A cachoeira
Sozinha, marcava seus passos pela trilha que se formava, por entre a mata que subia desordenada.
Sua mãe já havia lhe avisado tantas vezes que não era para ela andar mais por aquelas bandas. Mas desde a primeira vez que viu as águas que despencavam da montanha, nunca mais parou de ir. Mesmo com todos os perigos que se anunciavam.
A rajada de vento parecia presságio. Distraída, em puro encantamento, não percebeu. Desceu a primeira ribanceira e encontrou o primeiro caminho de pedras. Os sons da mata confundiam-se mas ela não tinha medo. No corpo um desejo e a alma festejava. Em breve ela se banharia naquelas águas que pareciam abraça-la.
Os olhos resplandeciam a beira da água límpida e fria. E já no primeiro mergulho sentiu o arrepio frio que lhe subia a espinha.
Diferente de todas as outras vezes que esteve por lá. Mas afinal, era impossível banhar-se duas vezes na mesma água, já havia ouvido falar sobre isso em algum lugar e achou muito bonito. Isso significava que não apenas o fluxo contínuo das águas a alterava a cada segundo, como ela mesma era passível de constante transformações.
Após o primeiro mergulho, percebeu que algo serpenteava pela mata, o que fez seus sentidos ficarem apurados. De repente um feixe de luz atravessou as copas altas das árvores, criando uma atmosfera mágica. Mas alguns mergulhos, permitiu-se boiar nas águas e sentia seu espírito se conectar cada vez mais com a cachoeira, tornando-as pouco a pouco um único ser.
Neste momento sentiu sua mente ficar inquieta, como uma tempestade que se formava dentro dela. Angústia, dores reprimidas, tristeza. Tudo se misturava. O feixe de luz parecia agora que a atravessava, mas pouco a pouco transformava-se em sombra.
Os troncos das árvores começaram a balançar cada vez com mais força. A ventania se fez presente por toda parte, mostrando toda fúria que possuía. Abriu os olhos enquanto tentava desviar de folhas secas e galhos. Pela primeira vez sentiu medo e decidiu que era hora de ir embora. O que ela não sabia é que depois de tantos mergulhos profundos e a conexão que se criava com aquela cachoeira, não era mais ela que determinava sozinha deixar tudo para trás, ainda mais nas condições que ela se encontrava, tão assustada como nas noites de temporal que a eletricidade ia embora e sua mãe tentava em vão acender algumas lamparinas, enquanto tentava acalmar a menina que chorava a plenos pulmões.
Percebeu um vulto que passou por trás da queda d'água. Pouco a pouco ela brincava de se esconder, hora na água, hora na mata, até mesmo no vento e quem sabe ali tivesse também uma fogueira, seria possível sentir o calor de todo seu ser em uma dança sensual e perigosa com as chamas que subiam.
Cecília sentiu o desespero tomar conta de seu ser, ao mesmo tempo que seus pés fincavam cada vez mais a beira da cachoeira, de onde não conseguia mover-se. Os olhos buscavam incessantemente aquela figura.
Não aguentando mais começou a gritar, onde você está, por favor, aparece para mim.
A silhueta do corpo formou-se mergulhando nas águas. Os cabelos compridos, a pele morena e seios fartos. Ela estava nua, mas tinha alguns colares no pescoço, um grande brinco e uma flor vermelha atrás da orelha direita.
Sentiu um sussurro em seu ouvido, como se aquela figura a alguns metros de distância, magicamente também estivesse ao seu lado.
Entra não tenha medo.
E se você me machucar? Disse Cecília ainda hesitando um pouco.
Você confia em mim? Mas uma vez ela disse, tão perto que podia senti-la mesmo que ela permanecesse no mesmo lugar.
Confio. E pouco a pouco seu corpo ia mergulhando mais uma vez na água. Tudo foi se acalmando dentro dela e ela se permitiu mais uma vez boiar pelas águas, enquanto a ventania cessava.
Cecilia fechou enfim os olhos como em um transe. Sem perceber as águas límpidas agora tinham detritos, um som alto e diferente surgia da parte alta do rio, o volume e a força da água mudavam rapidamente.
Em contrapartida ao cenário caótico que se formava, Cecília sentiu-se cada vez mais leve, forte, entregue. De repente sentiu uma quentura forte que parecia se localizar entre seu útero e coração.
Pode abrir os olhos agora.
E aquele ser, pairava por cima dela, a encarando nos olhos. Não havia mais medo. Cecília sorriu e ela pareceu sorrir de volta. Um brilho intenso as envolveu.
Neste momento a tromba d'água que se formava sorrateira, chegou derrubando tudo que havia pela frente.
Três dias depois, Cecília foi encontrada a beira do leito do rio há alguns quilômetros de distância da cidade. Todos haviam se mobilizado a sua procura. Dia e noite sua mãe rezava. E falava aos prantos para todos que tentavam consola-la. Eu avisei tanto para ela não ir.
Aquela mesma cachoeira havia matado Jonas, feito Sônia antes recatada e religiosa mudar da noite para o dia, virando a devassa da cidade, Caio ter ido embora para nunca mais voltar e Helena desaparecer para sempre sem deixar rastro.
Ao ver o corpo da filha tombado e fraco, Josefa sentiu angústia e ao mesmo tempo alívio por ela ainda estar viva. Apoiou a cabeça da jovem no seu colo.
Enquanto ia se formando uma roda ao redor delas, com todos os vizinhos que haviam saído a sua busca e alguns curiosos que passavam pela estrada.
Eu vou fechar aquela maldita trilha, hoje mesmo. Disse Adalberto transtornado.
Te acalma homi, não adianta, alguém sempre acaba abrindo um caminho por entre as matas de novo. Disse Valdete, tentando acalmar o marido.
E não é por causa de aviso!
Soltou Luciana sem papas na língua e dando de ombros para alguns olhares de reprovação.
Zequinha, um menino espevitado agarrou as pernas da sua mãe, chorando de medo.
Ela pediu para ele se acalmar e gravar bem aquela cena, que não era para ele ir na cachoeira.
De repente o murmúrio virou silêncio, quando algum desconhecido apontou que ela abria os olhos.
Josefa gritava o nome da sua filha.
Os olhos bem abertos agora, mas muito distantes, como se não pudesse enxergar nada ao seu redor mas um outro mundo invisível para aqueles pessoas presentes ali.
Por isso que eu nunca fui ate lá, essa cachoeira é maldita! Disse mais uma vez Luciana quebrando o silêncio e fazendo as vozes ficarem desordenadas novamente.
Dizem que todos eles viram alguma coisa antes da tragédia. Reforçou Rogério.
É, deve ser algo paralisante ou muito forte, porque nunca ninguém conseguiu fugir para contar a história, falou Antônia já desacreditada. Até que Josefa falou, teve sim. Meu avô. Ele viu por entre as matas. É uma criatura com uma beleza desgraçada. Mas ele saiu há tempo. O que houve com ele? Pouco a pouco foi enlouquecendo. E no fim só dizia, eu não quis me banhar.
Shhhh! Ela tá falando algo. Gritou Luciana. Todos pararam para ouvir.
A voz saiu em forma de sussurro. Josefa aproximou o ouvido da boca da filha e ouviu ela cantar: sozinha eu não fico nem hei de ficar...
As lágrimas transbordaram de seus olhos, era a música de ninar que ela cantava para Cecília, nas noites após a saída repentina de Mariosvaldo de casa, tornando-a assim uma mãe jovem, solo e com tanto medo. Mas que teve que aprender a reunir uma força ancestral para sobreviver dali para frente.
O que ela disse Josefa?
E ela pôs-se a cantar alto, enquanto embalava a filha de um lado para outro e a apertava contra seu ventre como se quisesse coloca-la para dentro de novo....
Fui no tororó beber água e não achei. Achei bela morena que no tororó deixei, aproveita minha gente que uma noite não é nada, se não dormir agora dormirá de madrugada. Ó ó Cecilia ó ó Cecilia entra na roda e ficará sozinha...
Nesta hora um sorriso surgiu nos lábios da filha e era possível ouvir entre as vozes, ela endoideceu, ela endoideceu.