Sem olhos em Gaza

Era a terceira noite consecutiva de bombardeio, mas Gaza estava resistindo. Por quanto tempo, nenhum dos soldados da Força Expedicionária, aquartelada a sudoeste da cidade, ousaria arriscar; mas seus superiores estavam confiantes de que tudo seria resolvido com mais alguns dias de barragem de artilharia.

O sargento Bradley Matson e seis de seus homens aguardavam uma chaleira ferver sobre um fogareiro improvisado, enquanto obuses riscavam o céu negro sobre suas cabeças e explosões avermelhadas surgiam mais adiante contra as muralhas da cidade, quando um silvo agudo seguido de um clarão azulado no meio de penhascos próximos, fez com que todos se levantassem sobressaltados, rifles engatilhados.

- O que diacho foi isso? - Indagou um dos soldados, tão logo o clarão dissipou-se.

- Não parecia um sinalizador, embora me pareça a explicação mais plausível - avaliou o sargento Matson. E virando-se para um dos soldados, ordenou:

- Harry, vá com o Cleve até lá dar uma olhada, mas não se aproximem muito; pode ser um obus que não explodiu.

Os dois homens correram agachados até os penhascos e os contornaram cuidadosamente. Havia uma clareira entre as pedras e ali viram algo que os fez recuar imediatamente e voltar até o ponto onde os demais soldados os aguardavam.

- O que houve? - Inquiriu Matson ao ver as expressões desconcertadas da dupla.

- Tem um homem caído lá, sargento - disse Harry. - E está nu.

- Os olhos dele foram arrancados - complementou Cleve, benzendo-se.

* * *

- Você achou o corpo? - Indagou o capitão Fergusson para o sargento Matson, ao recebê-lo em sua tenda de campanha.

- Sim senhor - admitiu Matson. - Dois de meus homens foram os primeiros a vê-lo. Estava deitado no chão, com a cabeça apoiada no braço esquerdo; a princípio, acharam que poderia estar dormindo, mas logo perceberam que estava sem os olhos.

- Um homem branco, desconhecido, sem roupas, sem nenhuma identificação, sem sinais de ferimentos além dos olhos arrancados - ponderou Fergusson. - E você disse que apareceu do nada, depois de um clarão azulado?

- Senhor, nós vimos o clarão, mas não houve explosão, só um silvo; e depois o corpo apareceu - resumiu Matson. - Mas não posso afirmar que foi a aparição dele que fez surgir a luz; pelo menos, o corpo não estava lá antes do anoitecer, que foi a última vez em que vasculhamos aquelas pedras.

- Isso não faz o menor sentido - disse Fergusson. - É como se se o homem tivesse caído do céu.

- Não exatamente do céu ou teria marcas da queda, senhor - redarguiu Matson. - E também não parece ter vindo caminhando até ali, além do fato de estar sem roupas numa zona de guerra. Seus pés não mostravam nenhum sinal de terem caminhado sobre pedras, a pele estava limpa, como se tivesse acabado de tomar um banho...

- O homem surgiu do nada - concluiu Fergusson, juntando as mãos.

- Por mais louco que possa parecer, senhor, - replicou Matson - é a única hipótese a que pude chegar.

O capitão fez um aceno de cabeça.

- Certo. Eu mandei fotografar o corpo e chamei nosso cirurgião, o Dr. Carbey, para fazer a autópsia. Ele está ocupado lá para os lados de Bersebá, mas deve chegar ainda nesta tarde. Aí, provavelmente poderemos ter uma ideia melhor sobre quem era esse homem de lugar nenhum.

- Muito previdente, senhor - aprovou Matson.

Em seguida, o sargento foi dispensado e Fergusson ficou entregue aos seus pensamentos. Mais tarde, quando anunciaram que o Dr. Carbey estava a procura dele, imaginou que fosse para adiantar algo do relatório da autópsia. Mas o que o cirurgião disse ao entrar, foi:

- Onde está o corpo que queria que eu visse?

O corpo desaparecera misteriosamente da morgue. Se não fosse pelas fotos batidas pela manhã, não haveria sequer como comprovar que um dia havia existido.

- [24-10-2023]