O FANTASMA DO MENINO BERNARDINHO

1823

Todos estavam à mesa, em frente um do outro, esperando o patriarca da família vir dos seus aposentos. Bernadinho não aguentava mais. A fome estava consumindo suas entranhas. Bernardinho, Filho caçula de dez irmãos, costumava chegar sempre primeiro que os outros para comer. Treloso como era, esquivava-se na hora de beliscar um pedacinho de alguma coisa que tivesse para comer. A irmã mais velha estava ao seu lado direito, enquanto o irmão do meio do lado esquerdo. Logo resolveu revelar baixinho o seu desespero:

- Robson, minha barriga está doendo. Não aguento mais esperar. – Olhou para o irmão esperando um retorno. – E você, não está com fome também?

- Silêncio seu asno, o pai está vindo. Custa ficar quieto? – Falou chateado com a insistência do Bernardinho.

- Deixa o garoto, Robson, ele só está com fome. – A irmã Melissa defendeu o inocente irmãozinho mais novo.

Bastou calarem a boca e o pai chegou com aquele ar de autoridade. Mas o menino atrevido que era não deixou de comentar:

- Poxa pai, demorô, em! Quase mata a gente de fome.

O velho senhor não acreditando o atrevimento do caçula, resolveu puni-lo deixando-o por último na ordem de servir a comida. O garoto esperou impacientemente por sua vez, olhando de relance para o pai que com ar de superioridade comia devagar o que foi lhe servido primeiro. Quando todos terminaram de pôr a comida no prato, seu Osmildo simplesmente olhou para todos os filhos e declamou:

- Queridos filhos, quero aproveitar o momento para avisar que venderei parte do terreno da fazenda para o seu Sebastião. O cemitério ao lado está ficando pequeno e precisa de mais terreno. – disse com toda a naturalidade, sem se importar com o rebuliço que provocou ao revelar a notícia da venda aos filhos.

- Mas, pai, o senhor tem certeza disso? – o mais velho questionou.

- Eu não acredito que o senhor vendeu para um cemitério. – Melissa, a única jovem moça da família disse desolada.

- Pai, deveria ter nos ditos antes. – Robison exclamou com uma certa intimidade para o pai, já que era considerado o filho do coração dele.

E com toda esta confusão de argumentos, Bernardinho falou:

- Eu poderei brincar lá? – Na empolgação o garoto de 10 anos inocentemente arrependeu-se imediatamente de ter falado ao ver as expressões do rosto dos irmãos. Todos olharam para ele ao mesmo tempo, inclusive o seu pai, sem acreditar na estapafúrdia que o menino apresentou.

Sem responder a nenhum dos filhos seu Osmildo pegou Bernado pelo braço e levou-o para fora da casa indo em direção ao celeiro:

- Quer brincar, pois fique aí com os porcos e as galinhas e com quem mais quiser brincar com você, seu garotinho imprestável. – Largou a jovem criança e foi-se embora raivoso para dentro de casa sem dar nenhuma explicação aos demais.

O velho tinha a fama de bruto, ignorante e de tudo que não presta, principalmente com o caçula, já que era o filho da velhice. O menino não entendia as atitudes do pai, apenas via o mundo do jeito dele. Fantasiava e inventava brincadeiras onde não existia. Foi o que ele fez no estábulo. Decidiu colocar os fenos num montinho para se deitar enquanto observava os animais. Sua mãe não fazia nada, ficava só olhando as atitudes do marido, coitada, talvez não tivesse autoridade para isso. A noite foi passando e ele sem sono e com frio tratou de correr atrás das galinhas, rodeando o galinheiro que ficava na entrada do estábulo. Correu tanto que num impulso para chegar ao batente que dava acesso a parte dos cabritos, engalgou os pés nas cordas da portinhola e o pior aconteceu: Bernardinho enrolou-se todo nas cordas, até perder o fôlego e os sentidos, por fim cair entre os fenos.

Ao amanhecer, bem cedinho, sua irmã como sempre fazia, pegava ovos no galinheiro e tirava o leite da vaca, achou estranho, as porteiras de entrada do celeiro que dava acesso ao curral, estábulo e galinheiro estarem escancaradas e as galinhas soltas, fora do galinheiro. Quando se aproximou não acreditou no que viu. Colocando as mãos na boca, percebeu o irmão caçula todo amordaçado estirado nos fenos. Em desespero, chamou a todos da casa, acordando-os. Em choque, não conseguiu revelar o acontecido aos familiares, eles entraram no celeiro e correram para os outros compartimentos tentando entender o que se passava. E viram Bernardinho duro feito pedra estirado, todo roxo, asfixiado pelas cordas que não se soltaram.

Apesar do pai achá-lo um fardo, sentiu muito a morte do filho caçula, que provavelmente, morreu brincando como sempre fazia. Depois de passados uns anos, por não conseguir se recuperar da tragédia, seu Osmildo resolveu vender a fazenda completa. Posteriormente, além da extensão do cemitério onde Bernadinho fora enterrado, casas começaram a serem construídas ali também.

------------------------------------------------------

(200 anos depois) - 2023

Nossa, João Pessoa está linda demais. As praias, nem se falam, de tão belas que estão. Estou a caminho da casa do meu avô Sebastião e vó Ana. Depois de quase dez anos fora da cidade, na faculdade, resolvi voltar. Agora pronta para retornar de vez e ficar com meus queridos avós. Eles moram em uma casa centenária que fica próximo ao maior e mais antigo cemitério da cidade, Senhor da Boa Sentença. As lembranças fizeram-me ficar nostálgica. Meus pais nos levavam, eu e minha irmã, para lá. Brincávamos muito com os coleguinhas da vizinhança.

Em frente à residência, fiquei parada por uns instantes admirando o jardim que por tantas vezes brinquei de esconde-esconde. Nossa, que emoção. Ao abrir o portão que estava entreaberto, vi a vó Ana, corri para abraçá-la e na emoção quase a matei de susto. Rimos juntas. Perguntei pelo vô e disse-me que ele havia saído, mas que voltaria logo, logo. Entramos. O corredor enorme no rol de entrada fazia o encontro das salas com os quartos. Percebi que não havia mudado muita coisa não. O espelho esquisito do meu avô ainda estava lá, pendurado no quarto dele. Nunca gostei daquele espelho com uma imagem de um santo no meio. Sinistro!

Quando o vô Sebastião chegou, foi uma festa, abraçamo-nos e conversamos até o dia amanhecer. E assim foi a semana inteirinha minha avó chamando os vizinhos para mostrar a neta crescida e estudada. Toda orgulhosa. A maioria dos amigos de infância não moravam mais lá. Somente o Paulinho havia permanecido morando ali na mesma rua.

Passados alguns dias, na segunda pela manhã, ia seguindo pelo grande corredor da casa, bem em frente ao quarto dos meus avós tenho a impressão de que o espelho sinistro está com um certo brilho. Senti um vento frio e em seguida um calafrio percorrer-me o corpo. Acelerei os passos e saí da casa. Antes de recuperar-me do susto, alguém me toca, giro bem rápido e deparo-me com o Paulinho:

- Oi, que cara é essa amiga? – perguntou curioso.

- OI. Não foi nada de importante. Esquece. – Respondi com indiferença. – O que o traz aqui em casa?

- Ah, Georgia, sei que aconteceu algo para deixá-la desse jeito. E respondendo a sua pergunta, vim saber como estais. E pelo jeito, assustada. – Falou com ar de riso. O Paulinho sempre foi curioso e intrometido. Lembro que naquela época já tinha fama de fofoqueiro.

- É que senti um vento gélido vindo de dentro de casa, e então, fiquei um pouco temerosa. Foi isso. – Claro que não contei do espelho, ele poderia achar que sou louca.

- Você lembra de quando éramos crianças e surgiu umas histórias sobre um menino com olhos vermelhos que aparecia vez por outra correndo no corredor da casa do seu avô? Eu até cheguei a ver um vulto passando, mas não identifique se seria o tal menino. – Argumentou bem eufórico.

Realmente, existia umas histórias sobre este fantasma. Eu, particularmente, nunca e nem sequer senti nada sobrenatural. Até tentei contato, porém, sem sucesso. E agora o Paulo retomava a assustadora história desse fantasma mirim.

- Faz mutio tempo isso. Talvez nem apareça mais por aqui. – Falei meio apressada, já mudando de assunto. – Vamos a sorveteria rever alguns amigos. – Saí puxando-o pelo braço.

- Lembre-se que moramos a alguns metros do maior e mais antigo cemitério da cidade, que por sinal, há alguns anos eu fiz uma pesquisa sobre ele e as ruas ao lado. – Disse colocando a mão no queixo. – Irei procurar a pesquisa e trarei aqui para pelo menos entendermos o quebra-cabeça sobrenatural.

A ansiedade estava me matando para saber a respeito do passado daquela rua. Andei conversando com minha avó sobre o tal garotinho fantasma e ela falou numa tranquilidade impressionante:

- Minha filha, nos acostumamos com a presença dele. Vez por outra resolve aparecer correndo pelos corredores. Eu ainda não o vi, enquanto as visitas estão cansadas de o verem correndo pela casa e entrando em nosso quarto. Não sei o que tanto ele faz lá. Às vezes, alguns conhecidos nem querem mais vir aqui por causa desse menino.

- Mas vó, a senhora não tem medo? – Perguntei curiosa.

- Como posso ter medo do que eu desconheço? Devemos ter medo é da maldade dos vivos, minha querida. – A sabedoria dela é impressionante.

E quando menos espero, o Paulo aparece todo eufórico, trazendo o notebook dele. Seguimos para meu quarto, tranquei a porta e fomos para a escrivaninha.

- Amiga, você precisa ver o que descobri sobre nosso território. Em meados de 1815 aqui era uma região habitada por sítios e fazendas. Era bem rural, por esta razão que deram o nome de rua do Sertão. O cemitério surgiu da necessidade das pessoas que moravam aqui terem onde enterrarem seus entes queridos. Até que com o tempo tornou-se popular e passou a ser o que hoje conhecemos como “Boa Sentença”. – Falou sem dar intervalo para respirar.

- Sim, e sobre o suposto menino, descobriu alguma coisa? – Perguntei sobre a principal coisa que queria saber.

- Consegui algumas informações, só não sei se trata da mesma criança. – Explicou continuando, - É sabido que nessa mesma época morava um fazendeiro bem aqui onde estamos. E esse senhor tinha dez filhos. Um desses filhos, o caçula chamado Bernardo era treloso e gostava muito de brincar. Não parava quieto. Até que um dia, em 1823, recebera uma punição do pai pelas travessuras que fazia. Ficou de castigo no celeiro da fazenda por uma noite. No dia seguinte quando foram tirá-lo de lá, o garoto havia morrido enforcado nas cordas que serviam para amarrar os animais. E tudo indica que ele morreu brincando, exatamente aqui onde fica a sua casa.

- Minha nossa! Que história triste. Estou toda arrepiada. – Exclamei com calafrios. – Agora eu entendo o motivo pelo qual ele passa correndo dentro de casa. As pessoas que chegaram a vê-lo, sempre o veem correndo com olhos vermelhos. Agora, qual a ligação dele com o espelho do meu avô?

- Georgia, por favor, né. O espelho é com o seu Sebastião viu amiga. A minha parte eu já fiz. – Paulinho disse já se despedindo. – Chauzinho amiga linda!

Eu precisava perguntar para meu avô sobre a origem do espelho. Fiquei esperando-o até tarde. Assim que ele passou pela porta de entrada, fui logo perguntando a respeito do espelho que tem uma imagem pregada no meio.

- Aquele espelho comprei num antiquário. Achei a história dele muito interessante. Ele pertenceu a um magnata agricultor dessa região em que moramos agora, e que por sinal foi um dos fundadores do cemitério aí ao lado, Boa sentença. Dizem até que o espelho é enfeitiçado. Mas, não acredito nisso não, faz mais de vinte anos que está comigo e nada aconteceu de estranho. – Respondeu direitinho confirmando as minhas suspeitas, o espelho está diretamente ligado ao menino enforcado.

Depois da conversa com meu avô resolvi ir dormir um pouco, pois já passava das vinte duas horas. Ao pegar no sono tive um sonho estranho. Sonhei que o menino Bernardo vinha correndo em minha direção sorrindo. Ao chegar perto de mim, pediu para segui-lo. Vamos em direção ao quarto dos meus avós. Assim que a porta é aberta vejo o espelho em tamanho real. O garoto leva-me para próximo dele e quando resolvi tocá-lo umas mãos com garras afiadas me puxou para dentro do espelho. Começei a lutar e a gritar contra aquilo. O garotinho apenas olha o meu desespero rindo cada vez mais alto, enquanto uma voz horripilante chama meu nome:

-Georgiaaaaaaa, Georgiaaaaaa, venha para mimmmmm.

- Nãoooooo! – Acordei toda suada e tremendo muito. Olhei para o relógio e vi que passava da meia noite. Resolvi tomar água, pois o pesadelo fez-me ficar com sede. A única luz acesa da casa era a do banheiro que fica na cozinha. Assim que pego o copo para colocar água do filtro, ouço um barulho. Prefiro acreditar que foi o gato da vizinha. Sigo meu caminho de volta para o quarto, quando o improvável acontece. Vejo o fantasma do menino Bernardo a correr em minha direção sorrindo para mim com os olhos avermelhados como labaredas de fogo, seguido de um vento frio. Derrubei o copo que estava segurando quebrando-o e desmaiei em seguida com o susto.

- Georgia, minha filha, acorde. Já passam das nove horas. – Acordo com a vó Ana sacudindo-me. Dou um pulo e vejo que estou em minha cama, no meu quarto.

- Quem me trouxe para o quarto? Como vim parar aqui? – Perguntei assustada.

- Ninguém colocou você aqui. Viestes sozinha após ter conversado com o seu avô. Não lembras? – Respondeu sem entender o motivo da minha aflição. Sai balançando a cabeça deixando-me sozinha.

Fiquei ali no quarto pensativa. Será que tudo não passou de um sonho? Parecia tão real. Ao sair da cama sinto algo furando meu pé, quando vou olhar o que é, percebo tratar-se de um caco de vidro, basicamente um pedaço de um copo.

- Meu Deus, não foi um sonho!

Debora Oriente
Enviado por Debora Oriente em 29/12/2023
Reeditado em 14/01/2024
Código do texto: T7964846
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2023. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.