriz em meio ao nada, pensando: É tudo mentira.
Alguns bêbados começaram a puxar conversa, perturbando-me. Não conseguia me comunicar com eles, nem expor o meu sofrimento. Os meus olhos estavam vermelhos de lacrimejar e acredito que um ou outro dos frequentadores percebeu que algo errado acontecia comigo. Incomodado, creio que perto da meia noite, sai a pé sem me preocupar em andar sob chuva.
A caminhada durou mais de uma hora. As esquinas e ruas solitárias da cidade; os rumores de sábado à noite onde pessoas bêbadas vagueiam. “Estaríamos agora celebrando”. “A festa seria linda! Preparamos tudo de antemão”.
Em meio do percurso refletia o quanto eu a amava. Ninguém me tratou assim tão bem! Ela era como um anjo, a única pessoa que eu me importava e que me entendia. Pelas ruas, senti um consolo estranhíssimo, como se ela tivesse morrido há anos. Cambaleava e até ria! Um misto de sentimentos me assaltava a cada esquina. A escuridão das ruas, a luz alaranjada dos postes; acho que o álcool e as sombras faziam-me sentir até tranquilo, numa tristeza confortável e sutil. Por duas vezes encostei-me em um muro e ali sentei para tomar fôlego. As luzes ofuscavam os meus olhos e me traziam dores.
Assim que cheguei em casa, abri a porta e subi da escada até o quarto.
Vendo aquele lugar deserto, os móveis decorados para que tivéssemos a primeira noite como marido e mulher, com faixas brancas de seda e algumas orquídeas por cima dos cômodos; um quadro virado para trás perto do armário, eu sabia que ali estava o nosso retrato em Praga, de 2016, eu abraçando-a e ambos sorrindo.
Creio que Valídia não tivera tempo de voltar para cá, chocada que a coitada estava. Eu, com horror a tudo aquilo, consegui apenas trocar-me e desligar a luz com dificuldade. A cama é bem grande e nova, de colchão confortável de molas e penas (compramos a mais ou menos sei meses). O nosso quarto, espaçoso, ocupa metade do segundo andar. Há uma portinhola no teto que leva ao sótão; Beatriz sentia medo daquele lugar, penso que era só para me fazer rir.
Desatei a chorar com angústia, me virava para todos os lados, não queria ainda acreditar no que aconteceu. Como pode uma coisa dessas? Logo no casamento, logo comigo? Nunca solucei tanto como nessa noite.
Parece que foi há tanto tempo...
Assim que peguei no sono, e acredito ter adormecido alguns minutos depois da crise, tive um sonho esquisitíssimo. Ainda não estou seguro de que se tratava realmente de um sonho, alucinação ou sabe-se lá o que. Lembro de ter visto a praça Tamandaré, toda deserta cedinho da manhã, com sabiás cantando e quase nenhum carro passando. Uma memória antiga, muito querida. Lá nessa praça estava eu e Beatriz de mãos dadas, acredito que fora a primeira vez que nos beijamos, e ela estava angelical naquele dia! Usava um lenço marrom na cabeça como tiara, cabelos presos, olhos meigos. Éramos tão crianças e suspeitos da vida! No sonho a tocava e a sentia, mas não falávamos palavra. Ela estendeu a mão para um beijo, sinto um gosto diferente: Ela estava de anel, o mesmo que eu a havia comprado. Soltava risinhos despreocupados, como fazia quando estava alegre.
Depois, lembro ter acordado com gosto de álcool na boca e me sentido exausto. Ainda noite. Custou-me ir ao banheiro. Tony latia lá fora, o barulho repentino vinha de longe. Tudo escuro. Voltei a dormir sem olhar as horas.
Recordo bem de ter, a certa hora do sono, sentido mãos suaves que acariciavam a minha cabeça. Tais movimentos vieram aos poucos: primeiro quando eu beirava o sono profundo, voltando um passo atrás na escala do sono (confortava-me tanto!). Depois veio uma segunda etapa, suavemente me afagando a cabeça e acariciando o peito. Estava um pouco mais ciente e acordado, ainda que o arrepio que sentia não fosse absoluto a ponto de eu despertar completamente. Sentia-me tranquilo, naquele momento uma paz em saber que tudo estava em ordem. Eu sabia que ela estava ali, fora tudo pesadelo! Meu amor. Segurei-a pela mão; era dela, absolutamente! Um pouco fria... então achei a cabeça, seu perfume me enfeitiçava, do mesmo modo como ela usava na hora de dormir: Cheiro de alecrim. Os cabelos macios esparramados pelas cobertas. Seu aroma. Abracei-a ainda mais forte, e depois um segundo apagão.
Despertei, e dessa vez mais consciente, abri os olhos. O vidro da janela refletia os primeiros raios alaranjados do sol. Sabiás cantavam lá fora; Tony latia no fundo. Um peso sobre mim, mais leve. Era Beatriz virada para o lado da janela, de certo dormia. Então comecei a soluçar com enorme vontade. Lágrimas escorriam ligeiras de meus olhos molhando o ombro de Beatriz. Ela vira-se, pálida como a luz que vem da janela.
— Que foi amor?
— Não sei... Não sei o que me deu.
— Não fiques triste! Estou aqui, e sempre estarei. E olhe aqui — Disse-me ela, enquanto estendia a mão: — Sou sua esposa! Não é magnífico?
— Muito! — Respondi, sem conter as lágrimas.
Depois segurei a sua mão e dormimos lado a lado. Dei-lhe um grande beijo na nuca e adormeci outra vez, sentindo o molhado de lágrimas que caíra no travesseiro.
Quando acordei, no dia de hoje, a luz do sol entrava pela janela — de tom forte, de certo já era tarde. Ao tentar achar a mão de Beatriz do outro lado, não as encontrei. Virei para o lado,
estava sozinho.
Então notei a coberta de cima, o lençol, o cheiro de alecrim ainda presente. Assim amanhecíamos todo o dia: Ela adorava se perfumar antes de dormir. Corri desesperado atrás de Valídia. Achei-a na cozinha.
— Val! Venha cá, pelo amor de Deus!
Ela então arregalou os olhos e seguiu-me.
Ao chegarmos ao quarto, ela parou na porta como fazia antes de pedir permissão para entrar.
— Sente alguma coisa? — Indaguei...
— Como assim?
— Não sentes nada em nosso quarto?
Ela então disse, para o meu espanto:
— Desculpe muito por eu não ter tirado as coisas daqui antes, realmente me sinto muito estúpida! E meu filho, na verdade sinto apenas o cheiro típico do lugar.
— Que cheiro é esse, Valídia?
— De alecrim.
Fiquei estarrecido. Não tive mais um pingo de juízo. Mesmo assim o costume me fez disfarçar na frente dela, antes de dispensá-la.
Agora estou aqui, sem saber o que fazer, e Beatriz ao meu lado ontem à noite... Perderei o juízo? Fora apenas o choque do momento? Não sei dizer..., mas deixo aqui o registro mesmo que não acreditem. Pessoas me ligam e vêm à minha porta. Recuso tudo. Valídia e Silvia dizem que preciso de tempo para pensar, para consolar-me, e que qualquer coisa eu poderia contar com elas. Estão preocupadíssimos, mas a vida segue para todo mundo. A natureza é incrivelmente cruel.
O resto é tristeza, não há remédio para esta ferida. Gostaria de estar com ela, ainda que do outro lado desta triste vida.