Morte sonâmbula.

Toda manhã, quando acordava, encontrava um corpo ao seu lado. Defunto todo, pálido, mas ainda não em decomposição; coisas de algumas horas feito morto. A primeira vez foi um trauma — não que tenha se acostumado, mas toda primeira vez é desesperadora —, depois, aos poucos, foi se criando a ideia mais de descoberta do que de choque. Um total de dez enterros que participara, todos destes cadaveres surgidos em mistério durante seu sono. Fazia questão de ir ao cemitério acompanhar a despedida dos familiares, apesar de se sentir um pouco deslocado em estar presente não por qualquer sentimento pelos mortos, mas por, simplesmente, ter sido, talvez, a última companhia destes; apesar de que, imaginava, eles já chegavam mortos em sua cama.

Nunca encontrara resquício algum de sangue, e todos os corpos estavam inteiros. Tornara-se velho conhecido da polícia, mesmo nunca cometido crime algum nem sofrido qualquer assalto ou coisa assim — eram os interrogatórios. Fosse menos séria a coisa, teria certeza de que os funcionários da delegacia, assim que atravessasse a porta, saudariam com piadas. Não preciso nem dizer que ele era principal suspeito, mas prova alguma contra ele tinham, tirando os próprios corpos que o próprio fazia questão de relatar. Nenhum perito forense fez qualquer acusação. Vivia essa liberdade suprimida pela, de um jeito ou de outro, suspeita dos oficiais, que diziam a todo momento: "Investigaremos!", mas só diziam, não entravam em detalhes, o que podia significar: "Você é o culpado, a gente sabe, espertinho, e não diremos nada para você não se precaver!".

Por mais que fosse preocupante essa suspeita, tratou de buscar os próprios meios para desvendar esse mistério, ficando acordado toda a madrugada até acontecer o fenômeno; e que nunca acontecia. A coisa só se dava quando ele dormia. Até tentou fingir sono, sem despregar os olhos por horas, mas, assim que recebia a luz do dia, e virava, ligeiro e ansioso, para ver, encontrava o vazio de outrora. Instalou câmeras por todo o perímetro da casa, nada descobriu, ainda mais porque, quando acontecia, por apelação do mal, as filmagens eram cortadas na gravação e só retornavam as imagens quando um morto estava depositado à cama, ao lado dele.

Chegou até a se questionar: "E se realmente for eu?". Tentou impossibilitar, se repreender, e depois convenceu-se de que era mesmo loucura, além de que os agentes descobririam logo, até porque os carros estacionados nas ruas que cercavam a casa, e que passavam a noite inteira no mesmo canto, sendo de vizinho algum, não tinham nem um fumezinho que se prezasse para esconder alguns rostos conhecidos da delegacia, ainda mais atônitos voltados para a residência em questão. Não era obra de sonambulismo, julgava; e que diabo de sonâmbulo é esse que faz essa diabice toda e não encontra um infeliz para socá-lo bem forte para dormir o próprio sono? Era desgraça, era loucura, pendia da curiosidade para, novamente, o desespero. Digo, perdeu o emprego, todo mundo evitava sua presença, era investigado em "segredo"; beirava uma cova funda, portanto.

Caminhando, tiradas forças sabe-se lá de onde, via conhecida, pertinho, quase casa, ainda mais, se deixou às nostalgias: o ofício retirado. Era, pois, coveiro. Andou pelas estradinhas de lá do cemitério, por sobre as gramas e terras, se entrelaçando nas lápides. Revisitou os lugares dos mortos com os quais dividira a cama. Os nomes e fotografias. Fazia um prelúdio, será que você já percebeu? Se sua companhia eram os mortos, porque viver entre os vivos? Fosse certo: que eles estavam chamando. Os olhos fechados, o corpo inerte e longe de calor, agitação, medo e tudo o mais. Eles chamavam, era certo. E já não interessava mais a razão daquele mistério, já descobrira: a morte chegou e avisava. E tinha de morrer, por si mesmo. É como quem visita uma casa, ao lado do consultor, conhecendo a futura morada. Fosse o que você, havia decidido: que o suicídio seria naquele dia, à noite.

Viramundo, veio a lua, ganhou o céu e as estrelas pediam um irmão. Por audácia ou conformação, deu um tchauzinho aos policiais disfarçados no carro, até retribuíram, e entrou na penumbra da casa. Por algum quê poético, decidiu a corda responsável por seu enforcamento ser feita dos panos da cama. Preparou o lugar, de modo que, quando morresse, o defunto encontrado seria o seu. Se largou para um espelho, ter ideia de quem era pela última vez, já que não sabia mais havia tempo. Muito tempo; você não entende. E viu só sombras, silenciou, sozinho, o seu ser: "idiota". Pegou uma vela, que era o que faltava, nada dessas luzes falsas, e acendeu. A chaminha, a cor tomando tudo, e lá fora se vendo algum inferno tomar posse daquela casa, os demônios trazendo mais um morto, caminhando pela casa arrastando o mistério e depositando na tal cama. Todos eles se comunicaram, porcalhando na rádio: "queima de arquivo! queima de arquivo!". Foi que ele, diante de toda imbecilidade, conseguiu se ver, reflexando, ossudo, caveira, capa preta, foice na mão: "Sou eu, afinal, a Morte."

Rodrigo Hontojita
Enviado por Rodrigo Hontojita em 05/06/2024
Código do texto: T8079372
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