Dual noturno
*(conto escrito para a antologia 'Foi naquela noite', de 2024, da editora 'Itapuca'.
A probabilidade de pairar no ar certos aspectos indicando que uma anormalidade está para acontecer é real; mas talvez a grande questão seja a possibilidade de percepção delas por partes dos humanos. Será que de fato é possível notar indícios para detectar as anormalidades, até antes mesmo delas acontecerem, ou isso é algo que foge das faculdades humanas?
Estava frio, era noite, e o vento balançava as folhas das árvores. Ele era sutil e parecia acariciar o que tocava. Em determinados momentos, o vento fazia o famoso sonoro dos lobos, que se propagava suavemente em meio a geada, num harmonioso concerto noturno.
Alheia a tudo isso e dormindo profundamente, Alexis se encontrava em seu quarto. Tinha resolvido dormir mais cedo, pois, teria um compromisso de trabalho logo pela manhã; o que a fez se deitar por volta das nove horas. Algo que normalmente não acontecia, já que era do seu hábito dormir tarde. Seu quarto era aconchegante, fazendo quase sempre sua noite de sono ser impecável. O frio de fora não teria jamais como se fazer presente por ali, afinal, a única e grande janela tinha uma ótima vedação; e o aquecedor completava a climatização ideal para dormir bem naquele período de noites gélidas.
Desde que havia se deitado para dormir, já havia se passado um pouco mais de duas horas. Enrolada em seu grosso e volumoso edredom, Alexis se mexia na cama. Não costumava se mexer muito enquanto dormia, mas por algum motivo seu sono não era sereno dessa vez. Em certa inquietação, virando de um lado para o outro, ela acordou. Descobriu a cabeça e olhou ao redor do seu espaçoso quarto, fixou os olhos na escrivaninha, ao lado direito de sua cama, tateou brevemente e pegou seu celular para conferir as horas. Faltava, ainda, um pouco mais de meia hora para a meia-noite. Devolveu o celular para onde ele estava e se cobriu novamente; feliz por ter mais algumas horas de sono, até o despertador acordá-la para levantar às seis da manhã. Não demorou mais que dois minutos para dormir de novo, mas não pôde dar continuidade ao seu sono. O silêncio acolhedor do seu quarto foi rompido e Alexis acordou repentinamente, por conta do seu celular estar vibrando na escrivaninha; era Briana, sua melhor amiga, ligando. Atendeu a ligação imediatamente e percebeu que algo estava acontecendo com sua amiga.
— Alexis, amiga, preciso de você!
— Briana, o que está acontecendo? — disse Alexis se ajeitando na cama.
— Então, eu... olha, não estou muito bem... eu...
— Diga, Briana, o que houve?
— Estou... — Briana fez uma pausa e começou a chorar sutilmente.
— Briana, você está me deixando nervosa, amiga. O que está acontecendo? — falou Alexis perdendo um pouco o controle, mas prosseguindo. — Você já saiu do barzinho onde estavam comemorando o aniversário do John? Não estou escutando um ruído sequer de onde você está.
— Não estou mais lá, amiga... — Briana fez mais uma pequena pausa e prosseguiu: — aconteceram algumas coisas, estou naquele posto de gasolina desativado, que você sabe onde fica... preciso de você, amiga.
— Briana, o que aconteceu? O que você está fazendo nesse posto?
Briana repetiu que precisava dela e desligou.
Alexis era uma mulher vaidosa, jamais sairia no portão de casa sem estar minimamente arrumada e, pelo menos, com uma leve maquiagem; mas dessa vez era uma situação incomum. Algo de errado estava acontecendo com a sua melhor amiga e não perderia um segundo sequer para ajudar Briana. Saltou da cama e se vestiu com as roupas que estavam pela frente. Não olhou no espelho nem sequer perdeu tempo com nada que comumente fazia para sair de casa; e em menos de dois minutos já estava em seu carro, a caminho do posto desativado, onde se encontrava sua melhor amiga. Sua mente se perguntava sobre o que poderia ter ocorrido, já que a comemoração do aniversário de John iria até de madrugada, num barzinho que costumavam frequentar. Aliás, a própria Alexis estaria nessa comemoração, caso não tivesse um compromisso de trabalho logo cedo. Pensou em ligar para algum dos amigos em comum, dos que estavam nesse barzinho, para tentar saber de algo, ou para o próprio John, mas decidiu apenas dirigir rapidamente ao encontro de Briana, pois, não queria perder um segundo sequer. Como era tarde da noite, havia poucos carros na rua e resolveu não perder tempo respeitando os sinais de trânsito, como costumava fazer. O posto não era longe de onde morava, assim como o barzinho também não, e por estar correndo acima do que quando normalmente dirige, Alexis não demorou para chegar. Avistou Briana pela janela do carro antes mesmo de descer dele rapidamente. Não bateu a porta do carro e apressadamente correu na direção da amiga, que estava sentada num banco de concreto, perto de onde eram as bombas de gasolina. Abraçou Briana por algum tempo, depois segurou afetuosamente o rosto dela com as duas mãos, olhou nos olhos dela e disse: — o que houve, Briana? Por que não está no barzinho no aniversário do John? E por que veio para cá? Me deixou preocupada.
Eram muitas perguntas e Briana apenas se desvencilhou das mãos da amiga, olhou nos olhos dela, depois a abraçou dizendo: — olhe, Alexis, não estou muito bem. Ainda bem que você veio, minha amiga. Tem como me levar para casa?
Alexis não estava entendendo nada. Estava achando Briana estranha, pois, se conheciam desde pequenas e nunca a tinha visto dessa maneira. Estranhou também o fato dela não ter nenhum cheiro de álcool nem aparentar sinal algum de embriaguez, já que esse era o normal de quando se reuniam; principalmente para comemorar o aniversário de algum amigo. Mas Alexis deixou todos os pensamentos daquela situação esdrúxula de lado e apenas respondeu: — sim! Claro que sim, amiga.
No carro, Briana estava encolhida no banco do carona, olhando fixamente para frente, enquanto Alexis dirigia devagar, pensando em tudo que estava acontecendo e olhando de canto de olho para sua amiga; tentando não perder a atenção ao volante. Briana não morava no mesmo bairro que Alexis, onde também ficavam localizados o barzinho, onde ocorria o aniversário de John, amigo em comum, e também o posto de gasolina desativado, onde toda a estranheza se fez presente. Contornando uma rotatória, para entrar numa avenida que as conduziria mais rápido até a casa de Briana, que era localizada num bairro vizinho, Alexis aproveitava a ausência de carros na noite para dirigir mais tranquila. O caminho que percorreriam as levariam a passar em frente ao barzinho onde estavam seus amigos. Evidentemente não parariam lá, pois, Briana havia sido enfática ao querer ir para casa, e Alexis nem questionou isso, por também achar melhor. Às vezes, o sono resolveria, ou amenizaria, o que estivesse afligindo sua amiga, foi o que pensou.
O barzinho estava movimentado e, por estar dirigindo, Alexis viu apenas de relance, e rapidamente, os amigos que estavam por lá, bebendo e comemorando. Mesmo com a distância, Alexis pareceu ter visto algo no barzinho que seria impossível se ser real. Nesse momento, um calafrio tenebroso percorreu sua espinha e um suor frio ameaçou lhe tomar. Briana também tremeu quando o carro passou em frente ao barzinho, mas ela continuava em silêncio e com o olhar fixo, para frente. Alexis, mesmo tomada por um turbilhão de sentimentos e pensamentos estranhos percebeu a reação da amiga. Quando se passou alguns instantes, Alexis perguntou se estava tudo bem, mesmo sabendo que nada estava bem, nem mesmo com ela, e a resposta da amiga foi sucinta: — sim, estou. Disse isso olhando pela primeira vez, dentro do carro, para Alexis; mas depois continuou olhando fixamente para frente.
Em poucos minutos já estavam na entrada da casa de Briana. As duas desceram do carro e se abraçaram. Alexis ensaiou puxar assunto, mas se conteve, afinal, se sua melhor amiga quisesse conversar naquele momento, como sempre queria, ela assim faria. Mas diante de toda aquela estranheza que acontecia sob a noite, apenas abraçou Briana mais uma vez, emanando todo o amor da amizade que possuíam.
— Fique com Deus, amiga, procure descansar e depois conversamos — disse Alexis, se sentindo estranha e em tom sentimental.
— Obrigado, amiga, você é verdadeiramente minha amiga — retribuiu Briana, olhando tão profundamente nos olhos de Alexis, que essa se sentiu inexplicavelmente mais estranha.
Observou o portão bater, após Briana entrar e entrou no carro. O calafrio pavoroso que sentiu quando passaram em frente ao barzinho tomou conta de Alexis novamente. Não estava mais se importando com o compromisso de trabalho que teria dentro de poucas horas, pois, a noite e a madrugada já haviam se misturado, restando poucas horas para que seu despertador tocasse. De súbito, resolveu ir ao barzinho; ligou o carro e, ao contrário de quando fez o trajeto para deixar Briana em casa, acelerou para chegar mais rápido onde queria. Não seria capaz de esperar mais um segundo para saber de algo que minimamente explicasse um pouco toda a bizarrice que se fazia presente na noite. Preferia, sem dúvidas, ouvir primeiro as palavras de Briana, mas na impossibilidade disso, serviria saber dos outros amigos alguma coisa.
Não conseguiu estacionar tão perto do barzinho, por conta dos outros carros que estavam estacionados mais perto dele. Era normal que ele ficasse movimentado pela noite e a maioria dos frequentadores ia de carro, fazendo com que os últimos, que chegassem, tivessem que estacionar um pouco mais distante. Alexis bateu a porta do carro e apressou o passo; chegou rapidamente onde se encontravam algumas das mesas e cadeiras que ficavam na calçada. Cumprimentou alguns conhecidos e um dos garçons que atendia uma das mesas e se dirigiu até onde estavam seus amigos; esses que se espantaram com a presença dela. "Ué! Não ia ter um compromisso de trabalho pela manhã?", disse um. Outro falou em tom de ironia e felicidade: — não resistiu e veio tomar umas, né, Alexis?
Ela ignorou tudo, até mesmo o abraço do aniversariante e o aceno de alguns outros e proferiu em voz alta: — o que aconteceu com a Briana?
Mesmo não estando sóbrios e alguns até mesmo mais embriagados, todos os amigos perceberam o tom e o jeito sério de Alexis. Um dos amigos, o que estava mais bêbado, ainda assim resolveu ironizar: — qual é, Alexis, nós que bebemos e você quem fica bêbada? Ou andou tomando umas por aí?
Mais sério, John, o aniversariante, respondeu: — como assim, Alexis? Não aconteceu nada. Ela está apenas no banheiro. Você está bem?
Os olhos de Alexis saltaram e o calafrio voltou com tudo quando ela escutou que Briana estava no banheiro. Instintivamente correu para o banheiro do barzinho, sob o olhar de espanto de seus amigos, entrou na ala feminina e imediatamente seu corpo gelou, após ficar paralisada ao ver Briana em pé, lavando as mãos e se olhando no espelho. Briana não teve nem tempo para se alegrar com a presença da amiga, pois, notou que Alexis estava pasmada. Completamente estática, pálida e suando frio. Uma avalanche inundava sua mente, que parecia não ter capacidade para suportar tantas informações aleatórias e imprecisas. Não havia dúvidas, sentiu que estava diante de Briana, sua amiga de sempre; mas, e a outra? Quem era aquela outra, idêntica a ela, que acabara de levar em casa há poucos minutos e que ainda entrou nela? Quando passou de carro, pela avenida, e olhou rapidamente para o barzinho, viu de relance a maioria dos amigos e imaginou ter visto Briana por lá, mas mesmo diante a estranheza da noite, não seria possível que ela estivesse no barzinho, pois, estava do seu lado no carro. Porém, constatou que não só era possível, como de fato foi isso que ocorreu. Encontrar Briana no barzinho, do modo como sempre a conheceu, resolvia uma parte da questão. Mesmo estática e estupefata, não restavam dúvidas que agora estava diante de quem conhecia muito bem. Mas, o calafrio lhe tomava quando sua mente lhe bombardeava com imagens de poucos minutos atrás, da outra Briana. Alexis ficaria bem, tentaria associar tudo, por mais que isso nunca fosse lhe sair da cabeça. Conversaria com seus amigos, explicaria tudo e tinha ciência que alguns duvidariam daquilo que falaria. Não se importaria com isso porque sabia que seriam os questionamentos que lhe assombrariam. Perguntas como "quem era a outra Briana?", "que diabos poderia ser aquilo?" rondariam eternamente a sua mente. Esse ocorrido não a impediria de viver, mas seria algo que jamais esqueceria, afinal, 'foi naquela noite' que Alexis teve a confirmação de que o sobrenatural é real; e que ele ronda os seres humanos o tempo todo, esperando apenas uma brecha oportuna para se mostrar.