A Casa
— Enzo Gabriel!
— Quê?
— Senhora pra você!
— Desculpa!
— Vai buscar a cesta! Não ouviu as palmas lá fora?
— Não!
— Mas é distraído... Nossa Senhora!
O menino franzino, de 15 anos, saiu resmungando pela casa, murmurado para a mãe não ouvir. Sabia que ela estava certa, mas odiava quando ela gritava com ele e o humilhava.
Ao ver os voluntários que levaram a cesta básica para a família de máscara, lembrou-se da sua.
— Vish. Foi mal! Esqueci a máscara! Rapidão...
Em poucos minutos estava no portão de novo, devidamente mascarado.
— Tá aqui! – disse um voluntário estendendo as sacolas pesadas para o garoto.
— Valeu!
— Nada! Fica com Deus!
— Amém! Vocês também! – repetiu a ladainha que a sua mãe ensinara quando pequeno, a qual sempre reforçava para os filhos.
Quando alguém estava bravo com ele o chamava de Enzo Gabriel; os colegas da escola, Enzo; os familiares, quando calmos, Gabriel; os amigos da rua, Biel. Enfim, a cada um se resumia de uma forma. Na rua era o moleque bom de bola, na escola, o bocudo cuja atenção sempre era cobrada pelos professores. Em casa, um filho que não dá trabalho. No Plano Piloto, em Brasília, mais um menino negro e pobre do entorno. Dentro de si, nada. Era muito jovem para reconhecer quem é na sua concepção, e não, no olhar dos outros.
— Aqui, mãe!
— Põe no armário, tô com as mãos sujas...
Enzo ajeitou os alimentos da cesta básica no armário. O que não foi difícil, pois só havia um saco de arroz e um resto de pó de café no quase vazio, que parecia um vácuo, ávido para ser preenchido e cumprir, finalmente, sua função de forma digna, abrigando matéria.
— Enzo!
— Oi!
— Tá passando aquele negócio das casas...
— Pera que já tô indo!
Rapidamente, colocou os últimos itens que ganharam na despensa e trotou para a sala, onde havia uma pequena televisão e um sofá velho. Lá estava deitado seu irmão mais novo, que se sentou para que Enzo coubesse também no estofado desgastado e praticamente sem molas, utilizadas por mais anos do que foram fabricadas para durar.
— Valeu por chamar!
— Nada!
Lucas estava distraído. Dava a impressão de que assistia ao programa por falta do que fazer. A ponto de ouvir e de se incomodar com o som das piscadas de Gabriel, que ficou com os olhos secos, em poucos minutos, de tão compenetrado no conteúdo televisivo.
O mundo na tela era um sonho do garoto, em todos os sentidos. Era seu sonho de consumo: casas incontáveis vezes maiores do que a sua. Com piscinas olímpicas, algumas até com tanques de tubarão, salas de cinema, de jogos e vários carros esportivos nas garagens. Também era seu sonho de profissão: arquitetura. Não somente possuir uma moradia como as que tanto deseja, bem como ajudar a projetar várias delas, desde o formato e a decoração às extravagâncias que tanto o fascinavam.
— Não sei qual a graça que você vê nisso, na moral...
— É só olhar em volta, Lucas!
— Tá, mas isso não te faz sentir pior depois?
— Faz! E é por isso que assisto! Pra continuar indo pra escola. Não quero ser que nem o pai e a mãe. Trabalhar o tempo todo e não ganhar quase nada. Depender dos outros, de doação... Você quer isso?!
— Não, né?!
— Então estuda direito! Não tem o que fazer... O Bruno tá lá no sinal vendendo coisa no meio dessa doidera de pandemia enquanto a gente tá aqui porque ele saiu da escola.
— É...
— Eu ainda vou ganhar dinheiro e aprender a fazer casa. Aí vou fazer uma dessas pra minha mãe...
Um silêncio constrangedor tomou conta do pequeno cômodo. Lucas não queria responder Enzo Gabriel com uma frase realista e enterrar o espírito sonhador do irmão, então fingiu que não ouviu aquela fala digna de mocinho de cinema quando promete alguma coisa e foi ver o que os voluntários trouxeram poucos minutos antes. Deixou Biel sozinho com a televisão e com os seus sonhos.
No começo da tarde almoçaram todos juntos. A mãe, Raquel, o pai, Carlos, e os irmãos Bruno, Lucas e Enzo. Os três mais velhos no sofá e os dois meninos no chão, acompanhando o jornal.
— Lock Down continua...
— Quarentena se...
— ...COVID-19
— ... Novo Coronavírus.
— O Ministério da Saúde alerta...
— ... Auxílio financeiro.
— Doações são...
— ... Ficar em casa.
— Número de casos...
— Número de mortos...
— Todo dia é a mesma coisa – disse Raquel.
— Só que pior... – acrescentou seu marido.
— É... Só quero que acabe logo pra voltar a trabalhar. Não aguento mais fazer comida contada assim...
— Ué! Coloca o Enzo e o Lucas pra trabalhar! – recomendou Bruno cutucando as costas dos irmãos com os pés, provocativo.
— Já disse que não! Não quero que tomem gosto que nem você! – atacou Raquel.
Bruno acenou negativamente com a cabeça, raivoso, enquanto os irmãos mais novos se entreolhavam e seguravam com força os risos sarcásticos prontos para saírem de si. Sabiam que uma bofetada seria a consequência imediata.
— Não vão trabalhar, mas vão ajudar em casa, e muito, ainda mais quando a barriga tiver grande... – Carlos pôs um ponto final à discussão.
Terminado o almoço, Gabriel e Lucas assumiram a cozinha e arrumaram tudo para Raquel, grávida de dois meses.
— Posso ir agora, mãe?
— Pra onde?
— Pra obra...
— Tem certeza que não vai atrapalhar?
— Tenho! Eu te falei... O mestre de obras, seu João, deixou eu visitar.
— Então tá! Só não me volta de noite que nem aquele dia... Às vezes parece que não sabe onde mora... E não esquece a máscara e o álcool...
— Pode deixar, mãe!
Ela desviou o olhar para evitar que o filho visse seu semblante de desconfiança e desconforto. Ele percebeu, mas ignorou e foi se arrumar para sair.
— Oi!
— Oi, rapaz! De novo?! Nunca vi gostar de obra assim... – Enzo sorriu por trás da máscara. Era perceptível pelo encolhimento dos olhos e o movimentar do tecido, porque era um sorriso largo e sincero – O mestre tá no meio do canteiro. Eu te levo lá...
O operário, simpático, arranjou um capacete para Biel e o encaminhou ao encontro do seu chefe. Era uma construção grande e complexa, além de extremamente necessária naquele período: um hospital de campanha para atender pacientes com COVID-19, uma doença respiratória com altos índices de letalidade para pessoas com doenças crônicas e idosos, a qual se tornou uma pandemia, isto é, uma questão mundial, ao deixar a China hospedada no sistema respiratório de diversas pessoas que retornaram a seus países de origem. Por causa de sua transmissão por gotículas e objetos é que Enzo Gabriel e todos naquele espaço estavam mascarados e carregavam álcool em gel. Além disso, a doença explicava as ruas, mais vazias do que o normal em um dia de semana, pelas quais o garoto passou para chegar até a obra, sem ambulantes, com lojas fechadas, sem empregos.
— Pronto! Tá entregue! – disse o operário para Gabriel, acenando para o mestre de obras.
— Obrigado!
— Nada! Boa visita!
— Valeu! Bom trabalho!
— Obrigado!
O mestre de obras sorriu para o menino, levemente afastado, acenou para que esperasse e terminou a conversa com um operário que parecia pouco mais velho do que Enzo.
— Oi, Enzo Gabriel! Tudo bem? – disse estendendo a mão enluvada.
— Tudo! E com o senhor? – Gabriel respondeu dando um aperto de mãos.
— Tudo bem, graças a Deus... Olha, infelizmente, não tenho novidades pra te mostrar. A obra atrasou hoje por causa de umas revisões que o engenheiro fez no projeto. Sabe como é, né?
— Sei... – estava despontado
— Olha, eu sei que você é um menino responsável e maduro o suficiente pra explorar a obra sem atrapalhar ninguém e sem se machucar, então pode ficar à vontade dessa vez, tá bom? – compadeceu-se.
— Nossa, muito obrigado, seu João!
— Por nada! Cuidado, heim...?
— Pode deixar! – sorriu e se afastou.
Lá foi Gabriel explorar a construção. Observou os homens cansados e molhados de suor trabalharem sem reclamar, com afinco, agradecidos. Aquilo o motivava. Uns manejavam as vigas de aço que sustentariam o hospital, outros, o piso, estruturas encaixáveis, como grandes quebra-cabeças de madeira, enquanto alguns montavam as portas a serem colocadas na parte do hospital semiconstruída, entre outras atividades que dezenas de operários realizavam. Enzo amava aquilo tudo, principalmente, o ato de pensar, naqueles momentos, como futuro arquiteto, aprendendo os nomes das técnicas e materiais, além de suas funções.
Estaca caminhando, observando cada detalhe, quando algo chamou sua atenção: uma porta no meio do nada, erguida sobre a terra seca, sem parede nem teto sustentando-a.
— Oxe, que doidera! – pensou alto – Pra quê essa porta aqui?! – gritou para um trabalhador que estava um pouco afastado.
— Não sei não, ha ha ha! Depois vou perguntar pro João... – respondeu risonho e voltou a prestar atenção ao que estava executando.
Enzo não se deu por satisfeito e resolveu investigar o objeto e ver se havia algo diferente das outras portas que estavam montando. Puxou a maçaneta, a abriu e viu o que não esperava: os jardins de uma casa, e não, a paisagem que circundava aquele pedaço de madeira. Assustou-se e a fechou. Depois de alguns segundos recuperando o fogo e a sanidade, na sua opinião, a abriu novamente. Lá estava um terreno com mais metros quadrados que o hospital de campanha: uma mansão, parecida com as que Biel admirara no programa de televisão mais cedo naquele dia.
— Não é possível! - Murmurou... – Moço, vem aqui, rapidão... tem uma coisa estranha na porta...
— Ai, ai, ai... – a contragosto, o homem se levantou. A mansão desapareceu assim que ele se aproximou do menino e a poeira daquele lado foi arremessada pelo vento nos rostos dos dois.
— Só vejo pó, menino! – disse o homem cobrindo o que conseguia dos olhos com o antebraço – é algum parafuso, alguma coisa assim? – Não... esquece! Deve ser coisa da minha cabeça, é a quarentena... – disfarçou com um encoberto meio sorriso.
— Tá bom! – o operário estava desconfiado.
— Desculpa!
— Tudo bem!
No tempo de o homem dar as costas para Enzo Gabriel, a paisagem voltou.
— Pelo menos eu sei por onde voltar... – reconfortou-se ao entrar na casa depois de alguns segundos pensando nas possíveis consequências daquele ato.
— Se ela só se mostra pra mim é porque eu sou o escolhido pra alguma coisa. Seja o que Deus quiser! – refletiu – Não tenho nada a perder mesmo...
Quando entrou deixou a porta aberta. Estava com medo de ficar preso naquela dimensão. Seguiu a passos curtos, atento a qualquer som ou ruído. Várias criaturas fantásticas passaram pela sua mente, desde dragões, elfos e outros seres que admirava a zumbis, lobisomens e demais personagens que o amedrontavam na ficção científica. O medo de encontrá-los era maior do que o de ser confundido com um ladrão, caso os moradores da casa estivessem lá, fossem humanos mesmo e aquele fosse o planeta Terra.
— Que estranho... Não ouço nada... – pensou.
Ele atravessou, muito atento, o lindo jardim, com tulipas, margaridas, rosas, infindáveis flores de aromas e cores magníficos para ele. O cheiro agradável acalmou seus batimentos cardíacos e o fez chegar mais tranquilo à porta da casa. Era gigantesca. Um corte de madeira maciça, de quatro metros de altura e dois metros e meio de largura. Havia uma campainha na parede clara que a circundava, moderna, com reconhecimento de voz e de rosto. Enzo apertou a tela touchscreen, como a de um smartphone.
— Os moradores não estão em casa. Gostaria de contatá...? – disse uma voz mecanizada.
— Não, obrigado! – Gabriel respondeu antes que a voz feminina concluísse seu raciocínio – Poisé, acho que vou indo... – Temia que o sistema de voz acionasse um sistema de segurança, que chamaria a polícia e o prenderia. Estava antecipando o pior desde que colocou os pés naquela dimensão, com todas as teorias de ficção científica que leu ou viu sendo repassadas do seu inconsciente para o seu consciente.
Quando estava se virando para correr e voltar ao canteiro de obras percebeu que a porta estava entreaberta. Era uma fresta minúscula, mas era uma fresta. Por algum motivo o sistema falhou. Enzo colocou um pé dentro da mansão e esperou que algum alarme soasse. Um som começou, era o vento, assustando-o. Diante da negativa para alarmes ele entrou de uma vez e esperou novamente.
― Tenha um bom dia! – finalmente a voz robótica findou.
Enzo deixou a entrada exatamente como estava, levemente entreaberta, observando ao fundo que a sua passagem de volta para casa continuava aberta.
— Tá tranquilo, tá favorável... – tranquilizou-se pensando alto.
Biel adentrou cada cômodo e espaço da casa, sempre atento a qualquer criatura ou pessoa à espreita. Resolveu começar pelo mezanino, onde foi levado pela enorme escadaria em espiral, com degraus de vidro e corrimão de aço. Lá em cima havia três quartos gigantescos, se comparados à casa do garoto. Eram um quarto de casal, um quarto que pertencia a uma menina, ou, pelo menos foi o que Enzo imaginou, já que era rosa e a cama estava cheia de bichos de pelúcia.
Além desses, Gabriel encontrou um quarto de um adolescente e disso tinha certeza, porque se identificou. Era o quarto que gostaria de ter. Todo planejado para satisfazer qualquer vontade de um rapaz com quinze anos de idade. Com televisão, videogame, computador, entre outras coisas. O pensamento de Enzo era frenético com tantas informações e sentimentos para processar.
― Uma cama grande e macia, com molas ensacadas, como dizem as propagandas, sega lá o que isso quer dizer – pensou sorrindo para a colcha azul. Tomou a liberdade de se deitar por um instante e olhar para o papel de parede no teto, um belo céu estrelado.
― Como eu queria algo assim! – ele fechou os olhos e repetiu a frase, como se fosse uma oração, uma súplica para o alto, em direção a uma força superior, com os olhos fechados, a fim de se concentrar e sentir cada sílaba que proferia.
― Se não acontecer um milagre vai demorar muito pra ter algo assim, e vai ser muito difícil, quase impossível. Até lá não vou ter mais idade pra ter um quarto desses, com céu estrelado e tudo – refletia cabisbaixo e, por isso, passou mais alguns minutos naquele abraço macio de uma pessoa só.
Ao se levantar, se deu conta do computador à sua frente. O percebeu antes, mas não se atentou para o que ele representava.
― Talvez encontre informações aqui sobre esse menino, a família e esse mundo.
O dono daquele quarto deixou o computador ligado e alguns sites abertos, como se tivesse saído às pressas. Um deles continha a crítica de um jogo de videogame e o outro era uma plataforma de compras na qual o garoto encomendou o jogo, bem avaliado no outro site.
― Bom gosto! – interessou-se Enzo – talvez jogue algum jogo dele, se der tempo.
Minimizou as janelas dos sites e focou na Área de Trabalho. Não possuía um computador em casa, mas, quando a família tinha mais renda, período em que sua mãe trabalhava também, antes da pandemia, sobrava um pouco de dinheiro no final do mês para que fosse, raramente, à uma lan house do Sol Nascente, onde morava, uma favela horizontal, uma das maiores da América Latina.
O papel de parede do enorme monitor era uma foto do dono do quarto, como até então Enzo o chamava no pensamento. Loiro, de olhos claros, alto e magro. Havia neve no fundo da imagem, então Gabriel supôs que fosse no Sul ou fora do país. Pesquisou mais e encontrou fotos da família completa. Eram todos fisicamente parecidos com a descrição do garoto, que parecia ter a idade de Enzo Gabriel. As fotos eram bem parecidas. Um homem de meia idade, assim como a suposta esposa, o garoto e uma menina, aparentemente, mais nova do que ele. Sorriam em todas as imagens, em vários locais diferentes, sempre bem vestidos, com roupas da moda, caras.
― Todo mundo sorri em foto, não quer dizer nada – observou Enzo Gabriel, com uma leve inveja.
Como ver as fotos começou a lhe fazer mal, resolveu voltar a explorar a casa. Desceu as escadas e visitou os quartos do térreo: dois de hóspedes, identificou, tão grandes quanto os do piso de cima e um menor, para empregadas domésticas, com uma treliche. No escritório uma biblioteca chamou sua atenção. Possuía, consideravelmente, mais livros do que a singela instalação na escola de Enzo.
Ele se deu um tempo na quadra de tênis. Ficou fascinado com a máquina de treinamento, que jogava bolas ininterruptamente, em uma frequência programada. Naquele momento já havia perdido o medo de que alguém chegasse, pois estava há horas lá dentro. Por isso, ficou alguns minutos refrescando os pés na piscina principal, ao lado de outra menor, que parecia destinada a crianças.
― Poxa, queria tanto uma casa assim! Imagina todo mundo zoando aqui fora, fazendo churrasco... Dava pra morar a gente e mais os outros parentes. Minha avó, meu tio... Isso tudo pra quatro pessoas não faz o menor sentido. Tem três empregadas, meu Deus! Quase o mesmo tanto de morador. Caraca! Que absurdo! Nada a ver... A gente aproveitaria bem mais... Imagina a quarentena deles? Ha ha ha. O menino pesquisando aquele jogo supercaro! Pra ele deve ser trocado... #Fica em casa... É fácil desse jeito... Com piscina, hidromassagem, videogame, quadra de tênis... Queria!
― Quando entrei, no fundo no fundo, achei que fosse a minha casa do futuro, tipo aquele lance de déjà vu, sei lá como fala, não sei, um incentivo, uma motivação...
― Por que o senhor me trouxe aqui, Deus? Pra eu ver que não sou forte que nem mostrei pro Lucas hoje, que não confio tanto em mim, que não acredito que vou conseguir algo assim? Se era pra me motivar não funcionou. – a melancolia o abateu totalmente e, ao olhar para cima, indagando aos céus, percebeu o Crepúsculo.
― Droga! Falei que não ia chegar tarde! – pensou alto.
Secou os pés na própria calça, desajeitado, calçou os tênis e atravessou a casa. Se certificou de que trancou a grande porta de entrada.
― Da próxima pode ser um bandido, sei lá, e não eu. – refletiu.
Quando atravessou o jardim deixou uma mensagem no ar:
― Vocês têm muita sorte! Aproveitem! – desejou sinceramente, mas com o desejo de que estivesse falando consigo mesmo, que fosse um dos moradores daquele sonho.
Atravessou a passagem mística e percebeu que o tempo que transcorreu na mansão também passou fora dela. Ao fechar a porta para a outra dimensão, ela caiu no chão, com um estrondo, e se tornou uma poeira, misturando-se com o pó da construção, carregados pelo vento.
― Aí está você! – disse o mestre de obras, João – ficamos muito preocupados, porque deu nossa hora de ir embora e você ainda não tinha aparecido pra se despedir, como sempre faz. Falei pro pessoal dar um tempo que eu ia te procurar... Aí ouvi um barulho e vim aqui.
― Desculpa, seu João! Não queria dar trabalho, nem te atrapalhar, nem ninguém...
― Tudo bem, Enzo! Só não faça mais isso! Tu me passou um susto do caramba! Ha ha ha – riu aliviado.
― Pode deixar! Não vai acontecer de novo – Enzo pensou na porta.
― Tá bom então...
― Eu tenho que correr... Minha mãe pediu pra não chegar tarde...
― Ah sim... Vai com Deus!
― Obrigado! O senhor também!
―Caramba, Enzo Gabriel, já é quase noite!
― Desculpa, mãe!
― Desculpa... Vai tomar um banho que o jantar tá quase pronto! - Falou em tom de sermão.
― Tá bom... – Enzo afirmou com um tom calmo, como se quisesse que aquela tranquilidade atingisse Raquel.
Rapidamente tomou banho, se serviu na cozinha e se juntou aos outros, sentados no sofá e no chão, na mesma hierarquia do almoço. Assistiam ao jornal da noite. Apesar de ser diferente, as notícias eram quase iguais, sobre a pandemia do novo Coronavírus.
― A Secretaria de Saúde do Estado...
― Muitos profissionais da saúde são infectados.
― ... e a taxa de emprego diminuiu...
― Um dos neurocirurgiões mais respeitados do Brasil, Dr. André... e sua filha Catarina..., isolados em casa, com o novo Coronavírus, tiveram um agravamento do quadro, foram levados ao Hospital... esta tarde, mas não resistiram.
― Por isso tava vazia! – exaltou-se Enzo.
― Do que cê tá falando? – indagou Lucas, confuso, assim como todos os outros no sofá.
― Nada... eu... eu não tô prestando atenção no jornal. Tava pensando numa coisa, aí encontrei a resposta, era uma pergunta que eu tava pensando em fazer pro mestre João...
― Tá, mas não precisa gritar! – implicou Bruno.
― Foi mal!
Além de o jornal mostrar imagens do Dr. André e da filha Catarina, algumas delas vistas por Gabriel no computador do filho do médico, um cinegrafista captou a imagem do garoto. Estava abraçado com a mãe, na porta do hospital, ambos se consolando, tremendo, chorando sem parar. Pareciam desconhecer quem eram e para onde iriam. Estavam em outra dimensão onde só existia dor e sofrimento, nada mais.
― Aquela casa vai parecer ainda maior! Credo! Que pena! – Enzo Gabriel pensou olhando em volta – prefiro não ter nada e ter tudo! Eu, heim? – fez o sinal da cruz discretamente e segurou o choro – E pensar que eu invejei aquele menino, meu Deus! Agora eu entendo... agora eu entendo... Me perdoa! Que o senhor abençoe aquele menino e a mãe dele! Eles vão precisar demais do Senhor! Muito mais do que a gente, mesmo sendo pobre. Pelo menos tem conserto... – orou, desnorteado, em meio às discussões sobre a pandemia entre seus familiares. Ter o pensamento interrompido nunca foi tão reconfortante para ele. Aquele não silêncio era mais precioso do que tudo.
― Obrigado...Obrigado! – Era só no que conseguia pensar.
― Você vai amanhã na obra? – perguntou Raquel, interrompendo os agradecimentos do filho, que respondeu com a voz embargada:
― Não, mãe. Eu tenho muito a perder!