A aluna das nove

Primeira aula

Trabalhei na escola de inglês W. de Tapejara, em 2021, e foi a maior loucura. Isso porquê eu morava na escola. Sim, eu morava em uma garagem anexa onde coloquei uma cama de casal. Usava o banheiro da escola para banho, era uma peça separada da outra. Dava aulas de manhã até à noite. Um casarão grande, com vários quartos transformados em salas de aula. Uma casa antiga, para alguns até triste quando anoitecia. Eu tinha turmas de todas as idades: Nas manhãs os menores, que estudam o ensino regular à tarde. Oito, dez anos. À tarde os adolescentes, ensino fundamental dois; e à noite os adultos, ou um que outro jovem que estudava de fora (muitas vezes tive aulas online). Até certa hora eu tinha colegas de serviço, a secretária, o gerente/diretor, a faxineira, um que outro professor. Mas nove em diante, por aí, todo mundo já tinha ido embora. Eu ficava lá, certos dias com aulas até as dez. Fiquei assim por quase um ano. Foi em 2021, a pandemia ainda acontecendo. Segunda-feira eu saía cedinho da cidade natal e chegava em Tapejara perto das oito, pronto para as primeiras aulas. Colocava a mala de roupas e acessórios por cima da cama e cumprimentava a secretária, para depois receber os alunos da primeira turma da semana.

Pois bem, nada de muito extraordinário aconteceu nesses dias, fora minha rotina em meio àquela gente feliz e educada.

Eu me sentia um pouco solitário lá, sem meus amigos, só com a rotina repetitiva dos dias, com as surpresas junto aos alunos. Eu os adorava e fui me aproximando deles, em uma amizade tranquila e profissional. Por vezes fazia eventos, cozinhava pratos italianos para eles, sob a penumbra do entardecer. Observava os grupos interagindo, brincando, enquanto lidava na cozinha com as panelas e as massas. Depois servia o prato, e eles comiam vorazmente; adoravam o que eu fazia. Cooking class, ou só janta, mesmo. O Halloween, dia das crianças, Saint Patrick, tudo era celebrado lá, como acontece na maioria das escolas de inglês.

Em uma dessas aulas noturnas, no entanto, tive uma experiência bem estranha.

Era terça-feira de março, meu chefe chamado Paulo disse que eu receberia uma aluna que faria inglês no último horário, das 21 às 22 horas. Disse que o pai não conseguiria levá-la antes, pois trabalhava em Tapejara e tinham que voltar à cidade de Muliterno depois das dez. Aceitei e continuei com a minha rotina, até chegar a hora da tal aluna, que se chamava Roberta.

Terça eu não tinha aula das 20 às 21, por isso organizei a sala para recebe-la. Todos já tinham ido embora, e assim eu ficava com as luzes e os tablets, computadores e a secretaria aberta como se tivesse gente. Ela chegou às nove e cinco. Eu estava no pátio da frente da escola. Parou um Astra preto no outro lado da rua. Vidros refletidos, não se podia enxergar dentro. Ficou ali mais um minuto. Abre a porta e sai uma garota com uma mochila nos braços. Noite escura, grilos cricrilavam e estava quente, meio abafado. Fui recebê-la abrindo a porta de entrada.

— Olá, tudo bem?

— Oi.

— Tu deve ser a Roberta, isso?

— Isso.

Esperei ela passar e fechei a porta. Era uma menina magrinha, franzina, com olhos assustados. Usava uma tiara rosa em seu longo cabelo castanho. Uma jaqueta jeans e calça de abrigo. Calçava all star vermelho. Bem parecida com as meninas que tinham aula durante o dia, mas ela era diferente, me parecia, sentia algo bem diferente. Media aproximadamente um metro e sessenta e cinco. Tinha lá seus treze, quatorze anos. Conduzi-a pelos degraus até à entrada.

— Já conhecia a escola?

— Sim... minha irmã estudou aqui.

— Faz tempo?

— Faz...

Entramos. Mostrei as salas. Com a luz pude perceber uma espécie de cansaço em seus olhos. Olheiras davam-lhe uma sonolência triste. Sua pele pálida se mesclava com a luz branca das lâmpadas da escola. Levei-a à sala de aula. Ela sentou-se. Tirou os livros da sua mochila e parou para fitar-me, desviando o olhar à cada segundo.

— Do you speak English?

— Ahm... not much.

Já pude perceber que ela não era iniciante.

— Teens four, right? (The book)

— Sim…

Ela já teve aulas. Percebi em seu caderno anotações, assim como o livro que estava já feito nos primeiros capítulos. Levei tamanho susto ao ver sua caligrafia que não pude deixar de brincar.

— How do you write like that!? — Disse, apontando com o dedo para melhor compreensão.

Ela expressa um riso, mais parecido com um suspiro do que qualquer outra coisa. Logo retomou sua face séria, como se estivesse entediada. Mas não era bem tédio... Parecia mesmo aquelas meninas que vivem em pequenos municípios, como Muliterno, de onde ela vem, e que não têm muita experiência em sociedade. Talvez seu círculo social seja pequeníssimo: Uns da família, outros da escola. Isso tudo eu imaginava, claro, ao observá-la. Queria deixá-la à vontade, como todo professor espera nas primeiras aulas.

A caligrafia dela era lindíssima! Melhor do que de todos os alunos que eu já tive, até mesmo dos adultos. Um traçado gótico, escolástico, desenhado de tal forma que levaria um escritor à loucura. Quando escrevia em inglês, a letra tomava uma forma itálica, e pude perceber essa diferença entre as línguas. Aliás, ela não rabiscava de qualquer jeito. Em seu caderno tinha separações onde ela fazia anotações. Pedi para olhar melhor o caderno, e ela consentiu em um melancólico “ok”. Ela notou meu espanto enquanto eu lia seus escritos. Disse, para minha surpresa:

— I know you’re surprised, but I’ve had much time to learn these things, since I stay home and I am not allowed to go outside.

Demorei para responder, espantado com aquela garota.

— Oh... yeah. It is amazing!

Deixamos disso e começamos a aula. Ela já sabia o que fazer. Um tempo para a lição no tablet e as minhas perguntas. Ela expira um cheiro doce, não de perfume, mas de folhas secas, de coisa antiga. Me fez lembrar da casa da minha vó, com as plantas em cada canto da casa. Seu hálito é gelado e inodoro. Arrepiei-me quando ela, ao dizer a parte “time to learn many things “; libera esse hálito que veio parar na minha face, arrepiando-me até a espinha. Pois bem, há mistérios aqui, mas minha profissão é ensiná-la e... depois o pai vem buscá-la e ela vai pra casa, para retornar só semana que vem.

Faço perguntas pessoais em inglês, e então a coisa começa a ficar ainda mais confusa.

— So... Could you tell me where you were born?

— Muliterno.

— Do you like to live there?

— I have no option.

Percebendo que o inglês dela não era nem um pouco ruim, arrisquei:

— But soon you grow up and you’ll have a chance to go somewhere else.

— If they let me…

As clássicas:

— How old are you?

— Fourteen… maybe.. .

— You’ll be fifteen soon, right?

Ela faz uma careta de uma maneira debochada, mas logo parece arrepender-se. Deve ter problema em expressar-se. Depois de um “I think so”, retomamos a lição. Ela responde às perguntas sem problema algum, tanto de pronúncia quanto de gramática. Faz a lição de maneira exemplar. Muito fácil para nós dois, e por isso acabo falando algo fora do livro, pergunto, por exemplo, sobre seus hobbies.

— I take care of plants, grow them, prune… Maybe next time I can bring some bromeliads for you to plant in the backyard.

— Bromeliads?

— Bromélia.

— Ah, got it. They are really beautiful. I would be glad to have one.

E assim ela se sente mais à vontade, mas sempre com aquela expressão acanhada, típica dela. No fim da aula, que é rápida, aparece o Astra em frente à escola. Ela sai. O cheiro de folhas secas, seu “goodbye” gelado. Estranho o pai nem dar as caras. Ela entra e o carro parte. Bem estranha essa aula.

Segunda aula

Tinha até me esquecido um pouco de Roberta, tão atarefado estive nessas duas últimas semanas. Ela não veio semana passada, o Paulo me disse que ela não conseguiria vir, pois o pai tinha viajado, algo assim. Aproveitei o tempo livre para ir à academia. Depois, perto das nove, fui passear pela cidade. Fui visitar um bairro onde encontrei o cemitério. Casinhas obscurecidas pela noite, aqui e ali. Entrei por uma brecha que achei ao lado do portão principal. Não achei viva alma lá. Reparava nas tumbas dos falecidos. Uma vez que outra um bicho noturno revoava por cima das lápides. Li as placas com a lanterna do celular. “Joana Ribeiro Toldo”, “Olá, Dona Joana, tudo bem?”. “Jânio Fontana...” Alguma coisa. Me assustei ao reparar uma Suindara a alguns metros de mim, parecia me encarar. Sai do cemitério e achei um boteco para tomar uma cerveja. Foi então que me lembrei dela. Que guria estranha... Como tudo é escuro nessas cidades pequenas. Imagina lá onde ela mora, Muliterno, nem duas mil pessoas deve ter. Vivendo nesses interiores tu se sente parte da pequenez do lugar, como se tu fosse esquecido por todos. Pois bem, vamos ao que interessa.

Nessa semana ela veio, nove e cinco. O carro parou e ela saiu. Trazia um vaso com a bromélia. Ao entrar disse o “Hello” e nem me olhou, mas parecia mais feliz, corada. Nessa hora falamos bastante sobre plantas. Ela sabe de muita coisa, até de superstições relacionadas a cada espécie. Disse que a bromélia...

— Is important for purification, soul cleansing, you know?

— I don’t know much about it. But it is beautiful, with its sharp leaves, it looks like daggers.

— It looks like the tip of daggers, doesn’t it?

— Yes, and it smells nice.

Fomos ao pátio e plantamos a bromélia. Achei uma pá na garagem. Contei que eu morava ali, ela começou a ficar risonha, a rir baixinho de tudo que eu falava.

— You really live here?

— Yes.

— Like a priest in his church?

— Like a priest in his church.

— That’s funny!

— Why?

— Don’t you feel alone or scared living in this place?

— Not much.

— Well, at least now you have your Bromeliads.

— Indeed, thanks!

— Not for that!

Iniciamos a aula. Ela estava mais à vontade, pareceu achar-me engraçado. Peguei umas bolachas, ofereci. Ela se pôs a rir.

— I don’t eat. — Disse.

— You don’t…

— Eat this. — E ria novamente.

— Ah, well. No problem. I’ll eat just one more, now.

— Go ahead.

Estranho que pareça, a aula continuou. Fizemos a lição e depois o Astra parou em frente à escola e ela despediu-se. “See you next week!”.

Terceira aula

Chegou na mesma hora na próxima semana. Mas dessa vez estava mais estranha, a pele enrugada, os olhos sem vida. Suas pupilas dilatavam mais ao fundo dos olhos. Ela fingiu cumprimentar-me com gosto, um “Hey there, Edu!” Mas eu vi que não estava nada bem. Nessa aula ela faria uma prova, uma sequência de exercícios que a escola requeria. Ela pediu para ver a bromélia, ao vê-la, disse.

— You know, teacher, it will flourish well, especially in December, January. They look amazing during summer.

Imprimi a tal avaliação e levei-a a uma sala, perto da sala Kids. Fiquei lendo um livro na secretaria. Estava mais fresquinho aquela noite. A TV com música estava sempre ligada quando a escola estava aberta, conforme a ordem.

People fall in love in mysterious ways

Maybe just the touch of a hand…

Impressão minha ou ela estava ofegante? Parecia que seu coração estava a mil. Fui oferecer água, mas ela, com os olhos baixos para a prova, rejeita. Volto para a secretaria. Nove e vinte. Uma ambulância passa na rua. Ninguém entra. Vazio, sim, nove e meia já é tarde aqui. De repente escuto um grito horrível. Quase cuspo o chá que bebia. Um rosnar apavorante que ressoou pela escola adentro. Vinha lá de fora. Empalideci, me levantei e fui atrás de Roberta. Ela não estava na sala. As grades da janela envergadas, como se alguém as tivesse puxado violentamente. Alguém saiu por ali. O barulho horrível continua, cada vez mais alto, como se um bicho estivesse morrendo. Passei pela cozinha, a luz da sala de jogos. O que eu vi foi terrível. Sobre o telhado da garagem, onde eu dormia, vi a menina agachada, mordia algo. Olhei bem e notei que se tratava de um gato. Sangue escorria da calha até o chão, o animal foi aos poucos perdendo o fôlego. Enxerguei só uma sombra e seus cabelos, os movimentos da boca selvagem e as contorções anormais de seu corpo. Mordia o bicho na garganta. Levei as mãos à cabeça, não sabia mais o que fazer. Segundos depois ela se apoia no muro e desce, em movimentos nada humanos. Parecia que a gravidade não era a mesma para ela. Levou o pé de all star vermelho na grade e desceu arranhando a parede. Depois me encarou, com um olhar de outro mundo; estava ofegante, emitiu um grito ameaçador, cheio de eco, podia-se escutar até da rua. Saiu correndo e escalou o portão de entrada, e como um lagarto, pulou fora e desapareceu. Manchas de sangue por todo lado. O gato preto com uma aterrorizante careta de morto. Eu, sem saber o que fazer, quem chamar, desliguei tudo da escola e passei um tempo na rua, não querendo voltar para aquele lugar. Pensei em voltar a Passo Fundo e nunca mais ver Tapejara, mas não. Fui ao posto e enchi a cara. Percebi que o Astra passava pela rua, mas nem dei bola, até fiz gestos. Voltei à garagem e me deitei, embreagado. No dia seguinte enterrei o gato no canteiro; a bromélia ali e eu querendo arrancá-la. Me esquecer do que aconteceu.

Expliquei apavorado ao Paulo, ele meio que não acreditou, mas ficou preocupado. Eu tinha aula só das onze em diante. Passei o tempo refletindo, até pensei que não poderia ser, que eu estaria delirando, ou em sonho. Mas não! O sangue estava lá, o buraco do gato morto também, a janela arrebentada!

Continuei dando aula e dormindo na garagem. Depois a história virou lenda. Paulo disse que o pai dela ligou cancelando as aulas, iriam se mudar. Eu não queria nem saber mais e me senti humilhado que algumas pessoas duvidaram do que aconteceu.

Mas o tempo passou e eu tive um convite de trabalhar em um colégio importante da minha cidade natal. Teve treinamento no fim de dezembro e começo do ano. Despedi-me com lágrimas, pois adorava todo mundo dessa cidade agradável, e eles gostavam de mim também. O que passou fica na memória; hoje não penso nela com tanto terror. Há coisas que acontecem que nem imaginamos. Vai saber...

Chega dezembro, vejo a bromélia no canteiro, enquanto espero o frete para levar a mudança. O ano novo promete muitas festas, e ano que vem uma vida cheia de perspectivas.

A bromélia parece encarar o céu noturno, com suas folhas afiadas como faca.

Ela é o único resquício da existência de Roberta.

Pasquali
Enviado por Pasquali em 11/09/2024
Reeditado em 18/09/2024
Código do texto: T8149313
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