O Enigma
Ernesto chegou naquele lugar como se fugisse de si mesmo. Uma pequena cidade do interior distante da capital onde sempre viveu. Não foi uma decisão fácil. Sua razão tentava falar mais alto, mas a insatisfação deu um grito de liberdade. Tinha a sensação de que precisava conhecer novos ares, deixar pra trás o que não lhe cabia mais.
Era médico. Neurocirurgião de sucesso, salvou muitas vidas. Sua vida era trabalhar como se fosse uma máquina. A mulher que tanto amou cansou de esperar que tivesse tempo pra ela e lá se foi para os braços de outro que não tinha tanto dinheiro e sucesso, mas tinha tempo e amor pra dar. Ficou sem chão. Seguiu em frente, começou repensar sua vida. Ganhou muito dinheiro, mas sempre sentia que algo lhe faltava. A sensação de salvar uma vida era gratificante, mas sentiu que era hora de salvar a si mesmo.
Depois de uma crise de ansiedade em que pensou que fosse morrer decidiu que ia mudar de vida. Escolheu morar no interior. Conhecer um lugar tranquilo e encontrar a paz. Quem sabe atender pessoas que precisassem sem pensar se elas podiam pagar. Tinha cinquenta e seis anos e era chegada a hora.
O acaso o levou até uma cidade de quase vinte mil habitantes. Era uma cidade agradável. O rio que corria ali fazia parte da paisagem e da vida das pessoas. Às suas margens formavam-se minúsculas praias de água doce aqui e ali. Era um povo acolhedor e agradável. Ele sempre foi um homem austero, sério e de poucas palavras. Mas lá era impossível. As pessoas falavam pelos cotovelos e onde chegava encontrava alguém se apresentando, querendo saber quem era ele ou porque mudou pra lá.
Como em todo lugar, tinha os muito ricos, os muito pobres e aqueles que gostavam de ostentar mesmo sem ter posses. Conseguiu uma casa confortável pra morar e um lugar para montar seu consultório. Seria apenas um clínico geral. Se o paciente pudesse pagar seria bem vindo e se não pudesse também.
Chegou ao seu consultório um homem de cinquenta e poucos anos. Estava acompanhado pela mãe. Só de olhar pra ele viu que tinha problemas sérios. Caminhava com dificuldade, braços e mãos não tinham muita coordenação motora, tinha problemas de diccão, às vezes babava e seu olhar era vazio. A mãe disse que soube que era neurocirurgião e por isso estava ali. Queria que ele tentasse saber qual era o problema do filho. Contou que ele foi um rapaz normal e saudável até os dezoito anos. Um dia saiu com dois amigos, teve um desmaio e ficou assim. Eles contaram uma história fantasiosa sobre uma luz que passou por sua cabeça e o fez desmaiar. Ninguém acreditou. Pensava que usou alguma droga ou o espancaram numa briga, embora não houvesse marcas em seu corpo na época. O fato é que desde então ficou nesse estado. Ele examinou o homem. Fez várias perguntas, mas não chegou a nenhuma conclusão. No entanto se interessou pelo caso e pediu exames.
Os exames não foram conclusivos e depois de um tempo, intrigado com a situação, decidiu com sua mãe que iriam pra capital fazer exames de imagem detalhados.
Ao examinar os exames teve uma surpresa. Era como se o rapaz tivesse feito uma lobotomia, como se tivesse retirado um tumor. Isso explicava a situação.
—A senhora não me disse que seu filho passou uma cirurgia.
—Ele nunca fez cirurgia.
—Como não? Não teve que retirar algum tumor?
—Não. Isso nunca aconteceu.
Examinando melhor o paciente não encontrou nenhuma cicatriz na cabeca. Além do mais raramente uma cirurgia deixa sequelas tão graves, mesmo no tempo que teria sido feita. O caso ficava cada vez mais intrigante. Ficou curioso e queria a todo custo descobrir o que aconteceu. Começou a estudar o caso em todas as suas horas de folga. Entrou em contato com colegas e trocou idéias. Perguntava discretamente pela cidade o que aconteceu de fato naquela época. E chegou a um dos amigos que estava com ele no dia. Conseguiu que ele viesse conversar.
—Bom dia, Ronaldo! Eu te agradeço por atender meu pedido.
—Bom dia! O que o senhor quer de mim?
—Quero falar sobre Paulo. — ele se inquietou
—Não gosto de falar sobre o assunto. Tive muitos problemas. Por que o senhor não deixa isso de lado? Mais de trinta anos depois vem aqui pra desenterrar defuntos?
—A conversa que quero ter com você pode até ajudá-lo.
—O que passou, passou.
—Sabia que Paulo fez exames detalhados? Os exames acusaram coisas muito estranhas. É como se tivesse se submetido a uma cirurgia para a retirada de um tumor. A credito que justamente a massa encefálica que falta o deixou como está. Mas não existe cicatriz aparente, não existe indício de que foi feito um procedimento que tenha aberto a caixa craniana. Estou intrigado. Peço que conte exatamente o que aconteceu.
—Pra quê? Para o senhor ser mais um a me chamar de mentiroso e rir de mim?
—Não. Para tentar elucidar esse fato. E quem sabe para que saibam que vocês não tiveram nada a ver com o que aconteceu.
—Está bem. Já contei tantas vezes. Está tão vivo na minha lembrança. Estávamos no final de 1971. Tínhamos apenas dezoito anos. Aos sábados a gente sempre saía pra se divertir. No final daquela noite, sentamos perto do rio. Ficamos conversando por algum tempo. Éramos inseparáveis e não tínhamos segredo. Paulo sentou na calçada. Mauro e eu ficamos de frente pra ele. As ruas estavam desertas. Passava de meia noite. De repente, do nada apareceu uma luz parecendo uma grande lâmpada redonda. Como um globo. Uma luz intensa e amarela. Seguia em linha reta vindo em nossa direção. Ficamos paralisados pelo medo. Nunca tínhamos visto nada igual. Parou a alguns metros de nós. Fizemos um movimento de fuga, mas ela continuou na direção de Paulo que estava no seu trajeto. Ao passar pela sua cabeça era como se a clareasse por por dentro. Ficou por uns três minutos e então seguiu em frente, desaparecendo misteriosamente. Paulo caiu para o lado, desmaiado. Eu tentava ajudá-lo enquanto Mauro correu pra pedir socorro. Quando recobrou os sentidos já estava assim, como é até hoje. Tínhamos tantos sonhos, tantas conquistas a realizar. Aquele acontecimento destruiu não só a vida dele como a nossa também. Colocaram a culpa em nós. Diziam que foi alguma droga que consumimos ou que brigamos e o espancamos. Criaram histórias, ninguém nos poupou. Nossas famílias se tornaram inimigas. Passamos por momentos muito difíceis. Além de ver Paulo do jeito que ficou ainda sofremos várias agressões. Naquela época não tinha exames que têm hoje e a família não tinha condições de procurar algum recurso. E ele ficou nessa vida sem sentido. Poderia ter acontecido comigo ou com Mauro. A fatalidade foi que ele estava no caminho da luz. Depois disso algumas pessoas disseram ver aquela bola iluminada. Ficavam apavoradas e fugiam e ela não fez mal pra mais ninguém. Paulo não teve a chance de escapar. Mauro se desgostou, se tornou alcoólatra e morreu ainda jovem, com apenas quarenta e dois anos.
—O que você acha que era aquela bola de luz?
—Não faço idéia. Alguns que viram disseram que era coisa de extraterrestres. Mesmo outras pessoas vendo, ninguém acreditou em nós. Nossa vida se tornou um inferno. Passou muito tempo até as pessoas pararem de nos hostilizar e ofender.
—Sinto muito pelo que aconteceu com vocês. Sei que você e Mauro não tiveram culpa. A pequena, minúscula parte do cérebro dele que foi retirada deixou as sequelas. Vocês não podem ser responsabilizados por isso. Mas não existe nenhuma explicação para o ocorrido, uma vez que ele não passou por procedimento cirúrgico
—O senhor acredita em mim? O que acha que pode ter sido a bola iluminada?
—Por enquanto prefiro não emitir opinião. Eu sou um homem da ciência. Pra acreditar em alguma coisa preciso ter embasamento. Prometo que vou pesquisar. Só tenho certeza que você e Mauro não tiveram culpa nem podiam ter feito nada pra evitar.
—Já é um consolo que o senhor pense assim.
—Eu fico muito grato por você se dispor a conversar comigo. Se eu puder fazer alguma coisa por você, pode ter certeza que farei.
Despediram-se ali.
Ainda mais curioso, Ernesto começou a pesquisar sobre a bola de luz. Sabia que era muito remota a possibilidade de encontrar alguma resposta, mas era perseverante e foi em frente. Ficou sabendo que naquela região até os dias atuais havia relatos de aparição da tal bola luminosa. Em alguns casos provocara queimaduras e outros males, mas na maioria das vezes era inofensiva. Algumas vezes até acompanhava as pessoas. Estava confuso com as informações e não sabia se acreditava ou se era uma lenda.
Durante todo tempo que esteve lá fez o acompanhamento da saúde de Paulo e conseguiu até melhorar a sua qualidade de vida.
Tempos depois, já com mais de setenta anos decidiu voltar para a capital e terminar seus dias ali.
Nunca conseguiu elucidar o caso. Sentia-se tentado a acreditar que a tal bola foi responsável pelo dano, mas seu lado racional continuava tentando decifrar o enigma.