O copo de leite
Gilberto trabalhava na mesma padaria havia 20 anos. Apesar de gostar do que fazia, estava triste porque a bursite o tinha afastado do seu amado forno e dos seus pães maravilhosos. Não saberia fazer outra coisa se não produzir seus pães e doces. Trabalhar no balcão tinha suas vantagens: gostava de atender os clientes e conhecer cada um deles pelo seu pedido. Muitos também gostavam de papear, fazendo seu dia passar rápido.
Ele abria a padaria toda madrugada. Aquela quarta-feira tinha amanhecido fria e nublada, a padaria estava vazia, e o frio tinha espantado até seus clientes mais fiéis e pontuais. Ele não gostava de ficar parado e foi lavar novamente os mesmos copos para se movimentar, quando escutou uma voz baixa e suave:
— Senhor, senhor, por favor, me dê um copo de leite?
Ao olhar para o balcão, viu uma jovem vestida de branco. O cabelo cobria metade de seu rosto, ela não parecia estar molhada da chuva e não carregava nenhum tipo de carteira ou bolsa. Ele entendeu que a moça estava com fome, porém os pães só ficariam prontos às 6:00. Ele pegou um copo, encheu de leite e deu para a jovem, que se virou e saiu caminhando descalça, com os pés sujos de lama. Ele chegou a chamá-la para falar que ela não poderia levar o copo, porém a moça não ouviu e adentrou naquela chuva forte.
Essa mesma moça apareceu no dia seguinte e fez o mesmo pedido, vestida com as mesmas roupas. Sua voz, dessa vez, parecia mais triste e quase não se ouvia ela falar. Assim que ela saiu, Gilberto pôs-se a segui-la. Ela andava com passos firmes e rápidos, e ele logo atrás.
A mulher parou de frente ao cemitério e entrou. Gilberto, por sua vez, assustado, queria ir até o fim para descobrir onde a moça vivia. Será que ela dormia em algum mausoléu aberto para se proteger do frio? Preocupado, continuou a segui-la. Ela, por sua vez, fazia ziguezague entre as lápides e grandes estátuas, e ele atrás, até vê-la desaparecer completamente em frente a um túmulo.
Gilberto parou sem entender como tinha perdido a mulher de vista se ela estava na sua frente, quando começou a ouvir bem fraco o choro de um bebê. Ele se arrepiou todinho, sentia um calafrio percorrer sua espinha. Passou a fazer o sinal da cruz e a rezar, enquanto o choro do bebê aumentava. Decidiu que estava ficando louco e correu tentando encontrar alguém no cemitério. Entre os corredores, chocou-se de frente com um homem que, por suas roupas, parecia um coveiro. Puxando-o pelo braço aos berros, falou sobre o choro de bebê.
O coveiro, por sua vez, achou que ele estava bêbado e, ao parar de frente ao túmulo, também ouviu o choro de uma criança. Não parou para pensar, e com a pá nas mãos, começou a cavar. Só parou quando bateu no tampo do caixão. Nesse momento, Gilberto e o coveiro ouviram o choro mais alto e, voaram os dois juntos com as mãos abertas pra cima do caixão, puxaram a tampa com tanta força que a quebraram. O que se revelaria naquele caixão tiraria o sono de Gilberto e do coveiro por anos.
Deitada com um rosto quase perfeito e sereno, usando um longo e bonito vestido branco, estava a jovem que lhe havia pedido um copo de leite dois dias atrás. Em seus braços, um bebê pequeno chorava copiosamente.
A jovem morreu grávida e pensaram que seu bebê também tinha falecido. Ele nasceu dentro do caixão, sozinho, já lutava por sua vida sem nem ter começado a vivê-la. O espírito inquieto de sua jovem mãe ia todos os dias atrás de alimento para ele, provando assim mais uma vez que, até depois de morta, a mãe jamais deixaria de cuidar de seu bebê.