A NOVA VIDA QUE O AVC SALVOU

Scaramouche, um homem que já havia enfrentado naufrágios, terremotos e enchentes, encontrava-se agora diante de um inimigo silencioso e inesperado: o tempo. Aos 60 anos, começou a sentir o peso dos anos em seus ossos. Ele, que sempre acreditara na força do presente e na capacidade de se reerguer, começou a achar que seu tempo como atleta estava chegando ao fim. o tatame do judô praticado por mais mais de 30 anos, onde aprendeu a cair e se levantar.

Aos 68 anos, quando finalmente estava prestes a se render ao envelhecimento, a vida, com sua ironia costumeira, lhe pregou uma peça. Scaramouche sofreu um AVC. Por um momento, o mundo pareceu parar. Ele, que tantas vezes desafiara a morte, agora se via à beira de uma vida de limitações. O corpo, esse templo que ele havia forjado com suor e determinação, estava ali, intacto, mas a fala, essa ferramenta vital de expressão, lhe fora tirada, incialmente parou de falar e levou um ano até  recuperar o dom natural de falar.

Durante um ano, Scaramouche lutou em silêncio. A cada tentativa de pronunciar uma palavra, a cada esforço para se fazer entender, ele redescobria a força que sempre estivera dentro dele. E foi nesse silêncio forçado que Scaramouche encontrou uma nova voz, uma voz que o conduziria a uma transformação ainda mais profunda.

Quando completou 70 anos, a dúvida que o assombrava aos 60 se desfez como névoa ao sol. Scaramouche percebeu que a vida, essa força indomável, não tinha lhe tirado nada; ao contrário, tinha lhe dado uma segunda chance. Decidiu, então, que não deixaria que o AVC o definisse, mas sim que ele definiria sua vida a partir daquele momento.

Iniciou corridas de rua e, surpreendendo a todos e a si mesmo, tornou-se bicampeão estadual em sua categoria. Competiu em Miami, cruzando a linha de chegada com a mesma garra que o guiara em suas batalhas passadas. Aos 74 anos, iniciou pedaladas que o levariam a acumular mais de 15.000 km, uma jornada que ainda não terminou. Voltou ao judô aos 70 anos até 1975, reencontrando o vigor da juventude e competindo no Campeonato Brasileiro de Veteranos.

No verão, a natação, uma paixão antiga, tornou-se sua companheira fiel. As águas que já o haviam desafiado em um naufrágio agora o acolhiam como um velho amigo. E foi também aos 70 anos que Scaramouche decidiu compartilhar sua história, escrevendo um livro que narrava sua vida de lutas, e seu renascimento pós AVC.  Mas ele não parou por aí; as crônicas de Scaramouche, mais de 700 contos, continuavam a fluir, cada um refletindo a vida que ele decidiu viver após o AVC.

Se não fosse o AVC, Scaramouche talvez tivesse sucumbido à ideia de que aos 60 anos estava velho demais para continuar. Talvez tivesse se resignado a uma vida de inatividade, de lembranças do que já foi. Mas o destino, em sua sabedoria cruel, lhe deu uma nova perspectiva. Ele entendeu que a vida é feita de escolhas, e que cada momento pode ser o início de uma nova jornada. Scaramouche não apenas sobreviveu ao AVC; ele renasceu. E em seu renascimento, descobriu que a verdadeira idade está na mente, e que o corpo, por mais que envelheça, ainda pode ser a ferramenta de grandes feitos, quando guiado por uma alma indomável.

Assim, Scaramouche continuou, não como o homem que quase desistiu aos 60, mas como o guerreiro que renasceu aos 70, e hoje em 2024 está com 81 anos. E em cada passo, em cada braçada, em cada crônica, ele reafirmava sua crença de que a vida deve ser vivida plenamente, não importando os obstáculos que o destino coloque no caminho. Sem o AVC a sua vida não teria passado por esse renascimento.

Neri Satter – Setembro de 2024    CONTOS DO SCARAMOUCHE

Scaramouche
Enviado por Scaramouche em 01/09/2024
Reeditado em 04/09/2024
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