Herança de Sangue
Laurinha esperava sempre no mesmo ponto de ônibus para ir ao emprego. Era uma rua ordinária. Frente ao ponto havia um sobrado velho, desses portugueses, com data de 1910.
Percebeu há alguns dias uma mulher, já velha, debruçada na janela do andar térreo. Toda vez que passava, ela acompanhava seus passos com uma feição grave e olhos bem abertos.
Na primeira vez até, por educação, cumprimentou sem sucesso. Tentou em mais três oportunidades, mas aquele rosto sério, com a profunda marca dos anos, apenas lhe mirava imóvel. Parecia querer dizer algo, numa ânsia do olhar, mas era silêncio.
Laurinha, que precisava tomar o ônibus, criou certo receio daquela dona. Evitava mesmo o contato visual. Mas sabia, ou mesmo sentia, que ela estava ali. Sentia o poder de sua vigilância, como um peso, um agouro matinal.
Certo manhã tomou coragem: encarou a velha. Imóvel, guardava a mesma expressão. Porém seu olhar exibia uma crosta opaca, azulada. Com mais atenção pôde perceber até que sua pele descolava-se do rosto já muito magro.
Tinha a certeza definitiva: - estava morta.
Só poderia estar morta. A menina já lamentava o mau juízo feito e sentia pelo fim da pobre mulher. Como ninguém havia visto? Não tinha filhos?
De repente, aquele corpo vivo se levanta e a interpela como uma voz arranhada e grave: - Tu me respeita! Eu podia ser a tua mãe! A tua mãe!" - e bateu a janela, trancando os ferrolhos violentamente.
Porém há quem diga que o proprietário do sobrado, Seu Fernando, não permite nem venda, nem locação. Prefere deixar cair fechado. Ninguém mais quer reformar isto. É dinheiro demais. Trabalho demais. E quem viveria num sobrado desses, sabendo o que aconteceu ali?
A Janela nunca mais foi vista aberta.