Prova de Amor
Eles assistiam a um filme noir com Edward. G. Robinson. Estavam abraçados naquela noite fria de sábado. De repente, Arnaldo parou o filme.
- Você vai ao banheiro? – inquiriu Helena, enquanto Robinson olhava para Joan Bennett.
- Não – replicou ele, contemplativo. – Estou aqui pensando.
- Pensando no quê? Você sabe que Alice coloca Richard numa enrascada. Já assistiu a esse filme várias vezes!
- Não é sobre o filme, Helena. Fritz Lang já me perdoou. Mas é sobre você. Quero dizer, sobre nós.
Helena franziu o cenho. Não esperava uma discussão de relacionamento àquela hora e naquele momento crucial de Um Retrato de Mulher.
- Diga-me. O que é que você tem?
- Eu acho que não consigo viver sem você – começou ele. – Sabe todos os momentos como este que passamos? Eu creio que não conseguiria fazê-lo com outra pessoa.
Helena deu de ombros. Levantou-se, alcançou um cigarro e dirigiu-se até a janela.
- Mas por que essa inquisição?
- Porque penso que para você seria mais fácil. Eu sou um ser humano delével.
- Arnaldo, querido, com quem mais eu discutiria os filmes de Woody Allen ou Ingmar Bergman, apreciaria um vinho ao som de Cole Porter ou comentaria algum trecho de livros de literatura latino-americana?
- Há muitas pessoas que adoram Borges e apreciam Márquez.
- Essas muitas pessoas não são você – falou ela, a arremessar a ponta do cigarro pela janela.
- O que eu quero dizer, querida, é que há uma incompatibilidade de gênios aqui.
- Depois de vinte anos de casados você me diz que há uma incompatibilidade de gênios? O que está acontecendo? Está me traindo?
Arnaldo coçou a cabeça e tornou a ligar o filme. Helena, contudo, desligou a tevê da tomada.
- Responda-me, Arnaldo – exclamou ela. – Você nunca consegue se expressar direito. Parece que tem medo de mim desde o dia em que nós nos conhecemos pela primeira vez.
- De fato tenho medo – replicou ele. – Principalmente aos domingos de manhã.
- Não estou com graça.
- Eu não sei bem o que dizer. É alguma coisa de sentimento.
- E, claro, você não sabe exprimir teus sentimentos.
- Pois...
- Façamos uma brincadeira então – propôs ela.
- Qual?
- Vamos demonstrar nosso amor um pelo outro.
- Como?
- Primeiro, fecharei meus olhos e você me dá uma prova do teu amor. Tudo bem?
Arnaldo franziu o cenho. Helena acercou-se dele e fechou seus olhos.
- Pode começar, querido.
Sem muita inspiração para qualquer coisa, Arnaldo não conseguia pensar em como demonstraria seu amor para sua esposa. Súbito, aproximou seu rosto ao dela e deu-lhe um muxoxo.
Helena abriu os olhos.
- É isso?
- Sim, eu não sei demonstrar nada.
A parecer frustrada, Helena fingiu compreender a situação.
- Agora é a tua vez – disse ela. – Feche os olhos e aguarde minha prova de amor.
Arnaldo fechou seus olhos.
Helena, a passos cautelosos, retirou-se por um instante. Dirigiu-se à cozinha e volveu à sala de estar. Diante do marido, anunciou:
- Aí vai!
Arnaldo abriu os olhos subitamente quando sentiu o corte da faca em sua barriga. Helena impôs mais força a cortá-lo de baixo para cima. Ela sorria para Arnaldo – que começava a perder suas forças.
- Amar é deixar ir, querido – comentou ela.
Ele caiu de joelhos, a agonizar. O sangue se espalhava pelo carpete. Súbito, desferiu o rosto no chão, morto.
Helena – que pensara ter sido traída pelo marido – desviou-se do cadáver sobre o carpete, tornou a ligar a tevê, sentou-se ao sofá com as mãos sujas de sangue e terminou de ver Um Retrato de Mulher.